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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Tudo o que você precisa saber sobre a situação constitucional do aborto nos EUA - Gazeta do Povo

André Uliano

Em janeiro de 2018, durante a tradicional Marcha pela Vida (March for Life), realizada anualmente na capital dos Estados Unidos, o então Presidente Donald Trump afirmou categoricamente: “Na minha Administração, sempre defenderemos o primeiro direito da Declaração de Independência, que é o direito à vida”. (...)

“Estamos protegendo a santidade da vida e da família como a base de nossa sociedade.”

Quatro anos depois, é possível dizer que poucos presidentes tiveram tanto sucesso e atuaram de um modo tão efetivo sobre algum tema. Após três nomeações chave para a Suprema Corte Americana, tudo indica que os Estados Unidos estão prestes a superar uma de suas decisões juridicamente mais equivocadas e moralmente mais infames: a do caso Roe v. Wade, de 1973, quando o Tribunal fixou a tese de que a Constituição americana garantiria um suposto “direito ao aborto”, de modo que os Estados-membros não poderiam tutelar penalmente a vida intrauterina, salvo no final da gravidez e mesmo assim de modo bastante restrito.

Embora esse não seja o tema do texto de hoje, cabe aqui abrir um parêntese: quando ouvimos algum discurso de justificação do ativismo judicial, é comum que se busque legitimar tal prática como algo conveniente e até imprescindível para proteger direitos humanos. A análise histórica, no entanto, não revela um quadro tão simples. Historicamente, o ativismo judicial foi responsável por legitimar a escravidão e a opressão contra negros, dificultar o combate à criminalidade, inclusive em crimes de corrupção, e – como no caso Roe v. Wade – legalizar violações ao direito à vida. Portanto, não há nada que indique que a atuação judicial tenha seu vetor sempre voltado para uma melhoria dos direitos fundamentais e do Estado de Direito.

Mas voltando ao tema do tratamento jurídico-constitucional do aborto nos Estados Unidos, o atual panorama da matéria foi fixado, basicamente, em três precedentes: Roe v. Wade; Doe v. Bolton; e, Planned Parenthood v. Casey. Falaremos de cada um deles à frente.

Entretanto, o que é hoje mais relevante e colocou o assunto novamente sob os holofotes é o fato de que a atual composição da Suprema Corte, uma das mais brilhantes e humanistas de sua história recente, poderá reapreciar a matéria ainda em 2022, no julgamento do caso Dobbs v. Jackson. A causa já foi instruída e está pronta para ser decidida. A previsão é que isso ocorra no meio do ano.

Para compreender toda essa discussão, creio que precisamos abordar os seguintes pontos:
1)
Como era tratado o aborto nos Estados Unidos antes da decisão de Roe v. Wade;
2) Quais os casos centrais da jurisprudência americana sobre o aborto e qual o estado atual da questão;
3) Por que isso poderá mudar em breve.

Neste artigo, veremos os dois primeiros tópicos (o regime jurídico do aborto nos EUA até 1973 e no pós-Roe até os dias atuais). No artigo da semana que vem veremos por que isso, provavelmente, está prestes a mudar (pra melhor).

 Como era tratado o aborto no direito americano antes do caso Roe v. Wade?
Segundo pesquisa histórica realizada pelos professores Robert P. George, da Universidade de Princeton, e John Finnis, o qual lecionou em Oxford e Notre Dame, o nascituro já gozava de status de pessoa e proteção jurídica desde os clássicos da Common Law, sistema jurídico herdado pelos Estados Unidos a partir do direito inglês. Essa conclusão se baseou na análise de autores que figuravam como referência no período de fundação do direito americano, como Edward Coke, William Blackstone e Henry de Bracton, assim como em alguns julgamentos dos inícios do país.

Havia, no entanto, certa discussão acerca de quando iniciaria a tutela especificamente penal, ou seja, a partir de que momento da gestação se tornaria crime a ação contra a vida do nascituro. Alguns sustentavam que isso deveria ocorrer apenas a partir da sexta semana de gravidez, outros a partir do momento em que a mãe fosse capaz de sentir os movimentos da criança, o que era fixado por volta da 15ª semana. De todo modo, fora do direito penal, em outros ramos do direito, mesmo antes desses marcos temporais, o aborto já era coibido e considerado ilícito. Por exemplo: contratos para prática de abortos eram nulos e não se concediam autorizações para estabelecimentos que visassem prestar serviços de aborto.

Com o ingresso no século XIX e o avanço das ciências e da bioética, a proteção jurídica desde a concepção ganhou força e se tornou hegemônica. Como consequência, foi deflagrado um movimento por parte de médicos e juristas para corrigir todo o direito americano, fortalecendo a proteção jurídica e penal do ser humano desde quando concebido no ventre materno.

Assim, conforme estudo da historiadora do direito Mary Ziegler, da Florida State University College of Law, por volta de 1857, a American Medical Association iniciou uma campanha em favor da proteção penal da vida intrauterina, apresentando argumentos morais, científicos e práticos. A campanha fora extremamente bem-sucedida e pelo ano de 1880, todos os Estados americanos já haviam estabelecido legislações que estabeleciam forte proteção da vida intrauterina e criminalizavam a prática de abortos eletivos, com algumas poucas exceções relativas a riscos à saúde física da mãe.

Esse dado é muito importante, porque ele revela que quando os Estados Unidos adotaram a 14ª Emenda à sua Constituição, em 9 de julho de 1868, prevendo que “nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida” (“nor shall any state deprive any person of life”), o sentido corrente da expressão (original public meaning) “qualquer pessoa” abrangia os nascituros desde a concepção. Logo, a Suprema Corte não teria como dizer – como infelizmente disse – que antes de 24ª semana de gestação não haveria interesse jurídico e respaldo constitucional para que os Estados tutelassem a vida intrauterina. Inclusive, como vimos no parágrafo anterior, foi exatamente nesse período em que a campanha pró-vida apresentava maior vigor no sentido de reformar a legislação a fim de ampliar a proteção jurídica da vida para desde o momento da concepção.

A prof. Mary Ziegler relata que esse quadro durou relativamente estável por cerca de um século. Em 1959, inicia-se um movimento contra aquele consenso. A American Law Institute começa, então, a minutar projetos de lei que flexibilizavam as regras sobre aborto, ampliando as exceções à sua criminalização, embora de modo ainda razoavelmente restrito. Alguns Estados, como Califórnia e Geórgia, chegaram a aprovar legislações que seguiam o projeto daquela organização. Mas foi em torno de meados da década de 60 do século passado, quando o movimento de contracultura atingiu em cheio o coração da América, que se iniciou um forte movimento pela ampla legalização do aborto: “feministas exigiam a revogação total de todas as restrições ao aborto, assim como membros do movimento de controle populacional (uma causa dedicada a conter o crescimento demográfico).”

Em 1970, os Estados do Havaí e Nova Iorque permitiram a prática de abortos eletivos, assim como Alaska e Washington. Essas legislações tiveram forte impacto no crescimento do número de manobras abortivas praticadas no país. Segundo dados do CDC, em 1970 foram 193.491 abortos legais praticados nos Estados Unidos, 52 para cada 1000 nascimentos. No ano seguinte, ele mais do que dobrou, chegando perto de meio milhão, sendo agora 137 para cada 1000 nascimentos. Em 1973, já era de 615.831 o número de abortos legais praticados na América, 196 para cada 1000 nascimentos. Ou seja, quase 1 a cada 5 crianças eram abortadas.

Numa crescente de aceitação na opinião pública, quando cerca de metade da população já apoiava a legalização do aborto, a Suprema Corte proferiu o julgamento do caso Roe v. Wade.
O que o direito constitucional americano diz sobre o aborto atualmente?
Como mencionado acima, o tratamento constitucional do aborto está hoje definido nos Estados Unidos, basicamente, por três precedentes: Roe v. Wade, Doe v. Bolton e Planned Parenthood v. Casey.

Vejamos cada um daqueles três casos inicialmente.
O que foi definido em Roe v. Wade?
O caso começou quando Norma McCorvey, uma jovem saudável de 21 anos, descobriu que estava grávida de seu terceiro filho. Desejando abortar, em março de 1970, litigando com o pseudônimo Jane Roe, ela processou o então Procurador-Chefe do Ministério Público do Texas, Henry Menasco Wade, requerendo que ele fosse obstado de ajuizar qualquer ação criminal em seu desfavor, caso ela de fato praticasse um aborto. Nessa época, a legislação criminal texana proibia o procedimento, exceto para proteger a vida ou a saúde da mulher. Em 1973, o caso foi julgado pela Suprema Corte americana.

O mais alto tribunal do país, no precedente que leva o pseudônimo da demandante e o sobrenome do Procurador-Chefe, Roe versus Wade, declarou inconstitucional o artigo do Código Penal do Texas que criminalizava o aborto. Mas não parou por aí: a Suprema Corte literalmente inventou um direito ao aborto. Os juízes alegaram que antes da 24ª semana de gravidez (início do terceiro trimestre) o feto não apresentaria viabilidade, assim compreendida como a "potencialidade do feto de viver fora do útero da mãe, ainda que com ajuda artificial". O critério utilizado é altamente controverso. De todo modo, partindo dessa premissa, o Tribunal concluiu que, no período de inviabilidade (dois primeiros trimestres de gravidez), a decisão sobre abortar ou não estaria resguardada pelo direito à privacidade, não havendo interesse legítimo dos Estados em proscrever a prática do aborto.

Com base em tal raciocínio,
a Suprema Corte proibiu que todos os estados americanos, assim como o governo federal, criminalizassem a prática de abortos eletivos, até a 24ª semana de gestação. O voto vencedor, que contou com a adesão de 7 dos 9 juízes, estabeleceu uma divisão da gravidez em três trimestres, e aplicou para cada um deles um regime jurídico próprio.

Em apertada síntese:
no primeiro trimestre, o aborto eletivo simplesmente deveria ser deixado sob livre decisão da gestante e seus médicos;
no segundo trimestre, o Estado poderia regular o aborto visando apenas a proteção da mãe, não do feto, implementando procedimentos razoáveis para assegurar a saúde materna;
por fim, no último trimestre (após a 24ª semana), quando se considerou que o feto já possuía viabilidade extrauterina, o Estado poderia regular e mesmo proibir criminalmente o aborto, exceto quando necessário, segundo juízo médico, para preservação da vida e saúde da mulher.

O que foi decidido, de relevante, no caso Doe v. Bolton?
Mesmo quanto ao último trimestre, no caso Doe v. Bolton, julgado no mesmo dia, mas que ficou bem menos famoso, a Suprema Corte decidiu que “os aspectos ‘físico, emocional, psicológico, familiar e de idade’ da mulher relacionam-se à sua saúde, autorizando que todos esses fatores possam ser levados em consideração para permitir o aborto após o sexto mês gestacional”.

Com isso, como bem constatou o Procurador da República Higor Rezende Pessoa:
“Na prática, a partir de 22 de janeiro de 1973, na linha dos precedentes Roe v. Wade e Doe v. Bolton, passa a América a permitir o aborto durante os nove meses de gravidez, tornando impossível a defesa da vida intrauterina por parte dos estados americanos ou do governo federal."
"Em resumo, o aborto passa a ser legal em qualquer circunstância (dificuldade financeira, conveniência social, rejeição do feto pelo sexo, por doença ou por motivo algum) durante os seis primeiros meses de gravidez; a partir do sétimo mês, o aborto é legal para resguardar a vida ou a saúde da mulher, sendo o último conceito (saúde) alargado pelo precedente estabelecido em Doe, que permite abortar até o nono mês, representando uma mudança radical no sistema jurídico de proteção da vida do nascituro nos Estados Unidos."

Quais foram as consequências dessas decisões da Suprema Corte?
O julgamento do caso Roe v. Wade chocou e polarizou a opinião pública americana.
E não foi para menos. É possível concluir com base nos dados que Roe deflagrou uma crise de violações a direitos humanos na América.

Segundo levantamento de Higor Rezende Ferreira, hoje, pelo menos 8 estados americanos permitem a realização do aborto até momentos antes do parto. A postura legislativa é tão radical que, dentre 198 países estudados no ano de 2017, os Estados Unidos encontravam-se entre um restrito grupo de 7 nações que admitiam o aborto após a 20ª semana de gestação. É importante salientar que as práticas abortivas utilizadas, especialmente em estágios mais avançados da gravidez, são manifestamente cruéis. Desde a decisão do caso Roe, mais de 60 milhões de abortos legalizados já foram praticados no país. Conforme levantamento do Instituto Guttmacher, abrangendo 7 estados americanos, “98.3% dos abortos nos EUA são eletivos, incluindo razões socioeconômicas, controle de natalidade e seleção de sexo do bebê. Os casos difíceis (hard cases) representam: em caso de estupro, 0.3%; incesto, 0.03%; real risco para a vida da mãe, 0.1%; riscos para a saúde da mãe, 0.8%; problemas de saúde dos fetos, 0.5%”.

As consequências da decisão da Suprema Corte acabaram por impulsionar fortemente o movimento pró-vida no país.

No campo jurídico, na própria década de 70, setores da sociedade e da academia, em larga medida envolvidos com movimentos pró-vida, começaram a desenvolver teorias de interpretação da Constituição mais fieis ao texto, à tradição do país e à intenção dos legisladores: é a fundação do chamado moderno originalismo. O Presidente Richard Nixon indicou o justice Rehnquist para a Suprema Corte, jurista alinhado com essa filosofia, o qual mais tarde chegou a ser Presidente da Suprema Corte e, em 1976, portanto pouco depois da decisão do caso Roe, escreveu famoso artigo crítico ao ativismo judicial.

Na década de 80, o icônico Presidente Ronald Reagan, vigoroso defensor de sociedades livres e responsáveis, e um dos principais nomes da vitória humanista contra o totalitarismo comunista, nomeou novos juízes para Suprema Corte, sobressaindo-se dentre eles o adepto das teorias originalistas e grande promotor dos direitos humanos, o conservador Antonin Scalia.

Ronald Reagan chegou a nomear outro famoso jurista conservador e originalista, Robert Bork, professor em Yale e Desembargador da Justiça Federal americana. Seu nome, no entanto, foi rejeitado pelo Senado. O presidente, então, indicou Anthony Kennedy para a vaga. Como veremos, essa substituição teria grandes repercussões para a causa do aborto no futuro.

De um modo ou de outra, as trocas na composição da Suprema Corte entre 1973 e o início da década de 90 levaram a uma forte expectativa de que o lamentável precedente do caso Roe v. Wade pudesse ser revertido. Essa expectativa cresceu quando um novo grande caso sobre o aborto chegou à Suprema Corte após a mudança em sua composição: o caso Planned Parenthood v. Casey.

O que a Suprema Corte decidiu no caso Planned Parenthood v. Casey?
O caso Casey tinha por objeto a legislação da Pensilvânia de 1982 (Pennsylvania Abortion Control Act) que impunha algumas restrições à prática do aborto: consentimento informado, com dados sobre o procedimento e os riscos do aborto a gestantes que procurassem tal serviço; período mínimo de 24 horas de espera entre a solicitação do aborto e sua prática; notificação dos pais, caso o aborto fosse solicitado por menores; e notificação do marido, caso o aborto fosse requerido por mulheres casadas.

Apesar da grande expectativa, o precedente do caso Roe foi mantido e reafirmado, embora com alterações. O voto vencedor contou com maioria apertada de 5 juízes, entre eles o justice Kennedy. A decisão manteve o critério da viabilidade da vida do feto fora do útero. A divisão rígida entre trimestres – absolutamente sem base no direito do país –, no entanto, foi abandonada.

O Tribunal, então, fixou que: antes da viabilidade, os Estados poderiam regular o aborto (por exemplo, com as restrições administrativas impostas pela legislação da Pensilvânia), mas não criminalizá-lo. E mesmo as restrições administrativas não poderiam resultar num ônus indevido (undue burden), descrito como um "obstáculo substancial no caminho de uma mulher que busca um aborto antes que o feto atinja a viabilidade". A Suprema Corte entendeu que uma das restrições da legislação analisada (notificação ao marido em caso de requerente casada) criava um ônus indevido e por isso ela foi julgada inconstitucional. Esse, contudo, foi o único trecho da legislação que acabou derrubado.

Após a viabilidade, a decisão fixou que os Estados podem proteger a vida do feto, banindo penalmente a prática de abortos não terapêuticos (eletivos).

O que aconteceu após Casey v. Planned Parenthood?
Depois do julgamento do caso Casey, houve inegável frustração por parte do movimento pró-vida. Mas também houve motivos para comemorar.

A decisão da Suprema Corte permitiu que vários estados passassem a dificultar práticas abortivas mediante regulação administrativa, ainda que não penal. A grande verdade é que a vagueza do standard utilizado (undue burden) deixou enorme margem à discricionariedade dos Estados. E o que governantes comprometidos com a causa da vida passaram a fazer desde então foi criar legislações que tornassem o aborto cada vez mais difícil, testando até onde iria a aceitação da Suprema Corte.

O movimento pró-vida seguiu crescendo nos Estados Unidos. Eles perceberam algo fundamental: “para dar um fim ao aborto, conquistar corações é mais importante do que mudar as leis”. Com as novas tecnologias que permitem a percepção da humanidade do feto desde muito cedo e com a divulgação da desumanidade dos procedimentos abortivos, o movimento pró-vida conquistou adeptos.

Desde o julgamento de Casey, o número de abortos legais caiu nos Estados Unidos, revertendo uma tendência ascendente que vinha desde o início da década de 70.

Por fim, o destino conspirou a favor. Em um único mandato, o Presidente mais pró-vida da história recente americana, Donald Trump, pôde nomear três juízes para a Suprema Corte. E ele não desperdiçou a oportunidade que o destino lhe assegurou, garantindo uma tríade de excelentes indicações.

O resultado desse movimento será objeto de nosso artigo da semana que vem.

André Uliano, colunista - Gazeta do Povo - VOZES

 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Uma eleição para muitos anos - Revista Oeste

Ana Paula Henkel

Contra o ativismo ou o silêncio judicial, a letra fria da lei e nossa vigília diária

Caso Roe <i>versus</i> Wade | Foto:  Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Caso Roe versus Wade | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Para falarmos da Suprema Corte Americana (SCOTUS – Supreme Court of The United States), é preciso voltar um pouco na história do país. A Declaração de Independência, assim como a Constituição americana, enxuta com suas 27 emendas, não mostra apenas a solidez dos documentos mais importantes da nação mais próspera do mundo. Quando alguns bravos homens das 13 colônias britânicas na América do Norte se encontraram no Segundo Congresso Continental e decidiram se unir contra a Coroa britânica, nem tudo foi suave como alguns historiadores proclamam. Havia 13 colônias independentes com suas peculiaridades e identidades. Houve muito debate e questões regionais conflitantes foram levantadas, mas mesmo assim eles decidiram colocar as diferenças de lado e escrever seus nomes em um pergaminho que declarava a independência da Grã-Bretanha.

Todos estavam cientes dos tempos difíceis que os aguardavam, mas também era muito claro o que era defendido na escrita daqueles homens: independência, liberdade, representatividade no governo, republicanismo, um processo legal de um Estado Democrático de Direito que não existia para os colonos. Mesmo com muitas diferenças entre eles, aqueles homens se uniram em torno do maior ponto em comum que os conectava: o empenho em criar uma grande nação na terra com o maior documento governante que a humanidade já conheceu. E eles foram bem-sucedidos.

A Constituição americana estabeleceu um governo beneficente limitado e protegeu a sociedade civil para nutrir a liberdade, a família e os direitos religiosos e civis. Na Declaração de Direitos, elaborada durante anos, os pilares sagrados para a nação norte-americana:  
a proteção ao indivíduo contra o governo central, a proteção à liberdade de expressão, de imprensa e religiosa e a sagrada proteção contra a tirania e a opressão o direito de manter e portar armas contra os inimigos, tanto indivíduos quanto governamentais.

Os Pais Fundadores dos Estados Unidos ainda fizeram questão de deixar explícito na Magna Carta o devido processo legal, a necessidade de mandados com base em causa provável, julgamentos rápidos, cláusulas pétreas de proteção às propriedades e tudo o que é crucialmente importante para uma sociedade civil livre. 

Nenhum documento na face da terra é como a Constituição americana, baseada nas declarações de independência e nos direitos naturais inalienáveis. O federalismo, implementado pelos Pais Fundadores e que concede autonomia sólida aos Estados, forma mais um filtro institucional adicionado à espetacular teia de freios e contrapesos para evitar a tirania do Executivo e o ativismo do Judiciário. Mesmo assim, a nação estabelecida no império da lei não é perfeita e também tem cicatrizes de raros ativismos judiciais. Infelizmente, o que é uma rara praga para os ianques é a regra para nós, brasileiros.

Se procurarmos no renomado dicionário americano Webster o termo “ativismo judicial”, encontraremos a seguinte descrição: “prática no Judiciário de proteger ou expandir direitos individuais por meio de decisões que se afastam de precedentes estabelecidos ou são independentes, ou opõem-se a supostas intenções constitucionais ou legislativas”.

Ativismo judicial
O termo “ativismo” é usado tanto na retórica política quanto na pesquisa acadêmica. No uso acadêmico, ativismo geralmente significa apenas a disposição de um juiz para derrubar a ação de outro ramo do governo em um precedente judicial em que juízes reforçam as próprias opiniões sobre os requisitos constitucionais ou ações de tribunais anteriores. Por essa ótica, o ativismo pode não ser considerado pejorativo, e estudos sugerem que não possui uma valência política consistente.

Na retórica política, no entanto, o ativismo judicial não é apenas um termo ruim, é uma ação nociva. Descrever os juízes como ativistas nesse sentido é argumentar que eles decidem casos com base em suas próprias preferências políticas e opiniões, em vez de uma interpretação fiel da lei, abandonando assim o papel judicial imparcial e “legislando da bancada”. As decisões podem ser rotuladas de ativistas por derrubar uma ação legislativa ou executiva, ou por simplesmente permitir que ela permaneça. Esse ativismo no Judiciário ocorre exatamente quando juízes se recusam a aplicar a Constituição ou as leis de acordo com seu significado público original, ou ignoram o precedente obrigatório e decidem os casos com base em preferências pessoais.

Roe versus Wade
Nos Estados Unidos, um dos casos mais conhecidos e polêmicos sobre o ativismo do Judiciário, até hoje centro de intermináveis batalhas políticas e protestos pelo país, é a decisão da Suprema Corte Americana no caso Roe versus Wade. Em 1969, Norma McCorvey ficou grávida de seu terceiro filho, mas decidiu que não queria ter o bebê. Na época, a lei do Texas, onde McCorvey residia, só permitia o aborto em casos de estupro, incesto ou para salvar a vida da mãe. Ela chegou a ser aconselhada por suas amigas a afirmar falsamente que havia sido estuprada, mas não havia nenhum relatório da polícia para apoiar essa alegação. Então McCorvey tentou fazer um aborto ilegal, mas logo descobriu que as autoridades haviam fechado algumas clínicas.

Depois de visitar um advogado, “Jane Roe” (nome fictício usado para proteger a identidade da requerente, Norma McCorvey) decidiu entrar com uma ação federal contra o Distrito de Dallas, Texas, pela impossibilidade de realizar o aborto. O caso foi parar na Suprema Corte, e, numa decisão histórica, os magistrados esticaram malandramente a Décima Quarta Emenda Americana, que protege, entre outros pontos, o direito à privacidade para criar uma nova legislação que protegeria “o direito ao aborto”. A Corte com maioria progressista entendeu que ali caberia uma “interpretação” [naturalmente uma interpretação criativa, tão em voga no Brasil] de que a emenda também protegia a liberdade e a privacidade de uma mulher grávida de optar por um aborto sem a restrição do governo.

Desde 1973, ano em que a lei entrou em vigor em todos os Estados americanos, ferindo gravemente o federalismo estabelecido na Constituição do país, o caso tem trazido enorme comoção nacional. Em 2016, eleitores motivados por uma ou duas vagas na Suprema Corte, e a possibilidade de reversão do pernicioso ativismo do tribunal nos anos 1970, acabaram se tornando uma das razões da vitória de Donald Trump. Em uma pesquisa em 2018, um em cada cinco eleitores do candidato republicano disse à CNN que a Suprema Corte foi uma das razões pelas quais votaram em Trump. Além disso, mais de 56% dos eleitores que votaram no republicano afirmaram que esse foi o “fator mais importante” em sua decisão.

Donald Trump, que saiu das primárias de maneira surpreendente, foi visto como a chance que os eleitores conservadores e constitucionalistas queriam: enviar um republicano à Casa Branca para fazer uma enorme diferença na composição do tribunal por uma geração. E ele entendeu o recado. Durante seu discurso na Convenção Nacional Republicana, quando aceitou a nomeação para ser o candidato à Casa Branca, Trump mencionou a Suprema Corte: “Também vamos nomear juízes para a Suprema Corte dos Estados Unidos, juízes que defenderão nossas leis e nossa Constituição”, disse. “Não deixem essa oportunidade escapar. Não temos mais quatro anos. Eles vão começar a nomear juízes para a Suprema Corte. Temos uma chance e não podemos deixar isso escapar.”

Conservadores e independentes concordaram, e muitos votaram em Trump com a Suprema Corte em mente. Presidentes estaduais do Partido Republicano propagaram a necessidade de apoiar Trump, deixando explícito em suas reuniões que a Suprema Corte desempenhava um papel significativo em sua escolha. O presidente eleito daquele ano provavelmente indicaria dois ou mais juízes e apenas um candidato, Donald Trump, escolheria conservadores sólidos para ocupar as cadeiras. 

Em julho de 2016, o comentarista conservador Hugh Hewitt escreveu em um artigo, intitulado “É a Suprema Corte, estúpido”, que sua decisão de votar em Trump havia sido baseada em grande parte nas repercussões catastróficas de uma Presidência de Hillary Clinton no tribunal mais importante do país. A um mês das eleições, em outubro de 2016, Manny Klausner, libertário e cofundador da Reason Foundation, disse que votaria no candidato do Partido Libertário, Gary Johnson, mas acrescentou que, para outros milhões de libertários, “a probabilidade de o próximo presidente nomear vários juízes para a Suprema Corte nos próximos quatro anos era uma razão suficiente para que os eleitores em Estados que poderiam decidir as eleições (swing States) votassem em Trump em vez de Johnson”.

Se há algo que une democratas e republicanos nos Estados Unidos é o respeito quase religioso à Constituição

Bem, o pragmatismo do voto conservador em 2016 em Donald Trump, mesmo com todas as críticas às suas aparições públicas, parece começar a servir a seu propósito. Trump nomeou três juízes para a Corte mais importante dos EUA, e, na semana passada, o tribunal ouviu os argumentos orais no processo Dobbs versus Jackson Women’s Health Organization — um caso sobre aborto que visita a constitucionalidade da Lei da Idade Gestacional do Mississippi, que, com algumas exceções, proíbe o aborto após 15 semanas. Enquanto concedia o certiorari (ouvirão o caso), a Suprema Corte limitou a questão do recurso a “se todas as proibições de pré-viabilidade de abortos eletivos são inconstitucionais”, e os argumentos se concentraram mais amplamente em se o Tribunal Superior deveria revisitar e anular Roe versus Wade. A porta para corrigir o ativismo de 1973 foi finalmente aberta, e com uma Corte com maioria conservadora (6-3), o voto calculado de católicos e evangélicos no malcriado do Twitter pode finalmente pagar dividendos.

Supremo Tribunal Federal
Já no Brasil, na última semana, finalmente testemunhamos a sabatina de mais um nome indicado ao Supremo Tribunal Federal pelo presidente Jair Bolsonaro. André Mendonça teve seu nome aprovado no Senado para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello, indicado por Fernando Collor de Mello e que permaneceu 31 anos na Corte. Diante de tantos desmandos à nossa Constituição por parte do tribunal, a sabatina de André Mendonça foi vista por milhões de brasileiros que estavam atentos à TV como uma final de campeonato de futebol. Para milhões que foram às ruas no 7 de Setembro para pedir um basta no ativismo político da Corte, há esperança e dúvidas se, de fato, teremos alguém no STF que protegerá nossas leis e nosso devido processo legal.

Em seu discurso, André Mendonça assumiu publicamente compromissos importantes e disse “que se compromete com a democracia e o Estado Democrático de Direito conforme expresso desde o preâmbulo da Constituição Federal”. Ele também declarou que “o Judiciário é o garantidor da legítima atuação dos demais Poderes — sem ativismos nem interferências indevidas”. O indicado de Jair Bolsonaro também afirmou que “cabe ao Supremo Tribunal Federal não legislar - sem executar as políticas públicas com base na lei”.

Assim como na Suprema Corte Americana em 1974, o Supremo Tribunal Federal no Brasil não esconde seu desejo quase incontrolável de legislar sobre o aborto. Gostaria de poder acreditar sem pestanejar nas declarações do senhor André Mendonça, mas só o tempo e suas decisões mostrarão o legado que será escolhido por ele — e colhido por todos nós.

Se há algo que une democratas e republicanos nos Estados Unidos é o respeito quase religioso à Constituição e aos limites dos Poderes. A transformação do STF nos últimos anos é preocupante. Quanto mais interpretação livre do texto constitucional pela última instância, quanto mais liberdade para atuar fora de sua esfera e quanto maior o silêncio da mais alta Corte do país quando leis são criadas por prefeitos e governadores, cerceando nossos direitos fundamentais, mais risco corremos. Contra o ativismo ou o silêncio judicial, a letra fria da lei e nossa vigília diária. É a última garantia para as nossas liberdades.

Antonin Scalia, um dos mais respeitados juízes da Suprema Corte Americana, falecido em 2016, era categórico quanto ao papel dos tribunais para a manutenção de democracias saudáveis e dos pilares do império da lei e da ordem: “Enquanto juízes mexerem na Constituição para ‘fazer o que as pessoas querem’ em vez do que o documento realmente comanda, os políticos que escolherem e confirmarem os novos juízes, naturalmente quererão apenas aqueles que concordam com eles politicamente. A Constituição não é um documento vivo, é um documento legal”, dizia Scalia — certamente um norte na América até hoje quando o assunto são as prerrogativas e os limites de cada Poder.

Em suas declarações a respeito do novo ministro do STF, o presidente Jair Bolsonaro disse que um dos pontos para a indicação de André Mendonça era o fato de que ele era “terrivelmente evangélico”. Assim como Donald Trump em 2016, o presidente que sairá da eleição presidencial de 2022 no Brasil terá a chance de indicar dois ministros para a Corte Suprema em 2023. Indicações que podem afetar toda uma geração. O Brasil é um país que abraça e respeita todas as religiões, mas tenho certeza de que reza para que essas indicações sejam, antes de qualquer coisa, terrivelmente fiéis às nossas leis.

Leia também “O preço do radicalismo”

Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste


terça-feira, 11 de agosto de 2020

O Supremo arquipélago e suas onze ilhas

Por Merval Pereira - O Globo

STF sobrecarregado - Os onze 

STF vive à base de decisões monocráticas 



A atitude dos dois não tem sido a tônica das decisões dos ministros do Supremo, que não por acaso são chamados de “ilhas”, o que significa que cada ministro é [se considera, por atos]  um Supremo, os “onze supremos”, no título do livro dos especialistas Joaquim Falcão, Diego Arguelles e Felipe Rocondo.  

As decisões monocráticas, quando um dos ministros decide sozinho, têm sido majoritárias nos últimos anos no Supremo Tribunal Federal (STF), a ponto de ter atingido em 2017, segundo estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a marca de 89,8% das mais de cem mil decisões daquele ano.   A criação das 1ª e 2ª Turmas, cada uma com cinco ministros, foi uma tentativa bem sucedida de desobstruir o fluxo de processos, mas não o suficiente.

Essa prática tem uma razão básica, o excesso de processos que chegam ao Supremo todos os anos, mais de cem mil, para espanto de outros ministros de Cortes Supremas, como a dos Estados Unidos, que decide por conta própria quais os casos que vai rever desde que, em 1925, para evitar o congestionamento de processos, foi editado um ato nesse sentido.  [sempre que o excesso de processos no Supremo é citado, não resistimos que o STF já julgou ação para declarar se banheiro público unissex, é legal ou ilegal - não sabemos se a Corte já decidiu ou algum ministro pediu vista.]

A média de processos aceitos na Suprema Corte americana é de cerca de 200 por ano, nada além disso. Outra diferença fundamental: a Suprema Corte dos Estados Unidos só decide em colegiado, e em reuniões secretas.  Também nos Estados Unidos, cujo sistema judicial nos serve como parâmetro, 97% dos processos criminais são solucionados através de negociação entre promotor público e advogado de defesa, sem interferência de um juiz (“plea bargaining”). Aqui, a Câmara dos Deputados rejeitou na Comissão de Constituição e Justiça a implantação do sistema proposto pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro.  

Com isso, o Supremo continuará sobrecarregado até mesmo com casos criminais, que podem chegar à última instância. Ao contrário, a Câmara aprovou proposta do ministro Alexandre de Moraes que possibilita a negociação e a não persecução penal em crimes mais leves. No debate sobre o excesso de atribuições do Supremo, já houve mesmo a proposta de criação de um novo tribunal superior apenas para tratar de casos criminais, como o mensalão e o petrolão. Mas não prosperou.

A questão das decisões monocráticas tornou-se também um caso político, com a crescente crítica, como a de Bolsonaro contra decisões individuais “de certas pessoas”, referindo-se ao ministro do Supremo Alexandre de Moraes, que autorizara uma ação da Polícia Federal contra apoiadores do presidente acusados de espalharem notícias fraudulentas pelos meios digitais.  Existe até mesmo em tramitação na Câmara uma proposta de emenda constitucional (PEC) que define que as decisões liminares em ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) só podem ocorrer pela maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF), isto é, seis votos dos 11, proibindo as decisões monocráticas. Outra proposta tenta limitar o número de decisões monocráticas que cada ministro poderá tomar durante o ano.  [Se torna urgente estabelecer  que decisões adotadas por maioria dos ministros do STF, só possam ser revistas em plenário - vedando  concessão de liminar - após o mínimo de 12 meses de vigência.
Urge também adotar um período máximo de mandato - que tal dez anos? ou completar 65 anos, valendo o que ocorrer primeiro - , vedada a recondução ou qualquer prorrogação, a qualquer título ou pretexto.
Além de reduzir a ilusão de alguém ser insubstituível, a oxigenação de qualquer colegiado é sempre conveniente.
Por ser PEC a vigência é imediata, aplicando-se aos atuais ministros.]

Os dois casos enviados ao plenário tratam de questões delicadas politicamente, e a decisão colegiada é a melhor solução para o STF assumir como instituição.  

Correção

Na coluna de domingo, o terceiro parágrafo continha, por engano meu, uma informação errada. Como estava escrito imediatamente acima, o Brasil não é o segundo país com o maior número de mortos por milhão de habitantes, mas o segundo maior em números absolutos.   

Merval Pereira, colunista - O Globo


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O Supremo encalacrou-se - Elio Gaspari

Folha de S. Paulo - O Globo

Egos inflados e idiossincrasias contribuem para colapso da colegialidade do tribunal


No caso da prisão depois da segunda instância, o STF está dividido à maneira dos jogos de futebol, com um time ganhando e outro perdendo

Quem pode pagar advogado fica solto,quem não pode, rala [esta será  a JUSTIÇA BRASILEIRA - resultado da suprema INSEGURANÇA JURÍDICA, provocada pela suprema INDECISÃO do STF, se mudar o que decidiu em 2016 e soltar os condenados numa segunda instância.]

Pelo andar da carruagem o Supremo Tribunal Federal derrubará a prisão dos condenados numa segunda instância. Tradução: quem tem dinheiro para pagar advogados fica solto, quem não tem, rala. 

Uma banda do debate diz que deve ser assim porque isso é o que diz a Constituição. Não é. Se fosse, o mesmo Tribunal não teria decidido duas vezes que o condenado na segunda instância deve ficar preso

Acima da divergência entre os ministros está a perda da colegialidade dos onze escorpiões que vivem na garrafa da Corte. Quem chamou os juízes da Suprema Corte Americana de escorpiões engarrafados foi o grande Oliver Wendell Holmes, mas lá eles se cumprimentam com aperto de mão antes e depois de cada sessão. Aqui, em alguns casos, nem isso. 

O ministro Gilmar Mendes tem horror a comparações com o funcionamento da Corte Suprema, mas lá os nove ministros procuram harmonizar suas divergências. Quando um de seus juízes escreve o voto da maioria, ou a dissidência da minoria, circula seu texto entre os colegas e discute emendas ou supressões. Tudo isso é feito em sigilo, num trabalho que exige paciência e tolerância. Em raros casos, quando a Corte percebe que tomará uma decisão crucial, o presidente (cuja função é vitalícia) costura uma possível unanimidade. Às vezes consegue. 

No caso da prisão depois da segunda instância o Supremo está dividido à maneira dos jogos de futebol, com um time ganhando e outro perdendo. No balcão da lanchonete entende-se esse critério, o que não se entende é que o time derrotado em fevereiro e outubro de 2016 por 7x4 e 6x5 possa mudar o resultado num replay. Afinal, futebol é coisa séria. 

Apesar dos esforços de alguns ministros, tudo indica que se caminha para um choque de absolutos. Numa discussão de botequim ou numa reunião de condomínio surgiria uma voz moderadora propondo uma válvula. Por exemplo: o condenado na segunda instância poderia recorrer ao Superior Tribunal de Justiça, que deveria julgar o caso em até 120 dias. Esse mecanismo daria uma folga à turma que tem dinheiro para pagar advogado, mas anularia a fé exclusiva nas manobras procrastinatórias. Até agora, nada feito. 

A rejeição da válvula indica um colapso da colegialidade do tribunal. Para isso contribuíram, entre outros fatores, egos inflados, idiossincrasias e concepções. Há cortes cujos juízes têm carros e motoristas pagos pela Viúva, mas não se sabe de outra na qual seus veículos usem três chapas, uma de bronze (“sabe com quem está chegando”) outra com fundo branco (indicativa do serviço público) e a terceira, igual à dos contribuintes, sugerindo que os ilustres passageiros são pessoas comuns, ou impedindo que se saiba que não o são. 

A Operação Lava-Jato perdeu a túnica de vestal que cobria o juiz Sergio Moro e o trabalho de seus procuradores, mas sua essência persiste: ela botou na cadeia gente que praticava crimes na certeza da impunidade. Revogada a segunda instância, restabelece-se o sistema que, há dez anos, num passe de mágica, esfarelou a Operação Castelo de Areia.
À época, o STJ blindou a empreiteira Camargo Correa e o Supremo ratificou a decisão. Passou o tempo, mudaram os modos e a Camargo foi a primeira vaca sagrada a colaborar com o governo. Hoje ela trabalha com outro compasso.


 
 
 

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Ida de Toffoli a evento religioso choca os colegas

A presença do presidente do Supremo, Dias Toffoli, num encontro do Conselho de Ministros Evangélicos, no Rio de Janeiro, causou grande incômodo em ministros de tribunais superiores. O blog conversou com dois colegas de Toffoli. Um deles, do STJ, declarou-se "chocado". Outro, do próprio Supremo, disse ter ficado "pasmado". 

Também estiveram no encontro Jair Bolsonaro e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Os dois ministros realçaram que um dos organizadores do evento, o pastor Silas Malafaia, é investigado pela Polícia Federal na Operação Timóteo. Ele é suspeito de ceder contas bancárias de instituição religiosa sob sua influência para um esquema de cobranças judiciais supostamente fraudulentas de royalties da exploração mineral. Malafaia nega as acusações. Para os colegas, Toffoli constrangeu o Judiciário ao encostar sua autoridade de presidente do Supremo nas pendências judiciais de Malafaia. "Para além do caráter religioso, esse encontro foi um evento político", disse o ministro do STJ. "E o Toffoli estava lá. A pergunta que todos estão se fazendo é: Por quê?"


Ao discursar, Toffoli enalteceu os evangélicos: "Após momentos tão difíceis nos últimos quatro, cinco anos, com crise econômica agudíssima, com decréscimo do PIB, afetando principalmente as periferias, lá onde até o Estado não está muitas vezes, está uma igreja evangélica", afirmou. "Nada contra os evangélicos", disse um dos críticos de Toffoli. "Mas desconheço precedente em que um presidente do Supremo tenha comparecido e discursado numa assembléia da CNBB, num evento de umbandistas ou numa conferência de espíritas. Isso é inteiramente inadequado. Imagine se um presidente da Suprema Corte americana ou de qualquer país digno de admiração se prestaria a um papel desses.

É constrangedor."


 
A presença do presidente do Supremo, Dias Toffoli, num encontro do Conselho de Ministros Evangélicos, no Rio de Janeiro, causou grande incômodo em ministros de tribunais superiores. O blog conversou com dois colegas de Toffoli. Um deles, do STJ, declarou-se "chocado". Outro, do próprio Supremo, disse ter ficado "pasmado". Também estiveram no encontro Jair Bolsonaro e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Os dois ministros realçaram que um dos organizadores do evento, o pastor Silas Malafaia, é investigado pela Polícia Federal na Operação Timóteo. Ele é suspeito de ceder contas bancárias de instituição religiosa sob sua influência para um esquema de cobranças judiciais suposta...... - Veja mais em https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2019/04/12/ida-de-toffoli-a-evento-religioso-choca-os-colegas/?cmpid=copiaecola