A professora Beatriz Mamigonian iluminou o passado com um livro tão forte que obriga a olhar para o presente
Está nas
livrarias “Africanos livres: A abolição do tráfico de escravos no
Brasil”, de Beatriz Mamigonian, professora da Universidade Federal de
Santa Catarina. É um grande livro e conta uma história que, em muitos
aspectos, foi varrida para baixo do tapete no século XIX. De certa
forma, continua lá até hoje.
Em 1831 o governo pôs em vigor uma
lei pela qual ficavam livres “todos os escravos que entrarem no
território ou portos do Brasil”. Nessa época, o país deveria ter pouco
mais de quatro milhões de habitantes. No máximo, 1,5 milhão deles seriam
negros escravizados. Se a lei de 1831 tivesse sido cumprida, a história
do Brasil teria sido outra. Entre 1830 e 1856, entraram
ilegalmente no país 800 mil novos escravos. O Segundo Império, com seus
barões, o café e uma corte que fingia ser europeia, tinha um pé no
contrabando de negros. Escravidão e contrabando, os males do Brasil
foram.
Nas palavras da professora: “Nenhuma análise da construção
do Estado nacional brasileiro e de sua ordem jurídica pode mais
desconsiderar a extensão e a gravidade da ilegalidade associada ao
tráfico de escravos.” O Estado brasileiro fingia que não via os
barcos que traziam negros, e sua burocracia cuidava de tirar das ruas a
população “sempre perigosa” dos 11 mil “pretos livres” que haviam
conseguido a proteção da lei de 1831. Seguindo os costumes do mundo,
eles não eram simplesmente libertados e, no Brasil, deviam cumprir 14
anos de aprendizado e serviços. Esse prazo era estourado, e às vezes,
falsificava-se a morte do “negro livre”, reescravizando-o com outra
identidade. Os escravos de Mamigonian têm nome e endereço. Salomão
Valentim morava na Rua do Sabão, Serafina Cabinda, no Beco do Mosqueiro.
Os
negros eram entregues a “concessionários”, que pagavam à Coroa módicas
quantias e os usavam como empregados domésticos, podendo alugá-los. Um
mês de aluguel quitava o débito anual do concessionário. Em alguns
casos, o negro era concedido a empreiteiros de obras públicas. Naquela
época o grande empreiteiro baiano era o comendador Barros Reis.
A
concessão de negros destinava-se a gente de “reconhecida probidade e
inteireza”. O Marquês de Paraná, grande articulador da política de
conciliação, ganhou 26 e mandou-os para sua fazenda de café. O Marquês
(depois, Duque) de Caxias teve 22. O Visconde de Sepetiba ganhou um
lote, e anos depois sua filha ajudou Carolina Conga a fugir em busca da
emancipação. Ela tinha 22 anos de serviços. (Também eram atendidos
jornalistas, como Justiniano José da Rocha.) A concessão de um negro
podia azeitar um voto na Câmara.
Um século depois do fim do
tráfico, Fernando Henrique Cardoso, um presidente que informava ter “um
pé na cozinha”, passava feriadões na Marambaia, nas terras que haviam
sido do poderoso fazendeiro Joaquim de Souza Breves. Depois do fim
(legal) do tráfico, ele tinha ali um viveiro de escravos
contrabandeados.
Lendo Mamagonian, convive-se com o deputado
Tavares Bastos defendendo os negros, com o Visconde do Uruguai
protegendo a burocracia, e o jurista Teixeira de Freitas advogando para
contrabandistas. Quando se passa por Carolina Conga, Salomão Valentim e
Serafina Cabinda, veem-se ao fundo as sombras do juiz Sergio Moro, de
Michel Temer, e dos ministros Moreira Franco e Gilmar Mendes.
Fonte: O Globo - Elio Gaspari, jornalista