Revista Oeste
Quando o medo paralisante acabar, o STF não demorará a criar juízo e resgatar o respeito que perdeu
O ex-desembargador e advogado Sebastião Coelho da Silva e o ministro
Alexandre de Moraes, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em
Brasília, na manhã desta quarta-feira, 13, durante o início do julgamento dos
acusados de participar da invasão aos prédios públicos na Praça dos Três
Poderes | Foto: Wilton Junior/Estadão Conteúdo
Neste 13 de setembro, no Supremo Tribunal Federal, o desembargador aposentado Sebastião Coelho ocupou a tribuna reservada ao advogado de defesa para cumprir a missão impossível: livrar da condenação o técnico em saneamento Aécio Lúcio Costa Pereira, 51 anos, paulista de São José do Rio Preto.
Ele é o primeiro da extensa fila dos réus composta de brasileiros acusados de envolvimento nos ataques às sedes dos Três Poderes ocorridos em 8 de janeiro.
Proibido de acompanhar o julgamento no plenário, o cliente ouviu numa cela o recado do defensor: a decisão seria política.
Embora saiba que mesmo provas materiais indesmentíveis valem menos que zero em decisões tão previsíveis quanto a mudança das estações, Coelho incluiu na sustentação oral argumentações jurídicas. Informou, por exemplo, que não é possível enxergar um golpe de Estado na depredação de prédios e objetos pertencentes ao patrimônio público.
“As armas que nós temos neste processo são canivetes, bolinhas de gude e machado”, recordou o advogado. “Não havia nenhum quartel de prontidão. Quem iria assumir o poder, se houvesse um golpe de Estado?”
Coelho também advertiu que estavam todos no local errado: “A Constituição diz que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Não haverá juízo de exceção. No caso que estamos a examinar, a competência para o julgamento é do juízo federal de primeira instância. Este tribunal é ilegítimo para este julgamento”.
Ciente de que essas e outras obviedades foram deliberadamente esquecidas, Coelho optou por uma trilha que o levou a compensar a derrota inevitável com a façanha muito mais impressionante: com uma curta e contundente sequência de recados marcados pela corajosa lucidez, mandou às favas a pandemia de medo estimulada há mais de quatro anos por decisões ilegais, abusivas e autoritárias chanceladas pela corte que Alexandre de Moraes lidera.
O primeiro recado teve por destinatário o presidente do Conselho Nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, que começou a investigar Coelho com a quebra do seu sigilo bancário entre 1º de agosto de 2022 e 8 de janeiro de 2023. Depois de registrar que soubera quando estava a caminho do tribunal, o investigado comunicou a Salomão que a tentativa de intimidação não dera resultados: “Estou com 68 anos e alguns probleminhas de saúde. Posso morrer a qualquer momento. Não tenho tempo para ter medo”. Na mesma quarta-feira, Coelho encaminhou a veículos da imprensa cópias da sua declaração de renda e extratos da conta bancária. “Nada me intimida”, reiterou. Nem carrancas togadas, informou na parte final da exposição. “Nestas bancadas aqui, dos dois lados, estão as pessoas mais odiadas deste país”, avisou. Ressalvando que dizia aquilo “com tristeza”, reprisou a constatação sublinhada pelo silêncio constrangido da plateia engrossada por estudantes de Direito. “Vossas Excelências têm que ter a consciência de que são pessoas odiadas. Alguém tem que dizer, porque precisam saber disso.” Alexandre de Moraes mereceu um lembrete pessoal e intransferível: “A defesa entende que Vossa Excelência é suspeito para julgar esse caso”. Se o Brasil não estivesse do avesso, só teriam seu destino decidido no STF gente com direito a foro privilegiado ou tripulantes de processos que por algum motivo merecem as atenções da mais alta instância. Mas estes são tempos estranhos.
Desde 2019, quando foi aberto o chamado inquérito sobre fake news e atos antidemocráticos (mais conhecido pelo codinome perfeito: “inquérito do fim do mundo”), o sistema acusatório brasileiro foi demolido.
Ninguém sabe direito quantas investigações do gênero são conduzidas por Moraes. Só os barulhos do 8 de janeiro são alvejados por seis inquéritos, todos secretos.
Os indiciados não sabem com precisão em quais crimes foram enquadrados.
Se não existe norma jurídica que autorize a punição de um perseguido, cria-se alguma.
Se a Constituição proíbe, dá-se um jeito.
O tribunal incumbido de garantir a segurança jurídica do país e preservar as normas constitucionais viola até cláusula pétrea e eterniza a insegurança. Com frequência alarmante, age fora da lei — comandado por um ministro incapaz de admitir quaisquer críticas, reparos ou opiniões divergentes.
Previsivelmente, a fala do desembargador aposentado fez a temperatura de Moraes roçar o ponto de combustão — e ali permanecer, indiferente aos sucessivos goles no copo com água.
Sempre enredado no cipoal de regências verbais, pronomes, plurais e redundâncias, o relator foi à réplica: “Às vezes, o terraplanismo e o negacionismo obscuro de algumas pessoas fazem parecer que tivemos um domingo no parque no dia 8 de janeiro. É tão ridículo ouvir isso que a Ordem dos Advogados do Brasil não deveria permitir algo assim”. Achou pouco determinar que a OAB proíba seus integrantes de contrariá-lo. “Os extremistas que não gostam do STF são minoria. Isso ficou demonstrado nas urnas e nos atos golpistas, que uma minoria praticou e foi repudiada pela população brasileira”, transbordou o pote até aqui de cólera. Nas urnas?
Moraes deve acreditar que, como o STF apoiou o candidato vitorioso, só um punhado de 58 milhões de fascistas odeia os heróis togados que salvaram a democracia.
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Depois de condenar o réu a 17 anos de prisão em regime fechado, além de impor-lhe a “multa solidária” de R$ 45 mil, o relator ouviu com expressão entediada as sensatas observações do revisor Nunes Marques. Um dos dois indicados por Jair Bolsonaro, o ministro reiterou que o julgamento não será justo sem a individualização de conduta. “Uma pessoa não pode ser responsabilizada pelo que outra cometeu”, ensinou Nunes Marques. “A individualização da conduta do agente é uma garantia”, afirmou. “O artigo 41 do Código de Processo Penal estabelece como requisitos de validade da denúncia a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado e a classificação do crime”, concorda o advogado criminalista Davi Rodney Silva. “No caso de 8 de janeiro, com as imagens e todo material investigado, é possível individualizar a conduta.”
Em poucas linhas, Nunes Marques rasgou a fantasia do “golpe de Estado”. “Os expedientes empregados no dia 8 de janeiro de 2023 caracterizam, em realidade, a hipótese de crime impossível, em virtude da ineficácia absoluta do meio empregado pelos manifestantes para atingir o Estado Democrático de Direito.” Ele sentenciou Pereira a dois anos e meio de prisão em regime aberto, por “deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado pela violência”.
A voz da intolerância voltou a ecoar quando André Mendonça, também indicado por Bolsonaro, contestou uma das certezas de Moraes. “Os manifestantes não agiram para tentar depor o governo”, afirmou o ministro em seu voto. “A deposição do governo dependeria de atos que não estavam ao alcance dessas pessoas.” Ministro da Justiça durante o governo Bolsonaro, Mendonça estranhou a facilidade com que tantos manifestantes entraram nos prédios. “Onde estava todo o efetivo da Força Nacional? Em todos os movimentos de 7 de setembro, eu estava de plantão com uma equipe à disposição, seja no Ministério da Justiça, seja com policiais da Força Nacional que chegariam aqui em alguns minutos. Não consigo entender como o Palácio do Planalto foi invadido da forma que foi invadido.”
A Justiça não sabe dizer quantos são os que deixaram a cadeia por falta de provas mas só se livrarão da tornozeleira, ou da volta a uma cela, se aceitarem o infame “acordo de persecução penal” proposto pela PGR: para recuperar a liberdade por inteiro, um inocente terá de declarar-se culpado
Foi aparteado pelo morubixaba do Pretório Excelso. “Vossa Excelência querer falar que a culpa do 8 de janeiro é do ministro da Justiça é um absurdo, quando cinco comandantes da Polícia Militar de Brasília estão presos”, irritou-se Moraes. “O ex-ministro da Justiça, que fugiu para os Estados Unidos e jogou o celular no lixo, foi preso. Vossa Excelência vem ao plenário do STF, que foi destruído, falar que houve uma conspiração do governo contra o próprio governo. Tenha dó.”
Mendonça recomendou ao relator que não lhe atribuísse declarações que não fizera. Mas não absolveu o réu de todos os cinco crimes que lhe foram imputados por Carlos Frederico dos Santos, representante da Procuradoria-Geral da República, enfaticamente endossados por Moraes: abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Mendonça limitou-se a abrandar a pena aplicada por Moraes e encampada pela maioria do plenário. Com pequenas diferenças, o mesmo castigo foi estendido a Thiago Mathar, 43 anos, e Mateus Lázaro, 24 anos, julgados na quinta-feira.
Não houve tempo para punir o quarto integrante do primeiro lote: Moacir José dos Santos, 52.
Thiago e Moacir foram capturados no interior de prédios invadidos.
Mateus estava a 5 quilômetros da Praça dos Três Poderes ao ser detido por policiais.
Mas, como Aécio, os três foram enquadrados nos mesmos cinco delitos.
É improvável que, como ocorreu no caso de Mateus, a distância do epicentro dos distúrbios atenue o ímpeto dos carcereiros nos próximos julgamentos. “A dosimetria das penas incorreu em excessos”, constata o advogado Davi Rodney Silva. “Os ministros desconsideraram o fato de os réus serem primários.” Nas duas sessões, os doutores que controlam o Supremo suprimiram pedaços de vidas sem hesitações — e sem a angústia que costuma visitar juízes que não abdicaram da compaixão. Quando o calouro Cristiano Zanin, por exemplo, decidiu-se por um tempo de prisão ligeiramente inferior ao imposto por Moraes, o relator manteve o bom humor momentâneo. “Vossa Excelência ainda vai concordar comigo no número de anos”, brincou.
O desconforto provocado pela lentidão do julgamento deverá apressar a adoção das sessões virtuais. Segundo o levantamento mais recente divulgado pelo STF, 1.345 pessoas envolvidas nas manifestações de 8 de janeiro são atormentadas por medidas restritivas que incluem o uso de tornozeleira eletrônica, limitações geográficas para deslocamentos e a proibição do acesso a redes sociais.
A perversa criatividade dos carrascos brasileiros superou amplamente a imaginação dos congêneres a serviço de ditaduras já grisalhas, como as que infernizam Cuba ou a Coreia do Norte.
A incerteza expropriou o sono das vítimas da invenção de Moraes: a liberdade relativa, ou meia prisão. Nessa multidão figura a professora aposentada Iraci Nagoshi, 70 anos, que ficou sete meses encarcerada. Médicos confirmaram que Iraci enfrenta uma conjugação de moléstias — diabetes, hipertireoidismo e dislipidemia. Na cadeia, sobreviveu a crises de ansiedade e depressão. “Ela mesma não quer encontrar muita gente, por sua condição emocional”, relata o filho mais velho, Newton, que luta contra um câncer desde 2019. Segundo Newton, a mãe só sai de casa, em São Caetano do Sul, nos horários estabelecidos pelos policiais. “Ela está fazendo fisioterapia, três vezes por semana, para recuperar os movimentos do lado direito do rosto”, contou o filho.
O mato-grossense Jean da Silva, 27 anos, catador de materiais reciclados em Juara, não sabe por que continua obrigado a usar uma tornozeleira eletrônica desde que saiu da Papuda, em julho. Segundo a irmã Geane, ele é autista e é portador de deficiência intelectual moderada. Libertado depois de sete meses de prisão, Jean também não sabe que, dependendo dos humores de Moraes e seus parceiros, pode ser preso de novo, usar a tornozeleira por alguns anos ou submeter-se à meia prisão perpétua. Absurdos desse calibre não atrapalham o sossego dos ministros.
Só ficam indignados uns poucos advogados dispostos a enfrentar a arrogância, a soberba e os chiliques dos artilheiros do Timão da Toga. Na quinta-feira, por exemplo, outros dois defensores de “golpistas” foram alcançados pela ira de Moraes. O ministro irritou-se com Larissa Lopes de Araújo, que chorou ao recordar o martírio vivido pelo réu. “Sentimentalismo”, desdenhou Moraes. Hery Kattwinkel ouviu palavras semelhantes às endereçadas a Sebastião Coelho. Ao fim da sustentação oral, o advogado de Mathar foi qualificado de “medíocre” e “patético”. Nenhuma surpresa.
Surpreendentes foram os sinais de que a altivez e a coragem de Coelho são contagiosas.
Kattwinkel criticou com aspereza e sem temor algum o comportamento de Moraes e declarações desastradas de Luís Roberto Barroso.
Quando o medo paralisante acabar, o STF não demorará a criar juízo e resgatar o respeito que perdeu.
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Augusto Nunes E Cristyan Costa, colunista - Revista Oeste