José Serra
Precisamos alcançar, nos termos da Constituição, caminhos para enfrentar crises conjunturais
Os recorrentes embates entre o Executivo e o Congresso representam uma
generosa fonte de incentivos para a reflexão sobre a mudança do sistema
de governo em nosso país. Os exemplos desses embates são numerosos e não
estão circunscritos aos mandatos atuais.Tudo começa com a falta de entendimento entre o Executivo e os
parlamentares que apresentam proposições para a solução de problemas nas
mais diferentes áreas, que acabam sendo atropeladas por recursos que o
governo utiliza heterodoxamente com o propósito de formar maioria. É
esta maioria que lhe permite dar curso a seus projetos ou amenizar a
fiscalização que poderia e deveria sofrer.
Nesse contexto, as saídas propostas pela sociedade (impeachment, por
exemplo) para contornar as ondas de perda de credibilidade que recaem
sobre o presidente tendem a transformar o nosso sistema de governo num
verdadeiro presidencialismo de colisão. Penalizando o País, como trava
ao nosso desenvolvimento. Para a opinião pública, passamos a impressão de que nos dedicamos mais a
aparar as arestas políticas do dia a dia do que a dar retorno positivo
aos que depositaram em nós a confiança para resolver as dificuldades
econômicas e sociais.
O parlamentarismo é uma convicção que carrego desde a época da
Constituinte, partindo de um argumento fundamental: a necessidade de
participação mais efetiva e responsável do Congresso na definição,
implantação e controle das políticas governamentais. O presidencialismo
favorece a situação oposta: a grande concentração do poder de decisão
nas mãos do Executivo leva o Parlamento a sentir-se pouco comprometido,
flertando constantemente com a polarização.
Há quem acredite que a nossa democracia esteja em perigo, que estamos
andando no fio da navalha entre o seu enfraquecimento e o risco do
autoritarismo. Não penso assim, mas acredito, não é de hoje, que o
modelo presidencialista esteja desgastado e que precisamos voltar a
cogitar o parlamentarismo. Um parlamentarismo sem subterfúgios, sem meias palavras, que fortalecerá
o chefe do Poder Executivo, seus ministros e o seu programa de governo.
No presidencialismo, o Parlamento se fortalece na razão direta do
enfraquecimento do governo. No parlamentarismo, aumenta a chance de uma
aliança política positiva Executivo/Legislativo, que proporcione um
governo mais forte.O parlamentarismo permite mudanças na equipe e no programa de governo
sem traumas institucionais. Abre caminho, igualmente, para coalizões
governamentais baseadas em programas, e não em puras adesões em troca de
favores. Oportuno enfatizar que uma condição essencial para o pleno funcionamento
do parlamentarismo reside na possibilidade de o presidente, em face de
impasses que impeçam a definição de maioria parlamentar estável,
dissolver a Câmara e convocar novas eleições. [o poder de dissolver o Congresso pode ser outorgado no regime presidencialista, bastando ajustes na Constituição.] O sistema favorece, a
médio prazo, as condições de governabilidade no país, abaladas em
momentos de crise.
O Brasil viveu, desde a promulgação da Constituição, momentos dignos de
registro. Consolidamos a democracia política, que tem na Carta sua
guardiã mais efetiva, e, apesar dos muitos percalços, estabelecemos as
bases de uma economia fundada numa moeda consistente e sólida. Mas
precisamos alcançar, nos termos constitucionais, mediante amplo
entendimento político, os caminhos para o enfrentamento de crises
conjunturais. Abrindo a oportunidade para um avanço que respeite a
história e a cultura do povo brasileiro.
Diz-se, com frequência, que o parlamentarismo é apresentado como uma
panaceia toda vez que o País passa por alguma crise política ou de
governabilidade, mas que os problemas de crescimento econômico,
inflação, salários, emprego, desenvolvimento e, sobretudo, de injustiça
social não serão resolvidos pelo sistema de governo. A meu ver, não se
trata de criar ou recriar panaceias, mas de encontrar uma forma de
governo que aumente as possibilidades de os problemas nacionais serem
mais bem enfrentados e equacionados.
É, também, corriqueira a crítica de que, no parlamentarismo, o
fisiologismo e a cooptação exercerão de forma plena e livre sua
influência negativa no processo político brasileiro. Esse é um argumento
equivocado, que tem como ponto mais fraco o fato de ignorar que, num
sistema parlamentarista, o Congresso passa a ser corresponsável pelas
decisões do Executivo, aprovando os programas de governo e a composição
do próprio gabinete. Estas atribuições constituem um poderoso fator para
atenuar os vícios e reforçar as qualidades do Parlamento. Sem um
Congresso forte e responsável, a democracia sempre sairá perdendo.
Arraigar-se na máxima de que no Brasil o presidencialismo é o sistema de
governo que tem tradição, por ter cruzado toda a história da República,
e que ao parlamentarismo falta condição semelhante é opor-se, como
princípio, a todas as possibilidades de mudanças institucionais
significativas, sugerindo que elas sempre conduzirão ao desconhecido.
Mas esse desconhecido e os horrores que comporta não são, contudo,
explicitados.Ficar preso à ideia de que o presidencialismo é bom, mas o presidente em
exercício, seja quem for, é que não é bom é imaginar que as crises
políticas e econômicas às quais o Brasil está sujeito podem ser
separadas do sistema de governo que as envolve.
Defendo o parlamentarismo porque acredito que é possível e necessário um
Poder Executivo mais forte. Quando digo isso, evidentemente, não estou
falando num Executivo repressor dos direitos individuais ou sociais, ou
que tenha força para oprimir o Legislativo. Penso exclusivamente num
governo com capacidade para definir e implementar políticas públicas de
forma mais coerente, persistente, que tenham como resultado concreto o
crescimento e o desenvolvimento do Brasil. Penso na eficácia, na
legitimidade e na flexibilidade do sistema de governo, num contexto
democrático cada vez mais fortalecido.
José Serra, senador da República - O Estado de S.Paulo
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