Thomas Traumann - O Globo
Jurista avalia que anseio da sociedade por punição tem influenciado a magistratura e critica efeitos da transmissão pela TV de sessões do Supremo, que faz ministros ‘virarem atores’
Presidente do Supremo Tribunal Federal durante o histórico julgamento do Mensalão, Cezar Peluso acredita
que parte da sociedade busca um punitivismo contra os acusados de
corrupção. “Ao juiz não cabe a missão messiânica de mudar a cultura da
sociedade mediante condenações para não permitir uma suposta impunidade.
Ao juiz cabe julgar”, afirma. Segundo ele, o uso judicial dos diálogos
obtidos ilegalmente das conversas entre os procuradores da Lava-Jato
será decido no STF.
Por que hoje em dia é mais fácil para um brasileiro médio saber os nomes dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal do que dos titulares da seleção brasileira?
Começou com a transmissão das sessões de julgamentos do STF pela TV Justiça. Embora se trate de um fato irreversível — ninguém conseguiria evitar que a TV transmita as sessões, pois haveria acusações de falta de transparência —, é da natureza humana ter comportamento diferente perante as câmaras. Onde a televisão foca os juízes decidindo, os juízes deixam, de certo modo, de ser juízes, e passam a agir como atores. Duvido que discussão sobre qualquer dos assuntos objeto das decisões do Supremo provocaria os mesmos excessos verbais se fosse travada em ambiente reservado.
Década de rupturas: entrevistas para entender o passado recente
Na sua experiência, algum ministro teve o seu voto influenciado por estar exposto às câmaras?
Não sou capaz de fazer avaliação de caráter subjetivo a respeito, mas há o risco, e isso já basta. E não se restringe aos ministros do Supremo, mas alcança os juízes em geral, porque está dentro do quadro de intimidação que os juízes vêm sofrendo. É subproduto desse ambiente de ódio, em que as pessoas já não suportam a diversidade de pontos de vista. Os juízes estão sendo objeto dessa pressão.
O senhor enxerga uma intimidação ao Judiciário?
Sem dúvida. O Judiciário se defronta com intimidação exercida, dentre outros meios, pelos canais da internet, que expressam aspirações imediatistas das multidões. Por exemplo, é fato conhecido que certo juiz, ao conceder habeas corpus de procedência claríssima, que não podia ser negado, relativo à Lava-Jato, concedeu o habeas, mas fez uma advertência: “olha, estou concedendo o habeas corpus, mas não sou contra a Lava-Jato”. Ou seja, há preocupação de salvaguardar a imagem própria diante dessa pressão.
Mas a sociedade não tem direito de fiscalizar o Judiciário?
Sim, lógico, mas o problema é a cultura de punitivismo, inspirada no caldo dessa revolta justa contra a corrupção, mas também incentivado por setores da imprensa. É uma fase de ódio absurdo na sociedade brasileira, sobretudo dirigida contra o STF, mas também contra todo o Judiciário. Alguns ministros do STF, em certas circunstancias, não podem sair à rua.
A origem dessa atenção toda ao STF está no julgamento do Mensalão, em 2012. Qual o saldo do julgamento?
O processo e o julgamento da Ação Penal 470 (Mensalão)
foram admiráveis. Tínhamos no relator, ministro Joaquim Barbosa, um juiz
muito rigoroso, mas em nenhum passo do processo o STF foi leniente com a
legalidade. Teoricamente admitimos que algumas teses que o Supremo
adotou podem ser discutíveis, como a questão da ‘teoria do domínio do
fato’, mas nada sobre a irrepreensibilidade do processo e do julgamento
dos réus. Aí nasceu essa expectativa distorcida de que o Judiciário tem
que ser sempre punitivo. Se é divulgado que certas pessoas são culpadas,
independentemente do que se apure no processo segundo as regras legais e
garantias constitucionais, setores da sociedade, inclusive da
imprensa, pretendem que esses réus sejam punidos de qualquer maneira.
O senhor está se referindo à Lava Jato?
Em relação à Lava Jato, reservo-me a não dizer o que penso a respeito das revelações do site The Intercept (sobre os vazamentos de diálogos dos promotores obtidos ilegalmente por um hacker). Mas, se, por hipótese, as revelações forem verdadeiras, a ilicitude na sua aquisição vai provocar uma discussão que terminará no Supremo Tribunal Federal: embora como prova ilícita não possam condenar ninguém, podem ser usadas para absolver alguém? Ou para anular processo? O Supremo tem encontro marcado com essa questão.
Qual a sua posição?
Diálogos obtidos ilegalmente não podem ser usados para condenar ninguém, mas seria iniquidade dizer que não se pode usar prova ilícita para absolver um réu que ostensivamente, segundo esses dados, não cometeu o crime. O Direito não foi feito para isso.
Qual sua avaliação sobre os juízes que entram na política, como o ministro Sergio Moro, o governador Wilson Witzel, a senadora Selma Arruda?
Alguns juízes têm mais vocação de políticos do que de magistrados, o que acaba sendo confirmado pelo fato histórico de deixarem a função jurisdicional para, legitimamente, assumir nova carreira.
Mas isso pode de algum modo suscitar a suspeita de que alguns juízes estariam mais propensos a tomar atitudes ditadas menos pela interpretação da lei do que pelo impulso de exercer, ainda que inconscientemente, a missão política de fazer revolução cultural ou social. Ao Judiciário não cabe função primordial de combater a corrupção; isso é do objetivo e da competência da polícia e do Ministério Público.
Ao juiz, não cabe a tarefa messiânica de mudar a cultura da sociedade mediante condenações para não permitir uma suposta impunidade. E acho que nem toda a sociedade quer juízes-celebridade.
Como assim?
Há setores que querem juízes justiceiros, mas noto uma saudável nostalgia dos velhos juízes, recatados, circunspectos, dotados de gravidade, com uma vida pública e privada irrepreensíveis, discretíssimos.
(....)
Mas o senhor fez uma PEC sobre o tema.
Sim, mas eu não estava preocupado em prender ninguém, mas em acabar com a crise sistêmica do Judiciário, da indústria dos recursos, em que manobras protelatórias retardam o fim dos processos e adiam a execução das sentenças.
A PEC dos Recursos, que inspirei, alterava o termo do ‘trânsito em julgado’. Ao invés de ser a última decisão de todos os recursos previstos na Constituição, fixaria o trânsito em julgado das decisões, sejam civis, criminais, trabalhistas, em segundo grau.
Pela minha sugestão, os processos terminariam depois do julgamento do juiz de primeiro grau e do tribunal competente de segundo grau. Os recursos às cortes superiores não impediriam a execução imediata das decisões dos tribunais estaduais e regionais. Os recursos e outras vias continuariam existindo como hoje, em especial o habeas corpus, mas os recursos extraordinários já não poderiam ser usados para travar a execução das sentenças. Isso significa, por exemplo, que União, Estados e Municípios teriam de pagar os precatórios, ao invés de protelar seu pagamento. Acho que a sociedade não estava preparada para proposta tão ousada.
Nesses dez anos, o Supremo decidiu sobre aborto de
fetos anencéfalos, criminalização da homofobia, cotas nas universidades.
O STF está tomando o lugar do Congresso?
Essa acusação de ativismo do STF, no geral, é exagerada. Há uma dialética entre Parlamento e Judiciário, em todo lugar. Se decisões judiciais não são aceitas pela sociedade, toca ao Parlamento alterar a legislação em que o Judiciário se baseia. Se o Parlamento não muda essa legislação, se o Judiciário é chamado a se pronunciar em análise da Constituição, ele terá que tomar uma atitude, exercendo sua função de zelar pela integridade da Carta.
Em O Globo - MATÉRIA COMPLETA
Por que hoje em dia é mais fácil para um brasileiro médio saber os nomes dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal do que dos titulares da seleção brasileira?
Começou com a transmissão das sessões de julgamentos do STF pela TV Justiça. Embora se trate de um fato irreversível — ninguém conseguiria evitar que a TV transmita as sessões, pois haveria acusações de falta de transparência —, é da natureza humana ter comportamento diferente perante as câmaras. Onde a televisão foca os juízes decidindo, os juízes deixam, de certo modo, de ser juízes, e passam a agir como atores. Duvido que discussão sobre qualquer dos assuntos objeto das decisões do Supremo provocaria os mesmos excessos verbais se fosse travada em ambiente reservado.
Década de rupturas: entrevistas para entender o passado recente
Na sua experiência, algum ministro teve o seu voto influenciado por estar exposto às câmaras?
Não sou capaz de fazer avaliação de caráter subjetivo a respeito, mas há o risco, e isso já basta. E não se restringe aos ministros do Supremo, mas alcança os juízes em geral, porque está dentro do quadro de intimidação que os juízes vêm sofrendo. É subproduto desse ambiente de ódio, em que as pessoas já não suportam a diversidade de pontos de vista. Os juízes estão sendo objeto dessa pressão.
Sem dúvida. O Judiciário se defronta com intimidação exercida, dentre outros meios, pelos canais da internet, que expressam aspirações imediatistas das multidões. Por exemplo, é fato conhecido que certo juiz, ao conceder habeas corpus de procedência claríssima, que não podia ser negado, relativo à Lava-Jato, concedeu o habeas, mas fez uma advertência: “olha, estou concedendo o habeas corpus, mas não sou contra a Lava-Jato”. Ou seja, há preocupação de salvaguardar a imagem própria diante dessa pressão.
Mas a sociedade não tem direito de fiscalizar o Judiciário?
Sim, lógico, mas o problema é a cultura de punitivismo, inspirada no caldo dessa revolta justa contra a corrupção, mas também incentivado por setores da imprensa. É uma fase de ódio absurdo na sociedade brasileira, sobretudo dirigida contra o STF, mas também contra todo o Judiciário. Alguns ministros do STF, em certas circunstancias, não podem sair à rua.
A origem dessa atenção toda ao STF está no julgamento do Mensalão, em 2012. Qual o saldo do julgamento?
(.....)
Em relação à Lava Jato, reservo-me a não dizer o que penso a respeito das revelações do site The Intercept (sobre os vazamentos de diálogos dos promotores obtidos ilegalmente por um hacker). Mas, se, por hipótese, as revelações forem verdadeiras, a ilicitude na sua aquisição vai provocar uma discussão que terminará no Supremo Tribunal Federal: embora como prova ilícita não possam condenar ninguém, podem ser usadas para absolver alguém? Ou para anular processo? O Supremo tem encontro marcado com essa questão.
Qual a sua posição?
Diálogos obtidos ilegalmente não podem ser usados para condenar ninguém, mas seria iniquidade dizer que não se pode usar prova ilícita para absolver um réu que ostensivamente, segundo esses dados, não cometeu o crime. O Direito não foi feito para isso.
Qual sua avaliação sobre os juízes que entram na política, como o ministro Sergio Moro, o governador Wilson Witzel, a senadora Selma Arruda?
Alguns juízes têm mais vocação de políticos do que de magistrados, o que acaba sendo confirmado pelo fato histórico de deixarem a função jurisdicional para, legitimamente, assumir nova carreira.
Mas isso pode de algum modo suscitar a suspeita de que alguns juízes estariam mais propensos a tomar atitudes ditadas menos pela interpretação da lei do que pelo impulso de exercer, ainda que inconscientemente, a missão política de fazer revolução cultural ou social. Ao Judiciário não cabe função primordial de combater a corrupção; isso é do objetivo e da competência da polícia e do Ministério Público.
Ao juiz, não cabe a tarefa messiânica de mudar a cultura da sociedade mediante condenações para não permitir uma suposta impunidade. E acho que nem toda a sociedade quer juízes-celebridade.
Como assim?
Há setores que querem juízes justiceiros, mas noto uma saudável nostalgia dos velhos juízes, recatados, circunspectos, dotados de gravidade, com uma vida pública e privada irrepreensíveis, discretíssimos.
(....)
Mas o senhor fez uma PEC sobre o tema.
Sim, mas eu não estava preocupado em prender ninguém, mas em acabar com a crise sistêmica do Judiciário, da indústria dos recursos, em que manobras protelatórias retardam o fim dos processos e adiam a execução das sentenças.
A PEC dos Recursos, que inspirei, alterava o termo do ‘trânsito em julgado’. Ao invés de ser a última decisão de todos os recursos previstos na Constituição, fixaria o trânsito em julgado das decisões, sejam civis, criminais, trabalhistas, em segundo grau.
Pela minha sugestão, os processos terminariam depois do julgamento do juiz de primeiro grau e do tribunal competente de segundo grau. Os recursos às cortes superiores não impediriam a execução imediata das decisões dos tribunais estaduais e regionais. Os recursos e outras vias continuariam existindo como hoje, em especial o habeas corpus, mas os recursos extraordinários já não poderiam ser usados para travar a execução das sentenças. Isso significa, por exemplo, que União, Estados e Municípios teriam de pagar os precatórios, ao invés de protelar seu pagamento. Acho que a sociedade não estava preparada para proposta tão ousada.
Essa acusação de ativismo do STF, no geral, é exagerada. Há uma dialética entre Parlamento e Judiciário, em todo lugar. Se decisões judiciais não são aceitas pela sociedade, toca ao Parlamento alterar a legislação em que o Judiciário se baseia. Se o Parlamento não muda essa legislação, se o Judiciário é chamado a se pronunciar em análise da Constituição, ele terá que tomar uma atitude, exercendo sua função de zelar pela integridade da Carta.
Em O Globo - MATÉRIA COMPLETA
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