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sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O pesadelo da fome - O Globo

Flávia Oliveira

Vulnerabilidade social escancarada pela pandemia encontrou combustível nefasto na escalada de preço dos alimentos

A face mais dramática de qualquer crise econômico-social se abateu sobre o Brasil ainda no biênio 2017-2018. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apurou na última Pesquisa de Orçamentos Familiares, fundamento da composição dos índices de inflação, que naquele biênio 10,3 milhões de brasileiros sofreram com privação grave de alimentos. Sem eufemismo, passaram fome. Foi resultado da recessão aguda do período 2014-2016, que desaguou, nos anos seguintes, em aumento do desemprego e da desigualdade, precarização do mercado de trabalho, achatamento da renda e congelamento no valor dos benefícios do Bolsa Família. Assim, o país que ousou sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas voltou ao patamar século XX de pobreza e indigência.

[MATÉRIA EXCELENTE.  A colunista foi feliz por apresentar um quadro que apesar de fundamentado em dados técnicos é claro e de fácil entendimento.
Mostra com clareza - sem ouvir os famosos 'especialistas' em nada, que se tornaram tão presentes,  com seus 'chutes', durante a pandemia - que a crise teve origem na recessão de 2014 a 2016 (a petista que presidia o Brasil cuidou de engarrafar vento' enquanto a recessão aumentava)  e que o presidente Bolsonaro herdou e a pandemia piorou o que já era ruim.]


O IBGE investiga desde 2004 a situação alimentar das famílias brasileiras. Naquele ano, 34,9% dos lares enfrentavam algum nível de privação. Há três escalas. Na mais branda, batizada de leve, sobra preocupação com a possibilidade de não poder comprar comida e falta qualidade na alimentação. É quando a dona de casa substitui por macarrão o “arroz nosso de cada dia pela hora da morte”. No nível moderado, já considera alguma restrição a alimentos; no grave, falta comida. Na série oficial, a insegurança alimentar caiu até 2013, quando bateu 22,6%. Dois anos atrás, chegou a 36,7% dos lares, pior nível já registrado — comparável aos índices de pobreza de meados dos anos 1990, segundo cálculos da economista Sonia Rocha no artigo “Pobreza e indigência no Brasil” (IETS, 2006). Significa que 84,9 milhões de brasileiros viviam entre o medo de não conseguir comprar e a realidade de não ter o que comer. Qualquer semelhança com os 67 milhões de beneficiários das cinco primeiras parcelas de R$ 600 do auxílio emergencial não é coincidência.

A miséria faz mais vítimas no Nordeste, que abriga 1,3 milhão dos 3,1 milhões de domicílios com alguma privação alimentar. Há dificuldades, sobretudo, em áreas rurais, lares chefiados por mulheres ou por pessoas autodeclaradas pardas. Metade dos brasileirinhos com menos de 5 anos — 6,5 milhões ao todo — crescia em residências com algum grau de insegurança alimentar. É informação preocupante, quando sabemos que alimentação adequada aumenta a capacidade de aprendizado e melhora o desempenho escolar. Torna-se desesperadora à sombra de uma crise sanitária que deixou crianças e adolescentes sem aulas e sem merenda. Outra pesquisa do IBGE, a Pnad Covid-19, mostrou que, dos 46 milhões de estudantes matriculados em escolas ou universidades, 7,3 milhões não tiveram atividades na terceira semana de agosto. Também no mês passado, o Datafolha apurou que mais da metade (53%) das pessoas que receberam o auxílio emergencial usou o dinheiro para comprar alimentos.

A política de transferência de renda montada às pressas (por sociedade civil, Congresso Nacional e Executivo) em resposta à pandemia devolveu poder de compra às famílias mais pobres, durante a devastação do mercado de trabalho. Na esteira do isolamento social, necessário para conter a transmissão do novo coronavírus, ocupações com e sem carteira assinada foram varridas. Milhões de vagas desapareceram no trabalho doméstico, no comércio, no setor de serviços e na construção, junto com elas refeições servidas em refeitórios e cozinhas dos empregadores. Na metade mais pobre da população, a perda de renda individual do trabalho bateu 27,92%, calculou o economista Marcelo Neri, da FGV Social:Os pobres foram ao inferno com o desemprego e chegaram ao céu com o auxílio emergencial. A redução do valor (de R$ 600 para R$ 300 nas quatro últimas parcelas) e o fim do programa (em dezembro) tendem a agravar a crise. Se o IBGE fosse a campo em 2021, encontraria um cenário ainda pior em insegurança alimentar”.

A vulnerabilidade social escancarada pela pandemia encontrou combustível nefasto na escalada de preço dos alimentos. Os itens mais presentes na mesa dos brasileiros começaram a subir em março, início do isolamento social, e não pararam mais. Em agosto, o grupo Alimentação e Bebidas registrou a maior variação (0,78%) desde 2012 no IPCA. Nos últimos 12 meses, enquanto a inflação oficial do país subiu 2,44%, o leite ficou 23% mais caro, o arroz 19%, o óleo de soja 18%, o feijão 12%, o frango em pedaços 7%. O preço da cebola disparou 50%, do alho 16%, das frutas 14%, do tomate 12%. As cotações das commodities agrícolas saltaram no mercado internacional e, com a alta do dólar, empurraram preços no atacado e no varejo brasileiros. A conjuntura encontrou o governo despreparado. De 2016 para cá, o país deu as costas à política de formação de estoques reguladores em prol da racionalidade econômico-financeira. A mão invisível do mercado é capaz de garantir preços mínimos a produtores, mas não põe comida na mesa.

Flávia Oliveira, colunista - O Globo


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