Leio
com perplexidade análises que projetam no dia 24 de janeiro — data
estabelecida para o julgamento de Lula em segunda instância — a solução
do problema em que consiste o ex-presidente. Problema que, diga-se, a
parcela do Brasil que, por exemplo, beatificou Cármen Lúcia criou
(recriou) para todo o país, ao endossar bovinamente o enredo — escrito
por Janot e seus meninos, e editado por Fachin — que criminalizou a
atividade política e que, afinal, igualou a ação corrupta de grupos em
busca de enriquecimento individual ao projeto autoritário de assalto ao
Estado para permanência no poder, de captura da máquina pública para
financiar a estrutura do partido, promovido pelo PT. Deu no que deu. Se
rastejam todos os políticos na mesma lama, ora: aí se revitaliza aquele
do qual o brasileiro se lembra, aquele experimentado, sob cujo governo —
dane-se que origem da crise em que ainda nos afogamos — havia emprego e
crédito fartos etc.
Se são todos igualmente bandidos, Lula é o mais
antigo e conhecido — espécie de segurança na hora de escolher um entre
os marginais. Para ele, a lama é medicinal. E aí? O homem, carta fora do
baralho em 2016, é hoje o melhor produto do jacobinismo de extração
janotista, reerguido pela sanha dos justiceiros cuja estupidez agora faz
de um Roberto Barroso — o Gilmar do mensalão — o herói na luta contra a
impunidade. Parabéns! Essa é a caça às bruxas em decorrência da qual
Lula ganhou de presente um discurso até para falar novamente em golpe: o
de que derrubaram o governo popular para pôr no lugar um — segundo a
narrativa da facção mais influente do Ministério Público — ainda mais
criminoso.
Com esse texto sob medida para palanque, e com a fibra
político-eleitoral que a ideia de resistência vende, ademais num
ambiente conflagrado por tática desenhada pelo próprio “perseguido”,
como supor que mais um julgamento — não importa em que instância — possa
frear uma campanha que há meses testa limites e prospera? Como, aliás,
não supor que a provável nova condenação não seja mais combustível à
estratégia — fundamentada em vitimização e politização das ações
judiciais — que o ex-presidente concebeu para si?
Faz tempo que o
“problema Lula” deixou de ser matéria de tribunal. Daí meu assombro
ante a expectativa de que a decisão de 24 de janeiro possa significar
revés para o ex-presidente; de que a chancela do TRF-4 à sua condenação
por Moro tenha a mais mínima chance de tirá-lo do jogo e clarear o
tabuleiro de 2018. É como se não fosse talvez mesmo o oposto: mais uma
etapa no projeto de judicialização do processo eleitoral, esse em que
Lula investe para tentar se impor formalização de candidatura adentro,
mas do qual sairá candidato mesmo que não possa ser.
Alguém
duvida de que já nos confinamos a um pleito em que porção relevante do
eleitorado — tanto maior quanto mais próximo do dia 7 de outubro Lula
for impedido de disputar — votará em desagravo a um cidadão legalmente
culpado? [ menos de 20% pode sere considerada parcela relevante do eleitorado? NUNCA.] De que a eleição do próximo presidente será em parte um
plebiscito sobre a tal injustiça cometida contra Lula?
Este é o
Brasil: país em que um indivíduo condenado pela Justiça lidera todas as
pesquisas, sujeito cuja eventual (improvável) prisão representaria força
eleitoral poderosa a ponto de lhe recuperar a capacidade de transferir
votos como para Dilma Rousseff. [lidera com um percentual bem inferior ao dos que o rejeitam; já o, por enquanto, segundo, tem um percentual de rejeição bem inferior ao do coisa ruim de Garanhuns.] Eis um ponto relevante — a força de Lula
para levantar outro poste. As mesmas pesquisas indicam que — embora
ainda considerável — já não é a mesma. É verdade. Mas verdadeiro também é
que, uma vez sem Lula, o PT não terá candidato — a ser de todo
construído — como Dilma. Jaques Wagner, por exemplo. Um político
profissional, que governou a Bahia por dois mandatos e cuja proeminência
eleitoral no Nordeste pode compensar fração da perda de alcance do
ex-presidente para terceirizar votos. Que o leitor não se iluda: o
candidato do PT — Lula ou não — estará no segundo turno. Lula ou não,
Lula será.
Há mais a ser considerado. Não são poucos os
agentes políticos — inclusive adversários — que torcem (trabalham) por
Lula em 2018. Não para que vença a eleição (se acontecer, porém,
paciência); mas a que chegue a outubro livre para disputá-la. O que está
na mesa é a conservação do sistema; circunstância em que pouco
interessará a saúde do país. Convém atentar para a agenda tanto do STF —
principal garantidor da insegurança jurídica no Brasil — quanto do TSE.
Não é só a presumível revisão da jurisprudência que hoje autoriza o
cumprimento de pena após condenação em segunda instância; mas também a
possibilidade de que se afrouxem os critérios de inelegibilidade
definidos na lei da Ficha Limpa. [tudo é possível; mas, a mais recente decisão do Supremo sobre a Lei da Ficha Limpa foi a de que a mesma retroaja, o que não combina com afrouxamento de critérios.
E a revisão da jurisprudência sobre o cumprimento da pena após confirmada em segunda instância é por enquanto apenas uma hipótese.]
Lula é a força em função da qual
todos os atores políticos se organizam: a âncora de previsibilidade
eleitoral, que confere memória à disputa e interdita brechas à ascensão
de outsiders. Mas não somente; pois também é o termômetro que afere a
temperatura da Lava-Jato. O cálculo sobre sua sobrevivência é ciência
exata: se, com tudo que corre contra si, condenado em primeira
instância, sentença virtualmente confirmada em segunda, sujeito a ser
ainda (provavelmente neste ano) apenado no processo relativo ao sítio de
Atibaia, conseguir concorrer à Presidência, terá sido porque a operação
fracassou. O raciocínio consequente é óbvio: se ele — ainda que
derrotado nas urnas — vencer, ninguém mais cairá. [o SE que segue aos dois pontos acima e o SE que antecede o ele, são a garantia de que Lula está morto e sepultado politicamente.]
Lula é o indulto de Natal do establishment projetado para 2018.
Carlos Andreazza - O Globo
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