O Globo
Divergência sobre material vazado de Moro e procuradores
Intercept escolhe que partes quer divulgar, fora de seu contexto integral e, principalmente, escolhe o que não divulgar
A divulgação de diálogos, escritos e falados, atribuídos aos
procuradores da Lava-Jato, entre si e com o então juiz Sergio Moro, não
revelou nenhuma ação que distorcesse a investigação, que forjasse provas
inexistentes, que indicasse conluio contra qualquer investigado da
Operação Lava-Jato, muito menos o ex-presidente Lula, o objetivo
evidente da operação de invasão de celulares. Estamos até o momento no terreno da interpretação das leis. Assim como o
site Intercept Brasil, que divulga o material, tem lado evidente, vendo
ilegalidade em todas as conversas entre os personagens, há inúmeros
juristas e advogados que entendem ao contrário.
A questão está posta em relação ao nosso processo penal, que tem o mesmo
juiz que controla a investigação do Ministério Público e da polícia
dando a sentença do julgamento. Nos processos criminais do Supremo
Tribunal Federal (STF), para figuras que têm foro privilegiado, acontece
o mesmo. O relator do mensalão, ministro hoje aposentado Joaquim Barbosa, foi
também quem relatou o julgamento dos réus. No caso das forças-tarefa, a
situação é mais limítrofe ainda, pois o juiz controla as investigações,
embora seja impedido de participar delas.
Autoriza medidas como quebra de sigilo e interceptações telefônicas,
busca e apreensão, ou as proíbe. Colhe depoimentos e determina prisões
provisórias. Para dar agilidade ao combate contra os crimes financeiros,
a Vara especial de Curitiba existe desde 2003, criada por recomendação
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Somente em 2014 a força-tarefa da Lava-Jato foi criada, por decisão da
Procuradoria- Geral da República (PGR). Quem organizou a força-tarefa do
Ministério Público foi o procurador Deltan Dallagnol, que já trabalhara
com o juiz Moro no caso Banestado, no início dos anos 2000.
O procurador integrou a força-tarefa que fez, em 2003, a primeira
denúncia contra o doleiro Alberto Youssef. Dallagnol e Moro, portanto,
se conhecem há quase 20 anos. Nenhuma ação dos procuradores do
Ministério Público nem da Polícia Federal pode ser feita sem uma
autorização do juiz. A busca da sinergia entre as diversas corporações que trabalham em
conjunto — Ministério Público, Polícia Federal, Receita Federal — é o
que dá sentido às forçastarefa. As etapas das operações tinham que ser
autorizadas por Moro, como questões logísticas e exigências legais, como
formalização de atos. Para isso, juiz e os investigadores têm que conversar para saber se é a
melhor hora para fazer tal ação, se é possível atender aos pedidos dos
procuradores e da Polícia Federal, se está bem embasado o pedido de
prisão, de quebra de sigilo.
O entendimento sobre essa sinergia, que dá maior eficiência ao combate
ao crime, é que está em discussão com a divulgação desses diálogos que,
em todo caso, os supostos participantes não reconhecem como autênticos
na sua integralidade. O problema da maneira como o site Intercept decidiu divulgar o material
que recebeu do invasor dos celulares é que a falta da integralidade
impede que se tenha condição de verificar a autenticidade dos
documentos.
Mais ainda, o Intercept escolhe que partes quer divulgar, fora de seu
contexto integral e, principalmente, escolhe o que não divulgar. O
trabalho de edição é uma função jornalística, mas a recusa do Intercept
de dar acesso ao material, mesmo àqueles que participam da divulgação,
não tem uma explicação razoável. O material do WikiLeaks, que divulgou documentos oficiais do governo dos
Estados Unidos, foi distribuído a uma cadeia de jornais e revistas,
cada uma fazendo sua própria edição, por critérios próprios.
A última leva, por exemplo, com conversas de procuradores entre si e com
suas mulheres, sobre a formação de uma empresa para gerenciar
palestras, se resume à revelação da intimidade das autoridades, sem nada
que justifique a divulgação. A empresa não foi aberta, e as palestras são autorizadas pelo Conselho
Nacional de Justiça. Se eventualmente alguém vê sinais de ganância nesse
desejo, trata-se de uma conclusão moral, não penal. O erro dos procuradores foi outro, o de propor a criação de um fundo,
que eles geririam, com a indenização bilionária que a Petrobras teve que
pagar aos Estados Unidos. O fundo foi vetado. Agora, Dallagnol e os
procuradores terão que dar explicações à procuradora-geral da República,
Raquel Dodge.
O Globo - Coluna do Merval Pereira, jornalista