É
estupendo que a Associação de Juízes Federais (Ajufe) tenha decidido
paralisar suas atividades por um dia em sinal de protesto — e
advertência — contra matéria a ser votada no Supremo, que pode extinguir
o auxílio-moradia da categoria. Se assim decidir o tribunal, é evidente
que o benefício para os juízes estaduais estará também com os dias
contados. E caberá, entendo eu, que o processo legislativo se encarregue
de definir os casos excepcionais que farão jus ao pagamento. Uma coisa é
certa: a farra em curso não pode continuar. E isso vale para o
auxílio-moradia e todos os outros penduricalhos.
Paralisação
de juízes, que corresponde ao aceno por uma greve? É um troço
vergonhoso. Mais de uma vez, já afirmei aqui que não consigo nem mesmo
conceber associações de magistrados de caráter sindical. Não tem jeito.
Acho que a coisa vai contra a natureza mesma da função. A
Constituição e as leis procuram ser claras na sua generalidade — nem
sempre conseguem, é verdade. O juiz existe porque lhe cabe ver cada caso
à luz da norma, e isso requer sempre dose considerável de
arbitrariedade nas duas pontas: seja na interpretação dos códigos, seja
na leitura das ocorrências que estão sob sua apreciação. Isso lhe
confere um poder fabuloso. É assim é com todos os magistrados, estaduais
ou federais, de qualquer instância.
Deveria
haver, assim, em todo juiz um ermitão, um homem solitário, torturado —
acho que cabe a palavra — pela obsessão de ser justo, para que o
arbítrio que ele exerce esteja o mais próximo possível do espírito das
leis e da realidade factual e o mais distante possível de suas paixões,
de sua ideologia, de sua visão de mundo, de suas idiossincrasias. Um
juiz, se querem saber, deveria ser o verdadeiro sacerdote da sociedade.
Não por acaso, na origem das culturas, era a autoridade religiosa que
exercia esse papel.
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A evolução das sociedades fez com que os sacerdotes ficassem, então, restritos ao credo que prodigalizam. Restou aos juízes o despir-se das paixões.
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A evolução das sociedades fez com que os sacerdotes ficassem, então, restritos ao credo que prodigalizam. Restou aos juízes o despir-se das paixões.
Assim,
soa-me incompreensível que juízes se juntem em associações, em
sindicatos. Com que propósito senão a defesa da própria corporação? Tal
prática toca nas raias do absurdo quando uma associação de juízes decide
nada menos do que pôr a faca no pescoço do Supremo em defesa de um
privilégio tão inaceitável como inexplicável.
A pressão
imediata é dirigida contra o Supremo, mas a bucha de canhão ou o boi de
piranha dos senhores togados é o povo brasileiro. Repito agora o que já
escrevi dezenas de vezes neste blog: numa democracia, a
greve de servidores públicos ou de trabalhadores que prestam serviços
de natureza pública deveria ser simplesmente proibida, sob pena de
demissão sumária. As coisas são simples assim. O patrão do servidor é o
povo. Quando funcionários públicos decidem fazer greve, estão
chantageando a população, em especial os mais pobres, porque, afinal,
são os que têm menos recursos para enfrentar os contratempos decorrentes
da paralisação.
Dado que
ser funcionário público é uma escolha — e isso vale também para os
juízes —, não uma imposição da natureza, não há justificativa possível
para a greve. Não se pode chantagear toda uma população em razão de um
interesse que não foi satisfeito ou de uma reivindicação que não foi
atendida. É curioso!
Até outro dia, boa parte da população estava convencida de que os males
do Brasil estavam todos concentrados no Congresso e no Executivo. Esses
dois Poderes estariam carcomidos pela corrupção e por interesses
mesquinhos, e juízes e procuradores se apresentavam como os demiurgos,
os salvadores, a palmatória do mundo. Bastou que viessem a público os
privilégios de que gozam os senhores magistrados e os membros do
Ministério Público, e assistiu-se, então, a uma explosão de vigarice
intelectual e desculpas esfarrapadas.
As duas
categorias, sempre tão solertes em apontar o dedo contra a cara de
deputados, senadores, ministros, governadores e presidente da República,
resolveram reagir da pior maneira possível: tudo faria parte de uma
grande orquestração conspiratória porque ambas estariam ocupadas em
combater a corrupção. Assim, que
importa que os bilhões torrados em penduricalhos como auxílio-moradia,
auxílio-creche, auxílio-paletó, auxílio-alimentação,
auxílio-pós-graduação não sejam nem mesmo tributados e superem em muito o
tal dinheiro recuperado pela Lava Jato? Os doutores não estão nem aí.
Querem aplicar a lei com o rigor de Savonarolas da República, mas só
para os membros dos dois outros Poderes. Eles próprios ficariam imunes
não apenas à sanha moralista — por esta, não tenho nenhuma simpatia —,
mas também à moral.
Consta que
a ministra Cármen Lúcia, que costuma fazer a política dos juízes, não
gostou da ameaça da Ajufe. A coisa teria caído mal no Supremo como um
todo. Já vi e ouvi a doutora a fazer reptos apaixonados contra aqueles
que, segundo ela, afrontam decisões da Justiça. Vamos ver o que diz no momento em que juízes decidem afrontar o próprio Supremo. E uma nota
para encerrar: acho que procuradores e juízes andam indo pouco ao
supermercado e não têm recorrido aos táxis e aplicativos — bem, de
ônibus é que não andam mesmo. A reputação dos doutores não está melhor
que a dos políticos. A sorte é não dependerem do voto popular…
Blog do Reinaldo Azevedo
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