República dos sem-vergonha vive à tripa forra, à custa de um povo submetido à desonra da pobreza
O historiador cearense Capistrano de
Abreu (1853-1927), colega de classe de padre Cícero Romão Batista no
seminário de Fortaleza, não ficou famoso por causa disso, mas por uma
piada, seu projeto de Constituição, que rezava, categórico: “Artigo 1.º :
Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Artigo 2.º: Revogam-se as
disposições em contrário”.
Nenhum de nossos projetos
constitucionais teve o poder de síntese dessa chacota, que de tão atual
se tornou denúncia. A cada nova legislação este país se torna cada vez
mais a “república dos sem-vergonha”. E a sociedade dos otários
espoliados. A primeira página do Estado de anteontem registrou: Câmara quer mudar delação premiada e prisão preventiva.
E a notícia a que ela se refere, da lavra de Isadora Peron, da sucursal
de Brasília, completou: “Também estudam revogar o entendimento de que
penas podem começar a ser cumpridas após condenação em segunda
instância”.
Na mesma edição deste jornal, que se
notabilizou pelas lutas pela abolição da escravatura, pela proclamação
da República, contra o Estado Novo e a ditadura militar, os repórteres
de política Pedro Venceslau e Valmar Hupsel Filho relataram a saga de
Vicente Cândido (PT-SP) para promover uma reforma política que inclua um
Fundo Partidário de, no mínimo, R$ 3,5 bilhões; o distritão, em que só
os mais votados para deputado se elegem; e, last but not least,
a “emenda Lula”. Esta merece destaque especial, por impedir que
postulantes a mandatos eletivos sejam presos oito meses antes da data
marcada para a eleição, mesmo que só venham a ter suas candidaturas
registradas oficialmente quatro meses após esse prazo. O nome do
presidenciável do Partido dos Trabalhadores (PT), no qual milita Sua
Candidez, é usado como marca registrada da emenda por atender ao fato de
que Luiz Inácio Lula da Silva acaba de ser condenado a nove anos e meio
de prisão e proibido de ocupar cargos públicos por sete anos pelo juiz
Sergio Moro, na Operação Lava Jato.
A proibição de prender quem avoque sua
condição de candidato é a mais abjeta das propostas do nada cândido
(claro, impoluto) relator, mas não é a que produzirá, se for aprovada
pelo Congresso Nacional, mais prejuízos, em todos os sentidos, para a
cidadania. As medidas cinicamente propostas pelo “nobilíssimo”
parlamentar produzem, em conjunto, um despautério que provocaria a
aceleração do enriquecimento dos partidos e de seus representantes, em
particular os dirigentes, sob a égide de um sistema corrupto e que trava
a produção e o consumo, empobrecendo a Nação. O financiamento público
das milionárias campanhas eleitorais legaliza a tunga ao bolso furado do
cidadão.
Ex-sócio do presidente da CBF, Marco
Polo Del Nero, que não sai do País para não ser preso pela Interpol, Sua
Candura-mor, o deputado ecumênico, integra o lobby a favor da
legalização dos cassinos e foi um dos idealizadores da campanha de
Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da Câmara. A reforma ressuscita uma
ideia que nunca pareceu ter muito futuro e sempre foi apregoada pelo
presidente Michel Temer: o distritão. Trata-se da volta do tílburi ao
Vale do Silício, pois reduz a pó as tentativas vãs de tonificar a
democracia, dando mais força aos partidos, e estimula o coronelismo
partidário, usando falsamente a modernização, confundindo-a com voto
distrital.
O Estado noticiou que o
patrimônio de Cândido aumentou nove vezes nos últimos nove anos
(descontada a inflação no período). Neste momento, em que as arenas da
Copa do Mundo da Fifa em 2014 – de cuja lei foi relator – têm as contas
devassadas por suspeitas de corrupção e um juiz espanhol mandou prender o
ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira, o eclético parlamentar achou um
parceiro no Senado: o relator da reforma política e líder do governo
Temer na Casa, Romero Jucá (PMDB-AP).
Enquanto Cândido e Jucá providenciam a
engorda dos cofres partidários para garantir as campanhas perdulárias,
que vinham sendo feitas à custa de propinas milionárias, a comissão
especial da reforma do Código de Processo Penal (CPP) batalha pelo
abrandamento da legislação de combate à corrupção no Brasil.
A reforma do CPP, que é de 1941, foi
aprovada no Senado em 2010. Na Câmara ficou esquecida até o ano passado e
foi desengavetada durante o mandarinato do ex-deputado Eduardo Cunha
(PMDB-RJ), atualmente preso em Curitiba. O presidente da comissão
especial que discute as mudanças na Casa, deputado Danilo Forte
(PSB-CE), que apareceu recentemente na lambança de Temer ao tentar
atravessar a adesão dos dissidentes do PSB ao DEM, discorda de presos
fecharem acordos de delação premiada com procuradores.
Forte também considera que é preciso
punir juiz que desrespeite as regras da condução coercitiva, que deveria
ser empregada apenas se uma pessoa se negar a prestar depoimento. O
presidente da comissão especial parece até ter inspirado sua ideia na
recente decisão de Nicolás Maduro, que ameaçou de prisão os juízes que o
Parlamento da Venezuela – de maioria oposicionista e contra a
Constituinte que ele quer eleger no domingo, no modelo da pregada por
Dilma – escolheu para a Suprema Corte.
A reforma política de Cândido e Jucá e
as mudanças no CPP propostas por Forte, aliado de Temer, evidenciam
tentativas de adaptar as leis eleitorais e penais do País aos interesses
pessoais de chefões políticos encalacrados nas operações, Lava Jato
entre elas, inspiradas em convenções da ONU, da OEA e da OCDE contra a
roubalheira geral, importadas por Fernando Henrique e Dilma e agora
ameaçadas pelos que defendem a impunidade de quem for flagrado. Esse
“acordão”, que denota fraqueza e sordidez, põe o Brasil, já na contramão
da prosperidade, também na trilha oposta da luta contra o roubo. Aqui a
vergonha empobrece o portador.
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