Ambos gravam o momento da condução coercitiva de Jorge Picciani e o tornam público; a coincidência tem mais importância do que parece
Tanto o humorista Gregório Duvivier, do
agitprop esquerdista das redes, como o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ),
que comanda o agitprop de extrema-direita, também nas redes,
presenciaram o momento em que a Polícia Federal aborda o deputado
estadual Jorge Picciani (PMDB), presidente da Assembleia Legislativa do
Rio. Ambos gravaram vídeos. Ambos os tornaram públicos. Ambos foram
judiciosos sobre a operação e sobre o conduzido. Ambos buscavam insuflar
a sua galera. Como escreveria Trotsky, “diferentes e combinados”. Como
digo eu: opostos e combinados.
Nota talvez desnecessária, mas lá vai.
Ainda que não existisse contra Picciani uma só acusação criminal, ele
encarnaria boa parte do que execro em política. Dado o poder que tem,
concentra certamente parte da responsabilidade pelos descalabros de que é
vítima o Estado do Rio, que entrou em falência. Não fosse a paralisia
do resto do país que a intervenção federal ensejaria, esta seria
imperativa. Há muito o Rio perdeu a capacidade de se autogovernar. Tudo o
que é ruim no resto do país se tornou pior ali. A elite fluminense — ou
carioca, para ser mais preciso — percebeu tarde demais os desarranjos
da gestão de Sérgio Cabral. E assim foi porque, durante um bom tempo,
por lá, a seção de Esportes & Negócios dos poderosos da comunicação
local se sobrepôs às seções de polícia, de cidades, de política…
Imaginem: os cariocas foram até convencidos de que existia mesmo um
troço chamado “UPP”: Unidade de Polícia Pacificadora. [existe faz algum tempo e ainda continua existindo e continuará - no mínimo, até a posse de Bolsonaro - um troço chamado UPP - Unidade de Perigo ao Policial.] E não se deram o
trabalho, a maioria ao menos, de perguntar quem estava sendo pacificado
com quem.
Se perguntarem a minha impressão sobre
Picciani em qualquer assunto, direi sem hesitar: “Culpado!” E “culpado”
seja lá do que for. Mas calma lá! Não gostamos de Picciani, suponho,
porque temos a certeza — e os órgãos de investigação precisam
evidenciá-lo — de que ele desrespeita a lei. E deve responder segundo os
rigores e garantias da lei.
Personalidades públicas como Bolsonaro e
Duvivier estão querendo empurrar a política para a briga de rua, para o
confronto aberto. Ambos estão pouco se lixando para o Estado de
Direito. No seu mundo, não existe mediação. O comediante deve ter a
certeza de que existe uma central de conspiração contra os interesses
dos desvalidos, uma categoria que lhe é certamente estranha, mas que ele
adotou por dever de uma suposta boa consciência, que costuma ser
sinônimo da tolerância do gerente com o cão que insiste em rondar o
restaurante dos iluminados. A imagem original,, com adaptações, é de
Fernando Pessoa, antes que algum lido me acuse de plágio. Esse esgar de
militância política é mais comum no Rio, onde sobrenome e fidalguia,
necessariamente antes de cruzar o túnel Rebouças, ainda são importantes.
Dizer-se um amigo do povo, ou ser amigo do Marcelo Freixo, tanto faz!, é
coisa que a “noblesse oblige”.
Jair Bolsonaro encarna o extremo oposto
dessa tolerância com as “outras civilizações” que caracteriza os
pensadores com vista para o mar. Se, para aqueles, tudo é “normal”,
muito especialmente o excepcional em matéria de gostos e costumes, para
este normatizador da vida alheia, o que foge das suas estreitezas deve
ser combatido como ameaça, mal, agente patogênico. Quantas vezes se
depreende da fala de Bolsonaro que, claro!, ele nada tem contra
homossexuais em si. Ele só os acha perigosos porque, segundo o deputado,
são tendentes a espalhar os seus costumes, a corromper a educação, a
desestruturar as famílias. Aliás, segundo sua concepção não revista, que
eu saiba, se a criança tem uma boa educação, numa família tradicional,
não corre o risco de ser gay ou lésbica. Assim, é a falta de disciplina
que conduz àquilo que o deputado julga ser uma escolha. E, por óbvio,
uma escolha errada. Também ele vê uma central de conspirações a ser
combatida.
E qual é a diferença entre eles?
Nenhuma! Ambos têm pretextos muito eloquentes para o exercício da
intolerância e para incentivar não o julgamento dos culpados, mas o seu
linchamento. “Mas qual é o problema se culpados são?” O problema é esse
comportamento chegar ao poder. No começo, cassam-se os culpados. Depois,
aqueles que os poderosos de turno consideram culpados, ainda que sem
julgamento. Em seguida, os que apenas incomodam. E chega a hora em que
se passa a policiar o pensamento — se bem que isso já está em curso.
Picciani é matéria política precária
demais para que se rompa o princípio da civilidade e dos direitos
garantidos numa democracia. “Ah, a filmagem foi feita em ambiente
público…” Pois é. Nem tudo o que nos é permitido nos convém.
“A gente espera que a Polícia Federal
continue fazendo esse bom trabalho. A corrupção tem que ser combatida e
tem de ser com radicalismo mesmo”, afirmou Bolsonaro.
Para Duvivier, a condução coercitiva —
suponho que ele imaginava fosse prisão — é “um momento aguardado pelo
povo do Rio”. E depois: “Chegando ao Rio, recepção calorosa da PF”. Num vídeo
do Porta dos Fundos, que ficou famoso, a PF é apresentada como uma
força destinada a perseguir petistas, Lula e Dilma em particular. Ou por
outra: ele saúda agora a força que prende aqueles que tem por
adversários e demoniza aquela que prende os seus aliados ou vizinhos de
ideologia. São seus critérios de justiça.
E creiam: o humorista que se comporta
como se deputado fosse (um representante do povo) e o deputado que se
comporta como humorista (ele só não tem noção de sua graça trágica) se
estreitam num abraço insano. Ambos são personagens da miséria a que foi
conduzida a política brasileira. Para se livrar dos “Piccianis” da vida
alguém teve uma ideia genial: “Em vez de a gente seguir a lei e a
civilidade, por que não desprezá-las”?
Lula estaria no segundo turno hoje. E
Duvivier certamente se considera contemplado em suas escolhas. Bem,
Bolsonaro é ele próprio personagem agraciado, por ora, pela pantomima
que inventou e que a tantos seduz. E que gente como Duvivier alimenta. Eles emulam, se merecem, se estimulam e se satisfazem. O país que se dane. A fidalguia nunca
será atingida e continuará a ter pena de nós. A estupidez justiceira
nunca fenecerá — afinal, nunca nos faltarão os criminosos.
Blog Reinaldo Azevedo
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