Fernando Schüler
Nossa Suprema Corte tem histórico bastante problemático com intervenções no mundo político
Nesta semana aconteceu em Brasília um evento que traduz bem a confusão
política em que nos encontramos. O STF convocou uma audiência para
discutir a hipótese das candidaturas independentes nas eleições
brasileiras. Discutiu-se de tudo por lá. De um lado, a tese da “ditadura” exercida
pelos partidos; de outro, os riscos da “carnavalização” da política,
caso quebrarmos seu monopólio eleitoral. No mais, uma criativa discussão
sobre as chances de um “caminho” para mudar o sentido da Constituição,
sem alterar o seu texto.
O debate é pertinente. A revolução tecnológica mudou a cara da
democracia, os indivíduos ganharam poder, explodiram os movimentos em
rede, e é bastante lógico que os partidos políticos abram espaço a novos
modos de expressão política. O Brasil pertence a um grupo minoritário de países que vedam
integralmente candidaturas avulsas. Emmanuel Macron foi eleito
presidente da França sem filiação partidária [um exemplo a não ser seguido - o Macron está conseguindo repetir, de forma pior, o ano de 68.]. Um candidato independente
pode concorrer à Presidência dos Estados Unidos. Há muita coisa no mundo
diferente do que o Brasil decidiu fazer. Imaginem comparar nossa
legislação trabalhista com a regra laboral americana, para ficar apenas
em um exemplo rápido.
Tudo muito bacana, apenas com um detalhe: este não é um debate a ser
feito pelo Supremo, mas pelo Congresso Nacional. Está lá no artigo 14º
da Constituição, com uma clareza constrangedora, que a elegibilidade, no
Brasil, exige a filiação partidária. É imensamente sedutora a ideia de que o Supremo possa funcionar como um
sábio e generoso atalho da República. [decisões recentes do STF mostram que a Suprema Corte por ser um atalho, mas o atalho para a INsegurança Jurídica, a dúvida, a vacilação.] É isso que depreendo da concepção
“iluminista” do papel de uma Suprema Corte, nas democracias atuais, na
conhecida formulação do ministro Luís Roberto Barroso.
O ministro Barroso, aliás, acerta ao dizer que, quando se lida com
questões “na fronteira entre o direito e a política”, as pessoas tendem a
aplaudir o ativismo no Supremo quando concordam com as suas decisões.
Quando discordam, clamam pela autonomia do Congresso. É exatamente assim. As pessoas são passionais e é previsível que queiram
ver o Supremo funcionando como um atalho para suas ideias. O ponto é
que ele não deve agir assim, e quem sabe seja precisamente aí que
resida, ou deveria residir, sua virtude.
Isto nos condena ao imobilismo constitucional? De modo algum. O
Congresso aprovou mais de cem emendas à Constituição de 1988. Nos
últimos seis anos, foram 28 alterações. Até mesmo para amarrar a
execução de emendas coletivas no orçamento nosso Legislativo soube mexer
na Constituição. Não há omissão legislativa. [só que quando o tema está inserido no 'politicamente correto' o STF caracteriza uma omissão,inexistente, e legisla sobre ela.] Há apenas escolhas, e é
disso que é feita a democracia. Nossa Suprema Corte tem um histórico bastante problemático com
intervenções heterodoxas no mundo político. A mais conhecida foi a
derrubada da cláusula de barreira, em 2006, que nos ajudou a alcançar o
honroso posto de país com a maior fragmentação partidária do planeta,
entre as grandes democracias.
Boa parte do desgaste do sistema partidário que o Supremo agora discute
vem deste quadro de fragmentação, e direta ou indiretamente daquela
decisão. Curioso que agora o Supremo resolva corrigir tudo com uma nova
intervenção, sugerindo tornar letra morta uma frase inscrita no artigo
14º da Constituição. Isto é um erro. Um gasto indevido de energia e um sinal trocado para a
sociedade. Alimenta-se o processo de judicialização da política, e o
incentivo vem do próprio STF ao reiterar que é possível, sob certas
circunstâncias, dar um jeito na Constituição.
O nome disso é incerteza institucional, confusão entre os Poderes e
descrédito para a própria corte. O melhor que país poderia fazer é
aproveitar o atual ímpeto reformista do Congresso e aprovar de vez uma
reforma política, que poderia inclusive incluir as candidaturas avulsas. Mas seguindo a regra do jogo, respeitando-se a ordem constitucional que a duras penas soubemos construir.
Fernando Schüler, colunista - Folha de S. Paulo
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