A onda conservadora contra conquistas de lésbicas, gays e pessoas trans se espalha pelo planeta e periga engolfar até o Brasil [Em nossa opinião, aqui no Brasil ela é bem-vinda e até necessária - as preferências de alguns não podem ser impostas. Aqui no Brasil, querem impor certas regras, quando o certo é tentar, democraticamente, convencer.]
Pesquisa recente mostra que 71% dos americanos aprovam o casamento gay, aceitação que colaborou para que o Congresso, rachado ao meio em todos os assuntos, aprovasse a lei bipartidária de reforço do acesso à união civil entre pessoas do mesmo sexo. Ela provavelmente vai ser contestada na Justiça nos estados conservadores. “A resistência de tanta gente às mudanças vertiginosas no mundo revela que as pessoas estão hoje mais vulneráveis ao apelo sedutor de demagogos que dizem defender valores tradicionais”, afirma Michael Klarman, historiador da Universidade Harvard.
O sermão é replicado em todas as nações impactadas pela nova direita que se disseminou nos últimos quinze anos. No comando da Hungria desde 2010, Viktor Orbán, sob a bandeira de “valores da família”, proibiu a adoção de crianças por casais do mesmo sexo e aprovou uma lei que equipara a homossexualidade à pedofilia.
Na Polônia, o governo nacionalista cristão classificou os direitos LGBTQIA+ de “ideologia subversiva” e criou mais de 100 zonas onde é proibido ser abertamente gay. Na Rússia, o Parlamento ampliou uma lei de 2013 contra o que chama de “propaganda LGBT” para autorizar voz de prisão a quem quer que afirme que ser gay é “normal”. Eleitos em votações recentes, a neofascista italiana Giorgia Meloni nomeou como líder da Câmara seu guru ideológico, anti-homossexuais e antiaborto, enquanto em Israel o líder de um dos partidos da coalizão vencedora se declara “orgulhosamente homofóbico”. O tom de discriminação permeia o debate de questões efetivamente delicadas, como a inclusão da temática gay em livros infantis e o papel dos atletas trans nos esportes.
No Brasil, a pauta de valores tradicionais defendida sobretudo pela bancada evangélica mira aprovar o Estatuto da Família, projeto de lei que pretende estabelecer que o núcleo familiar é formado necessariamente por um homem e uma mulher — reação à histórica decisão de 2011 do Supremo Tribunal Federal que garantiu direitos a casais do mesmo sexo. Preocupadas com as ameaças, a fisioterapeuta Larissa Teixeira, 27 anos, e a estudante de direito Isabelle Souza, 28, optaram por ir a um cartório oficializar sua união civil. “Deixamos os planos românticos de lado e fomos garantir nossos direitos”, desabafa Isabelle. Após anos de avanços, a comunidade LGBTQIA+ convive, em boa parte do mundo, com a nuvem sombria do retrocesso pairando sobre seu futuro.
[Comentando: O artigo 226 da Constituição Federal, vigente, apresenta a seguinte redação em 'caput:
"...Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
...§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. ..."
Apesar do texto constitucional recomendar que a lei deve facilitar a conversão em casamento da união estável - formada segundo a norma constitucional pela união entre homem e mulher - o Supremo quando julgou o assunto alegou que se o constituinte quisesse limitar somente para homem e mulher teria incluído o advérbio apenas. Acredite quem quiser mas não é fake.]
Publicado em VEJA, edição nº 2820, de 21 de dezembro de 2022