Dono de um estilo impetuoso [autocrático, ditatorial, estilo Luis XIV, por deixar a impressão que se considera maior que seus pares, tipo 'o Supremo sou eu'.] , o ministro é respaldado por seus pares no momento em que o Supremo se une em defesa da democracia
A despeito da execução patética, a parada militar bancada pelo Palácio do Planalto na manhã da última terça, 10, trazia o simbolismo inegável de uma exibição inédita e indevida de força no mesmo dia da votação do voto impresso para as eleições de 2022, obsessão do presidente Jair Bolsonaro a ponto de ele ameaçar, por mais de uma vez, a realização do pleito caso essa condição não seja atendida. Mas, se o objetivo do desfile era lançar uma sombra antidemocrática, o tiro saiu pela culatra: a ideia acabou derrotada horas depois no Congresso. Ao longo do mesmo dia, já aliviados pela ausência de desdobramentos mais sérios da exibição bélica, ministros do STF divertiam-se trocando memes sobre a pífia demonstração. Na linha expectativa versus realidade, um dos vídeos que fizeram mais sucesso contrapunha uma robusta parada de blindados no exterior à pobreza da frota exibida por aqui.
Dentro do Supremo, a troca de imagens bem-humoradas em grupos de WhatsApp, com cenas de velhos tanques expelindo nuvens de fumaça preta, representou um raro momento de descontração em tempos estressantes e de constantes afrontas às instituições. Um dos alvos principais, o STF vem erguendo uma espécie de muro para fazer frente aos ataques. Tradicionalmente um ninho de vaidades e disputas, o Supremo apresenta agora um perfil de união interna poucas vezes visto em sua história. E, curiosamente, essa coesão vem se formando em torno do ministro que provoca mais polêmicas dentro e fora do tribunal: Alexandre de Moraes. Duro na queda, pouco flexível em suas convicções e sem medo de embates espinhosos, ele é visto na Corte hoje como uma defesa importante nos enfrentamentos com Bolsonaro.
Graças a essa política de impor freios aos delírios presidenciais, Moraes entrou para a lista negra dos radicais — ira que só aumentou nas últimas semanas. Ao lado do colega Luís Roberto Barroso, ele liderou uma campanha contra a adoção do voto impresso junto às lideranças do Congresso, sob o argumento de que a mudança representaria retrocesso e causaria a judicialização das eleições. Barroso foi imediatamente “brindado” por Bolsonaro com adjetivos impublicáveis. A respeito de Moraes, o presidente mandou o seguinte recado: “A hora dele vai chegar”, ameaçou em uma rádio. Talvez a declaração sirva apenas para engrossar sua farta relação de bravatas. Neste momento, Moraes se tornou um inimigo poderoso demais para ser confrontado de peito aberto. Ele concentra o maior arsenal ofensivo contra Bolsonaro no STF. Por obra dos sorteios eletrônicos ou por ação deliberada de seus pares, o ministro tem hoje nas mãos todas as investigações penais que ameaçam o presidente e seu núcleo mais próximo: fake news, atos antidemocráticos e interferência na PF. Em paralelo, possui influência inequívoca sobre casos igualmente explosivos no TSE: disparos em massa por WhatsApp nas eleições de 2018 e declarações falsas contra as urnas eletrônicas (veja o quadro).
O futuro dos inquéritos do Supremo é incerto, pois dependem exclusivamente da Procuradoria-Geral da República para gerar punições. Levando-se em conta os entendimentos manifestados até agora pelo procurador-geral, Augusto Aras, os casos servem hoje mais como uma espada sobre a cabeça de Bolsonaro. Aras, segundo pessoas próximas, tem visto as declarações de Bolsonaro como mera retórica, sem ameaças concretas. Parte do STF, porém, acha que o procurador pode virar a chave e endurecer com o presidente depois de setembro, quando iniciará seu segundo mandato na PGR e não terá mais chances de virar ministro do Supremo. Um magistrado da Suprema Corte destaca também que o avanço das apurações pode forçar o procurador a atuar. Uma das apostas é que o chamado “gabinete do ódio”, estrutura montada para disseminar notícias falsas, será desnudado e ainda trará dor de cabeça ao presidente. Não por acaso, Moraes transformou o tal “gabinete” no principal foco do inquérito das fake news.
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O grau de estridência entre Bolsonaro e o STF cresceu de maneira exponencial a partir de março, quando a Corte anulou as condenações de Lula, decisão que trouxe o petista de volta ao jogo político. Sensível a paranoias e teorias da conspiração, Bolsonaro acusou o golpe e aumentou o volume de ataques ao STF, dizendo que seus integrantes confabulam em prol da eleição do ex-presidente. “É justo quem tirou o Lula da cadeia ser o mesmo que vai contar os votos numa sala secreta no TSE?”, provocou o capitão numa live na internet, fazendo duros ataques ao sistema eleitoral, muitos deles baseados em fake news já desmentidas. A live levou o TSE, por unanimidade, a elaborar uma notícia-crime contra o presidente e remetê-la a Moraes. De pronto, sem ouvir a PGR, o ministro incluiu Bolsonaro no rol de investigados das fake news. O TSE fez ainda uma segunda notícia-crime, pedindo ao ministro que apurasse o vazamento de dados sigilosos promovido pelo presidente nas redes sociais. Encabeçado pelo presidente da Corte, Barroso, e pelo corregedor-geral, Luis Felipe Salomão, ambos próximos de Moraes, o movimento deu ainda mais força ao ministro.
O empoderamento de Moraes no Supremo, e o reconhecimento de que seus métodos são fundamentais neste momento, é um fenômeno relativamente recente. Seu estilo trombador, na verdade, sempre despertou polêmicas dentro e fora do tribunal. Quando o inquérito das fake news foi instaurado, em 2019, por exemplo, membros do Ministério Público e juristas criticaram a iniciativa pouco ortodoxa. Indagado certa vez sobre a legalidade do procedimento, ele deu de ombros: “No direito, a gente fala que é o ‘jus sperniandi’. Podem espernear à vontade. Quem interpreta o regimento do Supremo é o Supremo”. O plenário do STF avalizou o inquérito um ano depois. Mas o episódio continua sendo um bom exemplo de como Moraes é visto: um trator, quando entende que suas ações estão respaldadas. Em março, perto de se aposentar, o ministro Marco Aurélio se desentendeu com Moraes durante o julgamento da prisão do bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), que fora decretada pelo relator das fake news e também rendeu bastante controvérsia. O então decano, com ironia, disparou: “Longe de mim, depois de 42 anos de colegiado, desrespeitar o relator, ainda mais se o relator é um xerife”.
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Evidentemente, a formação da unidade em torno do papel de Moraes tem algumas nuances. De um lado, um grupo de magistrados do STF dá apoio quase irrestrito às suas iniciativas no que diz respeito às investigações sobre bolsonaristas.
Enquanto outra ala, nos bastidores, guarda algumas reservas — como o presidente da Corte, Luiz Fux, e a ministra Cármen Lúcia. Mas ninguém está disposto a fazer críticas em público, e essa é uma estratégia deliberada. Diferentemente de meses atrás, quando o STF aparecia dividido com relação a questões penais, como a prisão em segunda instância, ministros avaliam que, agora, a coesão de todos é crucial. Trata-se de um tempo de proteção da instituição, em que as divisões internas precisam ser superadas em nome de um bem maior. “Estão aqui três ministros que pensam diferente a respeito de muitos temas, mas tem um tema que nos une profundamente, que é a defesa da democracia”, afirmou Barroso, ao lado de Moraes e Gilmar Mendes, em um evento no dia 6 em São Paulo.
Esse nível de protagonismo do STF se deve a um momento singular da política brasileira. Apesar dos riscos de exacerbação da atuação da Corte, o perfil de embate, encarnado na prática por Moraes, é visto como um mal necessário. “Às vezes, medidas extrainstitucionais se justificam para prevenir uma ruptura maior, mas isso é um dilema complexo. Elas podem ser necessárias, mas são perigosas para a democracia e devem ser adotadas com muita parcimônia”, disse a VEJA Steven Levitsky, professor de ciência política da Universidade Harvard e um dos autores do livro Como as Democracias Morrem.
Levitsky não é o único pensador a fazer ressalvas ao papel atual da Corte. A postura mais agressiva do STF encarnada pela liderança de Moraes continua sendo objeto de muitos debates.
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Experiência em confrontos e debates políticos é algo que não falta a Alexandre de Moraes. Indicado ao STF por Michel Temer, ele nunca escondeu suas ligações nessa área. Já esteve filiado ao PSDB entre 2015 e 2017, ocupou os cargos de ministro da Justiça de Temer, secretário de Geraldo Alckmin, nas pastas de Justiça e Segurança Pública, e foi em 2010 o homem mais forte na prefeitura de Gilberto Kassab (PSD) em São Paulo. Por onde passou, ele fez questão de atrair holofotes. Como ministro da Justiça, comandou a barulhenta operação sobre um suposto plano terrorista nas Olimpíadas do Rio e, como secretário de Segurança, defendeu a PM na repressão aos black blocs. Dos contatos dessa época, trouxe policiais para seu gabinete no STF, como um delegado que executa as diligências no inquérito das fake news. Dentro do STF, é justamente esse histórico combativo, esse modus operandi peculiar, que o credencia para estar na linha de frente no enfrentamento às provocações do presidente. O “xerife” virou mosqueteiro. Um por todos… todos por um.
Em Política/VEJA, MATÉRIA COMPLETA
Publicado em VEJA, edição nº 2751, de 18 de agosto de 2021