Apenas mais um dia no Rio - Medo provoca cada vez mais transtornos psiquiátricos
Com medo de se identificar, um bancário sequestrado por bandidos sabe que algo mudou dentro dele. Os hábitos de antes, mais leves, bem ao estilo carioca, perderam a naturalidade e a apreensão tomou conta de sua rotina. Ele próprio diz que ficou com uma cicatriz psicológica. — É uma cicatriz que se reflete em todos pormenores, da hora em que acordo até a hora de dormir. Interfere no que eu faço ou deixo de fazer. Você aprende a olhar para essa marca no espelho e a lidar com ela. Mas não esquece.A falta de paz tem levado cada vez mais cariocas e pessoas que escolheram viver na cidade para os consultórios de psicanálise e psiquiatria. Médicos do Instituto de Psiquiatria (Ipub) da UFRJ constatam que as pessoas, submetidas à pressão das ruas, estão adoecendo. A pesquisadora do Ipub Herika Cristina da Silva afirma que, além de sobressaltadas, hipervigilantes e ansiosas, as vítimas ou testemunhas da violência podem desenvolver depressões e crises de pânico. Ou ainda ter sequelas mais graves, como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), com sintomas como pesadelos, lembranças perturbadoras, insônia, distanciamento ou perda de interesse por atividades.
— Um estudo da nossa equipe constatou que 86% dos moradores do Rio e de São Paulo já tinham sido expostos a pelo menos a um evento traumático ao longo da vida. No Rio, a prevalência de TEPT chegaria a 8,7% da população (o que equivaleria a cerca de 500 mil pessoas) — afirma.
Aprovado num teste para um musical no Rio, o ator Júlio Ferreira, do Amazonas, desembarcou no Rio cheio de esperança porque realizaria um sonho. A euforia nem tinha passado quando a cidade lhe deu as “boas-vindas”. Ele teve o dinheiro roubado num táxi, ao sair do aeroporto, e, mal deixou as malas na casa de um amigo, no Engenho Novo, teve que correr de um tiroteio entre policiais e traficantes. Abruptamente, foi apresentado à violência cotidiana. — A cidade perdeu o brilho. Não tenho coragem de sair à noite, nem de ir à peça de teatro. É de casa para o trabalho. E só — diz o ator recém-chegado.
Os temores se espalham e tornam ruas e bairros inteiros proibitivos. O resultado é que muitos optam por ficar dentro de casa, esvaziando a cena boêmia que era uma característica tão nossa. Presidente do Sindicato de Bares e Restaurantes (SindRio), Pedro de Lamare diz que, conjugada à crise, a violência reduziu em 25% a 30%, em média, o movimento dos restaurantes. Alguns têm fechado mais cedo. Pela primeira vez, afirma ele, a queda é maior nos estabelecimentos de rua do que nos shoppings. E afetou em cheio redutos da noite, como Lapa e Santa Teresa:
— Os clientes optam por ficar mais perto de casa. Quem mora no Jardim Botânico repensa se vai a um bar na Zona Norte, mas também a Ipanema ou ao Leblon. O Rio está retroagindo à velha cidade partida. As pessoas têm se isolado, no máximo, em ilhas mais movimentadas, onde se sentem um pouco mais seguras, como o polo gastronômico de Botafogo ou a Avenida Olegário Maciel, na Barra.
Especialista nas causas do transtorno, a psiquiatra Mariana Luz, também do Ipub, não tem dúvidas: a violência interpessoal urbana é o trauma com maior potencial de gerar a doença.
— Um ato de violência contamina muitas pessoas, não apenas quem o sofreu. Os traumas que chegam até nós estão ligados a atos cada vez mais violentos, cruéis e que estão disseminados por toda a sociedade.
O silêncio em Santa Teresa, com bares e restaurantes vazios às 20h30m da última quinta-feira, sintetizava as inquietações que assombram o Rio. A violência, associada à crise, tem tirado o carioca de circulação, quando não contribui para fazê-los desistir da cidade. Este domingo será o último dia da publicitária Isadora Prado em Botafogo. Amanhã, ela se muda para São Paulo, seguindo o caminho já trilhado por seu namorado e por amigos. — Recentemente, estava numa farmácia de Botafogo quando adolescentes entraram quebrando tudo. Antes, tinha sido assaltada duas vezes, na Barra e em Jacarepaguá. E essa última vez me deixou muito traumatizada. Passei a olhar para trás e para os lados, com medo de ser atacada de novo. Nunca imaginei que pudesse ter uma sensação de mais segurança em São Paulo. Mas, aqui, chegamos ao absurdo. Esse foi um dos fatores que pesaram na minha decisão — diz Isadora.
Já Leonardo Moraes, estudante de gastronomia, resolveu ir mais longe. Tios e primos dele trocaram o Rio pelos Estados Unidos e Portugal. Ele deixará Padre Miguel para tentar a sorte na Europa. Sempre defendi meu país, minha cidade. Mas, agora, tenho mais motivos para ir embora, e a violência é um deles. Um monte de amigos está fazendo o mesmo — afirma. — Fui roubado duas vezes em menos de um mês. Em um dos assaltos, levaram até meus chocolates'.
Os relatos se multiplicam: pânico de motos e bicicletas, muito usadas por assaltantes; receio de abrir o portão de casa ou do prédio; pavor dos túneis e vias expressas. Medo que acompanha a oficial de justiça Gyzele Tuber, moradora do Itanhangá e que trabalha em Duque de Caxias: — Preciso passar pelas linhas Vermelha e Amarela e me sinto encurralada. Se o trânsito está engarrafado, acho que está acontecendo algo. Se está livre demais, também. Esse temor já chegou à minha vida pessoal. Restringi minhas saídas de casa. Depois das 20h, só se for algo muito especial. Vivemos como reféns.
Nas favelas, nervos à flor da pele
K. tinha 13 anos quando a polícia invadiu sua casa e apontou um fuzil
contra seu peito. V., de 17, perdeu o avô baleado numa operação na
favela. M., aos 19, tem sua laje usada como rota de fuga de bandidos. E
C., de 17, cai no choro toda vez que lembra da amiga que encontrou
morta, vítima de um estupro. Para esses jovens moradores de Acari, a
violência é devastadora. Eles ficam no meio do fogo cruzado, acuados por
confrontos do tráfico, desmandos da polícia e ataques de criminosos que
os perseguem até dentro da escola. As marcas dessa rotina, eles
carregam aonde vão. — O barulho de helicóptero é assustador. Parece o começo da guerra. O
chão perto da minha casa é todo furado pelos disparos feitos das
aeronaves — diz V., que precisou fazer terapia após a morte do avô. —
Desenvolvi pressão alta e comecei a engordar. Meu grande receio é sair
de casa e não voltar mais. Tenho medo de ir para a escola. Afeta até a
minha procura por um emprego. Esconder-se de tiroteios não é para eles algo excepcional. E as histórias para contar são assim mesmo, no plural. Outro adolescente, de 16 anos, diz que tenta aparentar calma sempre que se depara com um confronto. Mas, no fundo, fica aterrorizado: — Uma vez me rastejei pelo chão para escapar. Pensaram que eu estava morto. Ando sempre alerta. De um segundo para outro, tudo pode mudar brutalmente.
E a polícia, que deveria defendê-los, também amedronta. — Já presenciei um policial matando uma pessoa. Era bandido, sim. Mas não deveria ser morto — indigna-se C. [pensamento errado o de C. Entende que o bandido deveria permanecer vivo para matar uma pessoa de bem. BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO.] — Tenho trauma de polícia desde pequena. Quando os vejo, não consigo nem falar, só chorar. Fico paralisada — relata K.
Todos participam de um programa para jovens da Secretaria municipal de Assistência Social. Ao fim de cada encontro, independentemente das crenças de cada um, rezam pela paz.
Mulheres de PMs relatam pânico
Terça-feira passada. Às 4h, o marido de Mara Gomes sai para o trabalho, e ela não dorme mais. Chora, entra em pânico, porque dois dias antes ele era um dos policiais militares encurralados por bandidos no Vidigal, onde um colega dele, o terceiro-sargento Hudson Silva de Araujo, tornou-se o 91º PM morto no Rio este ano. — Tem sido apavorante. Nós, parentes de policiais, não conseguimos mais ter orgulho da profissão deles. Temos medo. Não sabemos quem será a próxima viúva — dizia Mara, que horas depois prestaria condolências à mulher de Hudson no enterro do PM, em Sulacap.
Tomada pelos mesmos temores de Mara, Carine Diniz precisou de antidepressivos. Escutava o interfone de casa tocar o tempo inteiro, sem que houvesse ninguém na porta. Era a apreensão de que chegasse alguma notícia ruim do marido. — Telefonar para ele, e a ligação cair na caixa postal é desesperador. Estamos vivendo pela fé, literalmente — diz.
Sair para se divertir, sobretudo à noite, virou um martírio. No caso de Claudenice dos Santos, algo impensável por quase seis meses, depois de o marido ter sido executado na frente de um dos filhos do casal: — É devastador. Por meses, não colocava o pé fora de casa, a não ser que um amigo me pusesse dentro de um carro e me levasse. Estou tentando retomar minha vida. Mas ainda não vou nem ao mercadinho da esquina sozinha.
E quando essas famílias encaram as ruas, levam o medo de carona. A filha adolescente de um policial conta que entra em restaurantes procurando onde se esconder. Sobressalto sem fim também vivido por Darla Nascimento: — Meu marido está dando aulas de táticas de fuga, a mim e à minha filha. É como se vivêssemos uma guerra.
Palavra de especialista: Herika Cristina da Silva
Terça-feira passada. Às 4h, o marido de Mara Gomes sai para o trabalho, e ela não dorme mais. Chora, entra em pânico, porque dois dias antes ele era um dos policiais militares encurralados por bandidos no Vidigal, onde um colega dele, o terceiro-sargento Hudson Silva de Araujo, tornou-se o 91º PM morto no Rio este ano. — Tem sido apavorante. Nós, parentes de policiais, não conseguimos mais ter orgulho da profissão deles. Temos medo. Não sabemos quem será a próxima viúva — dizia Mara, que horas depois prestaria condolências à mulher de Hudson no enterro do PM, em Sulacap.
Indignação. Enterro de 91º PM morto no Rio este ano: marido de Mara Gomes estava com policial assassinado - Domingos Peixoto / Agência O Globo
Tomada pelos mesmos temores de Mara, Carine Diniz precisou de antidepressivos. Escutava o interfone de casa tocar o tempo inteiro, sem que houvesse ninguém na porta. Era a apreensão de que chegasse alguma notícia ruim do marido. — Telefonar para ele, e a ligação cair na caixa postal é desesperador. Estamos vivendo pela fé, literalmente — diz.
Sair para se divertir, sobretudo à noite, virou um martírio. No caso de Claudenice dos Santos, algo impensável por quase seis meses, depois de o marido ter sido executado na frente de um dos filhos do casal: — É devastador. Por meses, não colocava o pé fora de casa, a não ser que um amigo me pusesse dentro de um carro e me levasse. Estou tentando retomar minha vida. Mas ainda não vou nem ao mercadinho da esquina sozinha.
E quando essas famílias encaram as ruas, levam o medo de carona. A filha adolescente de um policial conta que entra em restaurantes procurando onde se esconder. Sobressalto sem fim também vivido por Darla Nascimento: — Meu marido está dando aulas de táticas de fuga, a mim e à minha filha. É como se vivêssemos uma guerra.
Palavra de especialista: Herika Cristina da Silva
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