Opinião - O Globo
A proposta de reforma administrativa toca no nervo exposto do Estado, mas não oferece uma saída consistente
Ao
encaminhar sua proposta de reforma administrativa ao Congresso, o
Executivo enfrentou o tabu: a estabilidade do funcionalismo, garantida a
todo servidor concursado. É verdade que, por precaução ou omissão,
preferiu não mexer nos funcionários da ativa, naqueles considerados
“membros de Poder” (como juízes ou procuradores) [lembrando que os procuradores são considerados como membros, mas não são membros de Poder = o Ministério Público não é um Poder da República] e criou uma situação
semelhante à atual para as carreiras consideradas de Estado (como
diplomatas ou auditores). Para esses, continuaria valendo a regra atual,
que garante estabilidade aos que completam três anos no serviço
público. Mesmo assim, o simples fato de querer mudar as regras para os
demais tocou num nervo exposto. Não é outro o motivo para haver tanto
ceticismo no Congresso em relação à proposta do governo.
Não
faltam argumentos razoáveis para defender a estabilidade em carreiras
essenciais ao funcionamento do Estado, em particular as técnicas. Se
estivessem sob ameaça constante de demissão, representantes do interesse
público estariam sujeitos a pressões políticas ou financeiras
inaceitáveis. Não dá para imaginar que os critérios para demitir juízes,
diplomatas ou acadêmicos possam ser os mesmos que para funções
administrativas, burocráticas e de manutenção equivalentes às que
existem na iniciativa privada. Toda a discórdia reside em como e onde
traçar os limites. [um comentário esclarecendo: parece ao primeiro exame não ter sentido dar estabilidade a um servidor público de uma área, digamos, inferior do Serviço Público.
Conceder estabilidade a um juiz, um magistrado, um policial e outras carreiras - um acadêmico nos parece, ao primeiro exame, desnecessário possuir estabilidade - é algo que todos concordam ser extremamente necessário.
Só que tal necessidade não justifica o absurdo de punir um magistrado com aposentadoria compulsória - se a falta praticada pelo magistrado é grave ao ponto de se impor o seu afastamento da atividade de juiz, qual o sentido de premiá-lo com aposentadoria?
Agora manter um subalterno do serviço público - nível de um 'barnabé' - sob o manto protetor da estabilidade pode parecer um absurdo.
Só que em algumas situações se justifica. Dois exemplos:
- alguns funcionários do piso do serviço público, são muitas vezes designados para exercer funções de fiscalização de contratos de prestação de serviços, firmados empresa privadas pelo órgão no qual trabalham.
É pacífico que a fiscalização da execução de um contrato é uma das portas abertas para a corrupção, sendo corriqueiro que os 'chefões' designam um 'barnabé' para fiscalizar o contrato, em muitos casos - há exceções - apenas para atender uma norma legal, mas o comando do contrato (incluindo eventuais vantagens não republicanas) continuam com o 'chefão'.
Tendo o fiscal de direito estabilidade no serviço ele pode se opor a eventuais inconveniências do fiscal de fato.
- a estabilidade do piso do serviço público também é válida para proteger o servidor de eventual abuso de autoridade dos chefões.
Não fosse a estabilidade do servidor de nível mais baixo, o juiz imporia sua vontade.
A estabilidade permite que o servidor se insurja contra tão absurda pretensão.]
A
estabilidade funcional foi instituída no Brasil para proteger o
interesse público das pressões políticas e para garantir continuidade da
máquina administrativa. É óbvio que algumas áreas dependem desse tipo
de escudo, mas não há lógica na sua extensão às mais de duas centenas de
carreiras funcionais. A inflexibilidade manietou a administração e
inflou seu custo, sem correspondência na qualidade dos serviços
prestados pela União, pelos estados e pelos municípios.
No
papel, a estabilidade de servidores concursados é confirmada depois de
três anos de trabalho, período identificado como “estágio probatório”,
mediante uma avaliação de desempenho apenas teórica (mais de 99% são
aprovados). Na proposta original de reforma que chegou a circular, o
governo considerava estender esse período para dez anos, mesmo para as
carreiras de Estado. Há certa arbitrariedade na duração. Por que três em
vez de dez anos? Por que não cinco? Não há explicação.
Mais
importante que o período até a garantia de estabilidade, é o que
acontece depois dela. Mesmo funcionários estáveis deveriam poder ser
demitidos quando comprovadamente incompetentes. Para
isso, há duas décadas, os senadores aprovaram um projeto com regras
sobre a perda de cargo público por insuficiência de desempenho, que
valeria mesmo para funcionários estáveis. A proposta (PLP nº 248) foi
modificada na Câmara. Voltou aos senadores, que mudaram o texto e o
devolveram aos deputados. Desde 2007, aguarda decisão da Câmara. Por que
não aproveitá-la na reforma? Não há explicação.
A
proposta do governo só valeria para servidores que ingressarem no
serviço público depois da promulgação da emenda constitucional. O
argumento é que os atuais têm direitos adquiridos — e haveria uma
enxurrada de ações na Justiça para garanti-los. Ao mesmo tempo, é como
se houvesse no Estado brasileiro um direito adquirido à improdutividade
ou ao privilégio. Por que limitar as mudanças na estabilidade aos
futuros servidores? Também não há explicação.
O
mecanismo para estabilidade adotado no Brasil é inspirado no vigente na
França, onde a segurança no emprego público existe desde o Código Civil
napoleônico, de 1807. A diferença é que, há 213 anos, os franceses
concedem estabilidade ao funcionalismo com base no critério da qualidade
dos serviços prestados à cidadania, algo que, definitivamente, não
ocorre no Brasil.
Em
vários outros países os critérios são bem menos benevolentes com o
funcionalismo. Na Alemanha, funcionários públicos podem ser demitidos
mediante critérios semelhantes aos do setor privado. No Reino Unido e na
Holanda há demissões por baixo desempenho. A necessidade de
reestruturação é um argumento suficiente na Suíça e na própria França,
onde há programas de realocação e incentivo à demissão voluntária.
Existe
consenso sobre a urgência de implementar mecanismos ágeis de gestão de
pessoal, para aumentar a eficiência nos serviços públicos. Mesmo nas
empresas estatais, onde em tese os funcionários não têm direito à
estabilidade, a Justiça tem decidido que só pode haver demissões por
justa causa ou programas de reestruturação. Uma ação que tramita no
Supremo, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, procura
nivelar os critérios aos mesmos da iniciativa privada.
Por
toda a máquina do Estado, o argumento do direito adquirido acabou
convertido em álibi para a ineficiência. Isso apesar de a própria
Constituição de 1988 já prever a possibilidade de demissão de servidor
estável, como lembra o jurista Carlos Ari Sundfeld.
Na
Câmara e no Senado se considera que as mudanças na estabilidade
poderiam ser mais céleres se feitas por leis ordinárias ou
complementares, como a já aprovada no Senado, que exigem menos votos
para aprovação que uma emenda constitucional. Apesar da estratégia
questionável e de risco adotada pelo Executivo, o governo tem o mérito
de ter posto a questão na mesa. É urgente mesmo que o país adote
critérios mais razoáveis para a estabilidade do funcionalismo. Se antes
faltava vontade política, há hoje uma realidade objetiva de agonia
fiscal.
Opinião - Jornal O Globo
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