A agenda do século XXI cai mal num país que não resolveu
a do XX e, em alguns aspectos, nem a do XIX
Duas
informações trazidas pelo Datafolha podem ser úteis para que se conheça melhor
o país que neste ano elegerá o presidente da República, 27 governadores, a
Câmara dos Deputados e dois terços do Senado. Mais da
metade dos entrevistados (57%) disseram que as mulheres que fazem aborto devem
ir para a cadeia e dois terços (66%) são contra a legalização do consumo de
maconha.
Outra
pesquisa, do Ibope, informa que 49% de seus entrevistados declararam-se a favor
da pena de morte. (Enquanto nos dois outros itens a pesquisa indica que a
oposição caiu, neste os defensores da pena de morte aumentaram, pois em 2011
estavam em 31%.)
De pouco
adianta adjetivar essas opiniões. A questão é substantiva: a banda do país que
ainda vive os problemas do século XX e, em certos casos, os do XIX, está
blindada em relação a alguns temas da agenda do XXI. Não faz o gênero
politicamente correto. [a maioria do povo brasileiro repudia o maldito politicamente correto.]
A
descriminalização da maconha é um tema da agenda do XXI. Já o direito das
mulheres ao aborto foi tema do XX, ainda divide a sociedade americana e
prevaleceu em dezenas de países.
E os
temas do XIX?
Estão
diante dos olhos de todos os brasileiros quando leem ou ouvem que a polícia
subiu um morro e matou “dois suspeitos”. Suspeitos de quê? Em 1835 o ministro
da Justiça falava de “uma população sempre perigosa”. Eram os negros livres. Há um
Brasil que é pouco ouvido e mal entendido, mas que está aí, não poderá se mudar
para Miami, e em outubro irá às urnas. 53% dos entrevistados com renda superior
a dez salários mínimos defendem a legalização da maconha e 70% querem a
descriminalização do aborto.
Na turma
que anda de ônibus (até dois salários mínimos), o quadro inverte-se e só 26% concordam
com as duas propostas. Moralista, essa faixa da população é a mais afetada pelo
que resta da agenda do XIX. [nesta ocasião temos que dizer, FELIZMENTE, a turma que anda de ônibus é bem mais numerosa, portanto, o aborto continuará sendo crime - a sociedade de bem esperado que com penas mais severas para a mãe assassina e para todos que de alguma forma contribuam para o crime hediondo que é matar um ser humano inocente e indefeso e ainda na barriga da mãe (?) - e a maconha continuará sendo ilegal e se espera que não só tráfico seja punido com penas mais severas e sim também o chamado usuário - que é o responsável maior pelo tráfico e deve ser punida com todo o rigor.]
Ela
associa o cheiro da maconha à bandidagem e quer a sua ordem porque mal consegue
viver na desordem que lhe é imposta. Veja-se o caso do teleférico do Morro do
Alemão, no Rio. Foi vendido como se fosse uma obra do século XXI. A doutora
Christine Lagarde, do FMI, andou nele e sentiu-se nos Alpes. Se o
bondinho do Pão de Açúcar ficar parado um só dia, o Brasil do XXI gritará. O
teleférico do Alemão está parado há mais de um ano, mas sua clientela está na
agenda do XIX. (Em 2012, o teleférico transportava 10 mil passageiros por dia,
o bondinho transporta 2.500).
Nos
últimos meses o Rio teve mais manifestações a favor da liberação da maconha do que
pela liberação do teleférico. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas as
duas querem dizer alguma coisa. No mínimo, que é mais confortável batalhar pela
agenda do XXI do que reconhecer que a do XIX continua aí. Os
números do Datafolha e do Ibope apontam para um país que é de bom tom fingir-se
que não existe. É a síndrome da Passeata dos Cem Mil, cujo cinquentenário
comemora-se em junho. Foi um momento de esplendor da vontade popular, mas deu
em rigorosamente nada. Uma imagem da multidão que marchou pela Avenida Rio
Branco tinha uma peculiaridade. Nela só havia um negro, o petroleiro Twist.
(Fora da lente do fotógrafo Evandro Teixeira, havia outros. Gilberto Gil, por
exemplo, na comissão de frente.)
Elio Gaspari, jornalista - Blog do Noblat - O Globo
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