Muita gente, lá fora e aqui, está cometendo um grande equívoco: pensar a Rússia como se fosse a União Soviética. Não é.
No tempo da URSS, Moscou tinha uma mensagem não apenas para a Europa,
mas para o mundo todo. O marxismo soviético era uma construção
completa: definia desde a organização da sociedade política, da produção
e distribuição de riqueza até a vida cultural.
Mais importante: essa ideologia era partilhada pelo mundo afora. Nos
países já no âmbito da URSS, havia partidos, militância e apoios locais
ao marxismo soviético.
Não se tratava de uma “simples” dominação externa, mas de identidade ideológica, pelo menos de parte das populações. Mais ainda: nos países que estavam na órbita do Ocidente, em muitos
havia partidos comunistas de sólida representação popular. Itália e
França, por exemplo.
Em outros países, havia PCs ilegais, mas muito atuantes, especialmente no setor cultural. Em Moscou, existia uma universidade onde só estudavam alunos de
outros países. Uma escola séria, competente no ensino de história,
política e cultura, do ponto de vista do marxismo soviético.
A guerra fria, portanto, era uma disputa entre duas articuladas visões de mundo.
Uma dessas visões simplesmente veio abaixo. O socialismo soviético
morreu – e por ação de suas populações locais. Reparem: o muro ruiu sem
que o Ocidente precisasse dar um tiro.
Não houve invasão do Leste, nenhuma conquista. Apenas as populações
locais, quando puderam ver o que acontecia no outro lado do mundo,
decidiram mudar de vida e de regime. Para o marxismo soviético, foi uma
vergonha como os alemães orientais correram para comprar Coca-Cola em
Berlim.
Como os ex-socialistas se arrumaram? Pessoal da Europa Leste entendeu
rapidamente que o melhor negócio era entrar para a União Europeia – um
mar de prosperidade. Bastava olhar como Espanha e Portugal saíram da
pobreza com a entrada na UE.
A China, sempre mais competente, já percebera a mudança – e
introduzia o capitalismo e a propriedade privada, base de sua ascensão,
ainda que com forte controle estatal.
As opções ficaram assim, simplificando: qual capitalismo se vai seguir, com mais ou menos Estado?
Na política, também simplificou: ou a democracia ou a ditadura.
A Rússia de Putin é o quê? Um capitalismo de compadres,”crony
capitalism”, e uma ditadura assassina. E um maluco que se acha na
“Grande Rússia”.
Para o ex-soviéticos, bastava entrar na União Europeia em busca de
prosperidade. Não se interessavam pela OTAN, muito menos hostilizar a
Rússia.
Por que, a um determinado momento, resolveram entrar para a OTAN? Por
causa das ameaças de Putin, quando ele conseguiu dar uma arrumada na
Rússia.
Em resumo – a URSS tinha uma proposta para o mundo – um baita equívoco, como se viu depois. Mas brilhou durante muito tempo.
A Rússia de Putin tem o que? Ameaças imperialistas.
Portanto, chega dessa história de avanço da OTAN para o Leste. Foram
as populações do Leste que, democraticamente, fizeram sua opção.
Azar da Ucrânia, que se atrasou com aquele ditador pró-russo. Aliás,
reparem: só ficam com a Rússia os ditadores, incluindo os nossos aqui da
América Latina. A Rússia não foi ameaçada. Ela é a ameaça. E Putin vai cair do mesmo modo que caíram os outros: pela reação de seu próprio povo.
Portanto, chega de comparar a invasão da Ucrânia com os casos de
Iraque, Líbia, Síria, Afeganistão – estados incentivadores de
terrorismo. EUA e Europa têm seus pecados, mas não se pode compará-los
com essa Rússia de Putin.
A Europa abriu-se a negócios com as empresas russas.
Companhias e investidores ocidentais foram para a Rússia. Empresas russas se instalaram na Europa.
Por que Putin simplesmente não deixou essa integração prosseguir? A melhor hipótese: ele temia que a “excessiva” ligação com o Ocidente mostrasse aos russos onde a vida é melhor.
[lembrando: - um dos pilares do Ocidente, os EUA, tem um presidente que iniciou seu mandato, assinando ordens executivas favorecendo o aborto, limitando a autoridade das polícias e por aí vai;
- o Zelinsky todo dia reúne jornalistas apoiadores e repete aquele monótono lenga-lenga de que o pessoal da Ucrânia é valente, não vai se render, que mais sanções precisam ser aplicadas contra a Rússia,o espaço aéreo da Ucrânia deve ser declarado 'zona de exclusão' = uma forma malandra de tentar envolver outros países na 'sua' guerra, etc, etc.
Encerra o palavrório e no dia seguinte repete tudo, com um detalhe inaceitável: mais ucranianos mortos.
Tal situação impõe a retirada imediata do Zelinsky, um plebiscito supervisionado pela ONU para que o POVO UCRANIANO decida soberanamente qual destino quer?
O que não pode continuar é que para satisfazer a vaidade do presidente ucraniano, mais ucranianos continuem morrendo.]
E Putin simplesmente não podia se juntar à União Europeia: seu regime
não passa nos critérios de democracia e legislação de direitos humanos. Sobrou o que? Uma tentativa de formar um império de ditadores.
Coluna publicada em O Globo - Economia 12 de março de 2022