Maria Cristina Fernandes
Eleito como um presidente tutelado, Bolsonaro jogou ao mar, um a um, aqueles que se julgavam âncoras de seu governo
Quando o presidente Jair Bolsonaro tomou posse, porta-vozes das
instituições que, em maior ou menor grau, haviam colaborado para sua
ascensão, apresentaram-se como âncoras de seu mandato. Contrapunham-se
ao desbocado poder presidencial para segurar, moderar e moldar o
governo, condição que reduziria o titular ao papel de tutelado.
O capitão deixou correr a impressão de que se deixaria tutelar para
depois desfazê-la. Começou pelos militares. Antes mesmo da posse,
recebeu diploma militar que lhe havia sido negado por insubordinação.
Povoou o primeiro escalão de quatro estrelas e, ao longo do ano,
demitiu-os ou podou seus poderes, a começar por aqueles de seu vice.
[atualizando:
- os dois pilares constitucionais, prístinos e presentes em todos os governos, que balizam as INSTITUIÇÕES MILITARES são HIERARQUIA e DISCIPLINA, aos quais se obrigam de forma exemplar as Forças Armadas do Brasil;
- os quatro estrelas nomeados pelo presidente Bolsonaro, certamente estavam cientes de que continuavam alcançados por aqueles principios e ao bom militar cumprir ordens não é desdouro.]
Enviou ao Congresso o projeto de reforma da carreira, maior ambição da
farda, mas largou-os na tramitação e prestigiou as patentes menos
aquinhoadas pelo texto. [fica óbvio que ocorreu na manobra uma esperteza política do presidente Bolsonaro.]
Inalterados os ventos, Bolsonaro se manterá acima da linha d’água
Muitos oficiais da reserva permanecem nos cargos depois de destratados
pelos filhos do presidente porque têm no complemento de soldo seu
horizonte de mais longo prazo. O primeiro ano de governo não confirmou a
tese de que a volta dos militares é o “novo normal” da política. As
redes sociais do ex-comandante do Exército perderam eficácia e o
sucessor impôs o silêncio na ordem do dia. Hoje os militares nem são
próximos o suficiente para dar os rumos do governo nem distantes o
bastante para dele se desvencilhar.
As pretensões do Supremo Tribunal Federal de servir de poder moderador
do presidente acidental foram igualmente frustradas. [as indecisões,os abusos baseados em uma condição, inexistete, de supremo ministro, descredenciam o Supremo de ser 'Poder Moderador' e impõe a necessida de de um Poder Moderador acima do Supremo.] A Corte acentuou
suas divisões e a discricionaridade de suas decisões. Com velhos
credores batendo à porta e o Ministério Público do Rio no encalço -
desde a acomodação de arranjos familiares em gabinetes parlamentares ao
imbróglio do assassinato da vereadora Marielle Franco -, Bolsonaro
precisa manter o STF ao alcance da mão. Ao se prestar ao papel de
conselheiro jurídico da algibeira palaciana, o presidente da Corte tenta
estender ao Executivo a condição de posto Ipiranga dos políticos com
contas a prestar.
Regido pelo tempo da política e não do direito, o Supremo falha em
repetir com Bolsonaro o papel de algoz desempenhado em governos
anteriores com grande bilheteria. Isso se deu, em grande parte, porque o
presidente cooptou o comandante do espetáculo e seu mais dileto cabo
eleitoral. Desenganado da ilusão de que continuaria a envergar a
fantasia de xerife da República, o ministro Sergio Moro amargou
sucessivas derrotas até ser enquadrado no papel ao qual é recomendável
se acomodar, o de lugar-tenente do bolsonarismo.
No trio de âncoras das quais o capitão quer se livrar, o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, é a única a ser jogada ao mar por decurso de
prazo. Neste ano que lhe falta, dificilmente será capaz de reverter os
obstáculos que se levantam contra um quarto mandato, a começar pela
Constituição.
Sua condição de avalista de todos os acordos da República,
do salão verde da Câmara à Av. Faria Lima, centro financeiro de São
Paulo, selou também a finitude de seu mandato. Enquanto Maia estiver no
cargo, Bolsonaro não se livrará da condição de governante desaforado e
sem filtro. O papel já mostrou ser sucesso de público mas embute uma
tutela que o incapacita para a costura da reeleição.
Ao longo do ano, o presidente aprendeu a receita para lidar com o
Congresso. Saiu do Executivo a proposta que faz dos parlamentares os
novos barões do Orçamento. É generoso também com a maior e mais poderosa
bancada parlamentar, a do agronegócio. Pôs a maior liderança da turma
no Ministério da Agricultura e, com ela, dá celeridade ímpar a pauta
ambiciosa, do perdão das dívidas do Funrural ao fim da moratória da soja
passando pela regularização de grileiros. [tornou-se voz corrente chamar de 'grileiros' àqueles que querem apenas e tão somente produzir - ato que os supostamente 'grilados' não sabem nem gostam de fazer.]
Com a sucessão de projetos enviados ao Congresso, o presidente mostrou
ainda o inarredável compromisso com o qual se fez depositário do apoio
da massa de investidores - da redução do custo do trabalho na economia à
diminuição da capacidade regulatória do Estado. Faz valer a percepção
liberal de que os contratos são regidos pela igualdade entre as partes
nas reformas previstas para planos de saúde, seguradoras e
financiamentos em geral. O ministro da Economia não é uma âncora a mais. É sócio da jornada
bolsonarista. Seu credo liberal tem mostrado capacidade de adaptação às
intempéries, como mostrou no tabelamento dos juros do cheque especial e
do diesel. Terá que renovar sua flexibilidade para prosseguir. O ano
chega ao fim com a bolsa de valores em recordes sucessivos e a promessa
de um Natal redentor.
Paulo Guedes, porém, tem mais um ano para
reproduzir a mesma bonança nos indicadores de emprego.
As rebeliões do continente acenderam um sinal de alerta. A legislatura
que se inicia em 2021 se guiará pelos resultados eleitorais nos
municípios e pelas perspectivas da sucessão presidencial. A sociedade
entre o liberal e o ‘homem comum’ que está no poder terá de prover, ao
conjunto do eleitorado, a percepção de que sua vida melhorou. Bolsonaro foi o primeiro presidente a se eleger sem ter sido vitorioso
no segmento que ganha até dois salários mínimos. Não será reconduzido,
porém, sem conquistá-lo. Implantou o 13º para o Bolsa Família, liberou o
FGTS e repaginou o “Mais Médicos” por um lado, mas, por outro, não deu
reajuste real ao salário mínimo, ainda patina no relançamento do “Minha
Casa Minha Vida” e trata como rico, vide ofensiva contra o abono, quem
ganha entre um e dois salários mínimos.
É pela conquista dos mais pobres que Bolsonaro pode anular as pretensões
do petismo. A soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não
comprovou a decantada ameaça. De um lado, porque o presidente da
República é hoje o titular de muitas das esperanças que um dia deram
alento ao lulismo. De outro, porque o capitão maneja com habilidade os
ventos que o elegeram e que ainda empurram seu bote: o medo que se impõe
na zona cinzenta entre o tráfico e a polícia, a inércia do apoio ao
governo por parte de quem dele é mais dependente e o conservadorismo nos
costumes que contagia até a popularidade da ministra Damares Alves.
Inalterada a rota dos ventos, é mais do que suficiente para mantê-lo
acima da linha d’água.
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