Flávia Oliveira
Vulnerabilidade social escancarada pela pandemia encontrou combustível nefasto na escalada de preço dos alimentos
O
IBGE investiga desde 2004 a situação alimentar das famílias brasileiras.
Naquele ano, 34,9% dos lares enfrentavam algum nível de privação. Há três
escalas. Na mais branda, batizada de leve, sobra preocupação com a
possibilidade de não poder comprar comida e falta qualidade na alimentação. É
quando a dona de casa substitui por macarrão o “arroz nosso de cada dia pela
hora da morte”. No nível moderado, já considera alguma restrição a alimentos;
no grave, falta comida. Na série oficial, a insegurança alimentar caiu até
2013, quando bateu 22,6%. Dois anos atrás, chegou a 36,7% dos lares, pior nível
já registrado — comparável aos índices de pobreza de meados dos anos 1990,
segundo cálculos da economista Sonia Rocha no artigo “Pobreza e indigência no
Brasil” (IETS, 2006). Significa que 84,9 milhões de brasileiros viviam entre o
medo de não conseguir comprar e a realidade de não ter o que comer. Qualquer
semelhança com os 67 milhões de beneficiários das cinco primeiras parcelas de
R$ 600 do auxílio emergencial não é coincidência.
A
miséria faz mais vítimas no Nordeste, que abriga 1,3 milhão dos 3,1 milhões de
domicílios com alguma privação alimentar. Há dificuldades, sobretudo, em áreas
rurais, lares chefiados por mulheres ou por pessoas autodeclaradas pardas.
Metade dos brasileirinhos com menos de 5 anos — 6,5 milhões ao todo — crescia
em residências com algum grau de insegurança alimentar. É informação
preocupante, quando sabemos que alimentação adequada aumenta a capacidade de
aprendizado e melhora o desempenho escolar. Torna-se desesperadora à sombra de
uma crise sanitária que deixou crianças e adolescentes sem aulas e sem merenda.
Outra pesquisa do IBGE, a Pnad Covid-19, mostrou que, dos 46 milhões de
estudantes matriculados em escolas ou universidades, 7,3 milhões não tiveram
atividades na terceira semana de agosto. Também no mês passado, o Datafolha
apurou que mais da metade (53%) das pessoas que receberam o auxílio emergencial
usou o dinheiro para comprar alimentos.
A
política de transferência de renda montada às pressas (por sociedade civil,
Congresso Nacional e Executivo) em resposta à pandemia devolveu poder de compra
às famílias mais pobres, durante a devastação do mercado de trabalho. Na
esteira do isolamento social, necessário para conter a transmissão do novo
coronavírus, ocupações com e sem carteira assinada foram varridas. Milhões de
vagas desapareceram no trabalho doméstico, no comércio, no setor de serviços e
na construção, junto com elas refeições servidas em refeitórios e cozinhas dos
empregadores. Na metade mais pobre da população, a perda de renda individual do
trabalho bateu 27,92%, calculou o economista Marcelo Neri, da FGV Social: “Os
pobres foram ao inferno com o desemprego e chegaram ao céu com o auxílio
emergencial. A redução do valor (de R$ 600 para R$ 300 nas quatro últimas
parcelas) e o fim do programa (em dezembro) tendem a agravar a crise. Se o IBGE
fosse a campo em 2021, encontraria um cenário ainda pior em insegurança
alimentar”.
A vulnerabilidade social escancarada pela pandemia encontrou combustível nefasto na escalada de preço dos alimentos. Os itens mais presentes na mesa dos brasileiros começaram a subir em março, início do isolamento social, e não pararam mais. Em agosto, o grupo Alimentação e Bebidas registrou a maior variação (0,78%) desde 2012 no IPCA. Nos últimos 12 meses, enquanto a inflação oficial do país subiu 2,44%, o leite ficou 23% mais caro, o arroz 19%, o óleo de soja 18%, o feijão 12%, o frango em pedaços 7%. O preço da cebola disparou 50%, do alho 16%, das frutas 14%, do tomate 12%. As cotações das commodities agrícolas saltaram no mercado internacional e, com a alta do dólar, empurraram preços no atacado e no varejo brasileiros. A conjuntura encontrou o governo despreparado. De 2016 para cá, o país deu as costas à política de formação de estoques reguladores em prol da racionalidade econômico-financeira. A mão invisível do mercado é capaz de garantir preços mínimos a produtores, mas não põe comida na mesa.
Flávia Oliveira, colunista - O Globo
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