Ana Paulo Henkel - Revista Oeste
Quando juízes se tornam “superlegisladores”, as instituições se fragilizam e a sociedade perde a fé no sistema democrático
A última eleição presidencial norte-americana talvez tenha sido
uma das mais polarizadas da história — provavelmente até esta próxima, marcada
para 3 de novembro. Das primárias de ambos partidos não saíram os candidatos
que muitos republicanos e democratas esperavam, e a eleição de 2016 ficou
marcada como “uma eleição entre dois candidatos ruins”.
Donald Trump venceu
e, depois de quase quatro anos como presidente, o milionário que nunca
foi político — um outsider como
é chamado — ganhou uma legião de eleitores, principalmente
por causa de boas políticas públicas de seu governo. Muitos daqueles que
votaram no republicano escolheram ignorar seus tuítes malcriados simplesmente
porque o país estava de vento em popa. Antes da devastadora pandemia que atingiu
o mundo, os bons índices da economia norte-americana atingiram
patamares históricos, com o nível de desemprego entre os mais baixos da
história, principalmente entre negros e latinos.
Mas não foi apenas a experiência na economia e em negociações, ou o fato de que Hillary Clinton era uma péssima candidata para os democratas, que elegeu Donald Trump como o 45º presidente norte-americano. Alguns eleitores nada trumpistas em 2016 pensaram longe, focaram “a floresta e não a árvore”, como dizem por aqui, e isso tem uma sigla: Scotus (Supreme Court of the United States), a Suprema Corte Americana.
Em seu último ano na Presidência, em 16 de março de 2016, Barack Obama teve a chance de nomear um juiz para a Suprema Corte, Merrick Garland, para suceder a Antonin Scalia (nomeado por Ronald Reagan), que havia morrido um mês antes. Na época, comentaristas políticos e historiadores reconheceram amplamente Scalia como um dos membros mais conservadores do tribunal e observaram que — embora muitos considerassem Merrick Garland um centrista — um substituto menos conservador poderia mudar o equilíbrio ideológico do tribunal por muitos anos no futuro.
A confirmação de Garland daria aos democratas uma maioria na Suprema Corte pela primeira vez desde 1970. Com maioria no Senado em 2016, os republicanos não votaram a indicação de Obama e a decisão que pesaria na balança ideológica da Scotus ficou para o presidente eleito em novembro daquele ano. Um bom número de eleitores votou em Trump para equilibrar a “balança” da Suprema Corte, que pendia para o lado progressista
O principal motivo, de acordo com uma pesquisa em 2017, foi exatamente o pensamento voltado para o tribunal mais alto nos EUA:
Eleição ganha, em abril de 2017, Neil Gorsuch, um defensor do originalismo na interpretação da Constituição dos Estados Unidos (o que os Pais Fundadores queriam dizer), foi confirmado para a Scotus depois da nomeação de Trump. Em 9 de julho de 2018, o presidente Trump nomeou mais um juiz conservador para a Suprema Corte dos EUA, Brett Kavanaugh, desta vez para preencher o cargo vago pelo juiz Anthony Kennedy, que se aposentou. A balança, até então pendente para o lado progressista e ativista, acabou mudando de configuração.
Para aqueles que votaram em Donald Trump com olhos na Suprema Corte — os que clamavam e defendiam que 2016 seria uma eleição para 40 anos, e não apenas quatro —, o trabalho estava feito. A Suprema Corte nos EUA é sempre um assunto extremante estratégico para qualquer presidente. Não se surpreenda se os resultados — ou a falta deles — desta próxima eleição rumem para as mãos dos juízes da Scotus, uma vez que os dois candidatos já falam em fraudes eleitorais. E, se já não bastassem uma pandemia histórica, protestos violentos em vários Estados norte-americanos e a hostil polarização política, esta semana mais um evento profundamente significante adicionou combustível ao inflamado cenário político: a morte de uma importante juíza da ala mais progressista da Suprema Corte Americana, Ruth Bader Ginsburg.
RBG, como era conhecida, faleceu em decorrência de uma longa batalha contra o
câncer. Embora tenha sido uma mulher discreta, tornou-se um ícone pop da esquerda americana ainda em vida, muito por
suas decisões inflamadas, recheadas de ativismo e interpretações muito
particulares acerca da Constituição. Pergunte a seus admiradores. “Ruth Bader Ginsburg tinha uma visão para a
América”, argumentou Linda Hirshman no The Washington Post. Qual
era a visão dela? “Tornar a América mais justa para tornar a Justiça maior.”
Mas isso não é trabalho para juiz — é trabalho para legislador. A tarefa de
fazer leis de maneira adequada pertence — algumas pessoas acham essa
parte difícil de lidar e aceitar, alô, STF! — aos legisladores. Fazer leis não
é tarefa de juiz. O trabalho do juiz é garantir que a lei seja seguida e
aplicada.
Não importa se a lei é “injusta” — isso não é uma premissa do Judiciário. Se
alguém tem uma visão para a América ou para o Brasil e deseja tornar as leis
mais justas, há um lugar apropriado para a ação: o Congresso. É ali que as leis
são feitas. [o que impede o desenvolvimento dessa ideia, sua concretização, é que legislador precisa ser parlamentar, e os adeptos do Judiciário tomado por um furor legiferante, não possuem votos - condição essencial para se tornar parlamentar, congressista = legislador.]
Um Judiciário deformado e desfigurado, no qual o povo norte-americano — assim como o brasileiro, e com boas razões — perdeu a fé
(...)
RBG foi uma mulher forte? Nenhuma dúvida. Mas Ginsburg não representou ou
representa apenas mulheres, feministas, homossexuais ou minorias como ela era
vista. RBG estampa muito mais. Ela é a configuração do tipo de “jurisprudência”
que a juíza e outros de sua espécie há muito praticam. O ativismo judicial em
sua mais pura essência.
Não há uma palavra sequer sobre aborto ou direitos dos homossexuais nas
constituições dos Estados Unidos e do Brasil, e é absurdo pensar que tais
direitos estivessem escondidos, esperando para ser descobertos por advogados
progressistas que de alguma forma veem a Constituição “real” que não está em
preto no branco.
Isso deveria ser óbvio mesmo para as pessoas que apoiam o aborto ou os
direitos dos homossexuais ou outros elementos que são constante e magicamente
“descobertos” na Constituição.
Em uma publicação “histórica” para celebrar a juíza RBG, o The New York Times escreveu que ela era um “ícone
feminista”.
(...)
A verdadeira fissura que atravessa a Scotus e o STF não se dá entre os chamados
progressistas e conservadores, mas entre aqueles que acreditam que os juízes
são superlegisladores — a grande maioria hoje no Supremo Tribunal Federal —,
com poderes para impor a própria visão sobre a sociedade, e aqueles que
acreditam que os juízes são limitados pelo que a lei realmente diz.
Eu disse lei, não rei.
Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste - MATÉRIA COMPLETA
Revista Oeste
Nenhum comentário:
Postar um comentário