O Estado de S.Paulo
Uma onda política sem precedentes abriu uma janela histórica
A década foi curta, parafraseando título famoso de livro de Eric
Hobsbawm. Começou com a vitória do “dedaço” de Lula em 2010 (a primeira
eleição de Dilma) e terminou com a onda disruptiva de 2018. Destaco essa
onda, e seu resultado eleitoral, como o principal fato do período,
sabendo muito bem que é impossível tomá-lo de forma isolada (mas nosso
editor de Política, o Eduardo Kattah, disse que os colunistas só
poderiam destacar um fato).
Ela alterou os rumos da política, destruiu figuras consolidadas,
encerrou um período de capitalismo de Estado que produziu resultados
catastróficos do ponto de vista econômico – mas, sobretudo, moral –,
destruiu por período ainda imprevisível o chamado “centro” do eleitorado
político, alterou o funcionamento do sistema de governo (com o
Legislativo encurtando as prerrogativas do Executivo). Por último, expôs
à sociedade o severo desafio que uma geração (a partir de 1988) não
conseguiu enfrentar de forma satisfatória: o de diminuir a desigualdade,
aumentar a prosperidade e encurtar a diferença que separa o País das
economias mais avançadas.
A natureza da onda é disruptiva, pois afetou a credibilidade de
instituições centrais para o funcionamento da política nacional, e não
foram só lideranças ou partidos estabelecidos. A onda disruptiva mexeu
com fundamentos do estado de direito, como está demonstrado no embate
entre setores do STF e a Lava Jato. Colocou o País diante de uma
encruzilhada complexa, que é definir quem, no fim das contas, estabelece
o controle sobre a esfera da política. Jogou suas elites econômicas que
se dizem “liberais” nas ideias diante da tarefa de que modelo adotar de
funcionamento do Estado e suas decisões.
A onda arrasou a credibilidade de setores importantes da mídia,
especialmente grandes grupos de comunicações. Acentuou pelas redes
sociais o comportamento “tribal” de vastos segmentos da sociedade,
demonstrando que a moderna tecnologia de informação não é sinônimo
automático de “avanço” ou “progresso”. As redes, ao mesmo tempo causa e
efeito, tornaram ainda mais fechadas e excludentes as “tribos” políticas
ou culturais que hoje nem sequer conseguem concordar sobre fatos, ou se
dispõem a admitir fatos que não combinem com o que já pensam.
Ela tem menos o caráter de “revolução conservadora” do que alguns de
seus principais beneficiados (começando por Jair Bolsonaro) gostariam.
Na sua essência, ela traduziu uma enorme indignação e insatisfação
populares com um “sistema” entendido como contrário a qualquer um que é
honesto, trabalha e se esforça. Partes integrantes do “sistema”, nessa
percepção bastante disseminada, são imprensa, políticos, partidos,
Legislativo, impostos exagerados e incompreensíveis, um conjunto
sufocante de leis e regulamentos.
A mesma onda expôs a difícil encruzilhada a que chegou o Brasil, país
que se tornou velho antes de ficar rico. Falhou nossa tentativa de
construir um Estado de bem-estar social apoiado em crescentes gastos
públicos, que nem sequer uma carga tributária inédita entre economias de
países comparáveis consegue sustentar. E expôs a necessidade de as
elites pensantes encararem outra questão desagradável: qual a razão da
nossa produtividade permanecer tão baixa durante tanto tempo?
Essa onda ocorreu também por causa de um fenômeno positivo de
engajamento político de vastas camadas da sociedade. Há não só um
interesse inédito do público por política, mas uma crescente percepção
de que a dedicação à política traz resultados e mudanças, ainda que seja
notória a frustração com a velocidade com que as transformações
ocorrem. A onda disruptiva abriu uma janela histórica de oportunidade. Quem sabe ela também reforçará a noção de que a realização dessa oportunidade não é automática, e só depende de nós.
William Waack, colunista - O Estado de S. Paulo
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