Se você é um empresário, executivo no desfrute de um emprego
─ sobretudo na área de “Relações Externas” e similares ─ ou tem algum
tipo de situação profissional que o coloque na “classe A”, há uma boa
probabilidade de já ter dito, ou ouvido dizer no seu círculo social: “É muito ruim que o Lula se transforme num mártir”.
Admitindo-se a hipótese de que o ex-presidente possa, eventualmente,
vir mesmo a adquirir essa grife de “mártir”, a questão que se coloca é a
seguinte: “Muito bem ─ e o que você sugere que seja feito a respeito disso na prática?”
Eis aí o ponto central. Se você está preocupado com a possibilidade de
que a lei seja cumprida e Lula acabe indo para a cadeia ─ bem, você está
com um problema. A dificuldade, no caso, é que não há nada a fazer. Se
não houver uma virada de mesa grosseira nos nossos superiores e supremos
tribunais de Justiça, algo equivalente aos procedimentos em uso hoje em
dia nas altas cortes da Venezuela, [a situação da Venezuela não se repetirá no Brasil - lá a Justiça está agindo mais com o DIREITO DA FORÇA do que com a FORÇA DO DIREITO; no Brasil, se necessário for a o DIREITO DA FORÇA se fará presente, mas não estará sob o controle da Justiça.] a sentença que condenou o
ex-presidente a doze anos de prisão terá de ser cumprida. Aí, se ele
ficar com uma imagem de santo perseguido, oprimido e injustiçado perante
a opinião pública, paciência ─ o Brasil terá de conviver com esse grave
problema. A alternativa é rezar para que os nossos mais altos
magistrados resolvam que a lei não se aplica no caso de Lula, em nome
dos superiores interesses da pátria.
As aflições de uma parte da elite nacional (ou daquilo que
costuma ser descrito assim) quanto ao futuro penal de Lula é uma notável
comprovação do subdesenvolvimento brasileiro mais clássico. É o
contrário do progresso. Sociedade bem sucedida, democrática e próspera
cumpre a lei. Sociedade atrasada, injusta e desigual, como é o caso do
Brasil, acha que a aplicação da lei precisa ser feita “com cuidado”,
pois pode criar sérios problemas. As presentes desventuras do
ex-presidente, no entendimento de muitas das mais ilustres cabeças do
“Brasil civilizado”, liberal e frequentemente milionário, compõem um
“quadro de risco”. Para desmontá-lo, vêm com a conversa obsoleta,
medíocre e velhaca de que é preciso ter “criatividade” e buscar saídas
de “engenharia política” para obter um “consenso” capaz de “pacificar”
os ânimos e preparar o país para a “transição”. Pacificar o que, se não
há guerra? Transição para onde? Nada disso se explica com um mínimo de
lógica ou de inteligência. A única coisa que se entende, nisso tudo, é a
obsessão de passar por cima da lei.
A lenda do martírio de Lula, e das espantosas consequências
que isso teria sobre o Brasil e o resto do mundo, é uma dessas coisas
construídas em cima do nada. Elas exercem uma atração irresistível sobre
o público descrito nas primeiras linhas deste artigo ─ e, ao mesmo
tempo, sobre os formadores de opinião, etc. Desde que o ex-presidente
teve a sua condenação confirmada pelo Tribunal Federal Regional-4, em
fins de janeiro, ficou mais do que comprovado que as grandes massas
populares, que deveriam se levantar num movimento de revolta em apoio ao
líder, estão pouco ligando para o seu destino.
Tratava-se de fato
sabido há longo tempo, pela absoluta falta de interesse do público em
sair às ruas para defender a causa do PT, mas o debate político insistia
em manter a ficção do “levante social”. Agora está mais do que
demonstrado que isso não existe ─ e se isso não existe, de onde vem a
história de que Lula pode virar um “mártir” se tiver de cumprir sua
sentença? Não vem de lugar nenhum. É apenas uma invenção, como as
teorias dos seus advogados sobre “falta de provas”, acertos entre
magistrados para condenar o réu, desrespeito aos “procedimentos legais” e
tantas outras bobagens. É, também, um singular retrato da porção
“liberal” das classes ricas deste país. Têm, no seu íntimo, horror de
Lula. São contra tudo o que ele diz ─ embora uma boa parte tenha se
beneficiado do que ele fez. Não querem que Lula volte a ser presidente.
Mas, ao mesmo tempo, querem que ele não seja incomodado em nada. Em
matéria de almoço grátis, é o que há.
J. R. Guzzo - Veja
Publicado na edição impressa de Exame
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