O Brasil vive, cada vez mais, uma farsa tamanho gigante. Finge que
tem “instituições”, que precisam sempre ser preservadas como a coisa
mais preciosa que existe no sistema solar. Finge que tem um “Estado de
direito”, que é uma “democracia” e que há leis, a começar pela
Constituição Cidadã, que são respeitadas e valem por igual para todos.
Finge, mais do que tudo, que essas coisas existem porque aqui funciona
um Supremo Tribunal Federal, como acontece em países bem-sucedidos — com
juízes imparciais, focados unicamente no cumprimento do que está
escrito na Constituição e incapazes de decidir alguma coisa em benefício
das próprias ideias, interesses, amigos ou amigos dos amigos.
Nada disso tem realmente alguma coisa a ver com a realidade. Nestes
dias, mais do que em qualquer outra ocasião recente, o Estado de direito
no Brasil assumiu tudo o que precisa para tornar-se uma ficção
absoluta. O ministro Edson Fachin, numa sentença inédita na história do
STF, decidiu que todos os processos que envolvem o ex-presidente Lula
por corrupção e lavagem de dinheiro, incluindo aquele em que ele já foi
condenado em terceira e última instância, não valem mais nada. No dia
seguinte, o ministro Gilmar Mendes, num voto formal, disse que a
Operação Lava Jato — o único momento, desde o ano 1500, em que a
população brasileira acreditou na existência de Justiça em seu país — é
“o maior escândalo judicial da nossa História”.
A decisão de Fachin é positivamente inexplicável, assim como a
declaração de Gilmar, mas nem um nem o outro estão interessados em
explicar nada, e nunca estiveram.
A última de suas preocupações é fazer
nexo, ou dar aos cidadãos algum tipo de satisfação sobre a lógica das
decisões que tomam — ou respeitar os fatos e a ideia, comum para a quase
totalidade das pessoas, de que a Justiça existe para separar o certo do
errado.
A noção fundamental do que é “Direito”, para ambos, se
concentra numa só palavra: “garantismo”. Justificam tudo o que fazem
dizendo que o seu objetivo é garantir que a lei seja cumprida em todos
os seus detalhes. Na prática, o que fazem é garantir o atendimento dos
próprios desejos. Isso, para não perder tempo com conversa complicada, é
garantir a desordem. Como pode haver ordem desse jeito?
O ministro Fachin, no extraordinário decreto em que anulou de uma só
vez quatro ações penais diferentes, não diz uma palavra sobre a culpa de
Lula — provada em três instâncias, perante nove juízes diferentes, no
caso da primeira condenação, numa bateria de processos em que há réus
confessos, delações premiadas e devolução de dinheiro roubado.
Diz
apenas que Lula não deveria ter sido processado em Curitiba, e sim em
Brasília. E daí?
Que diferença faz se alguém é julgado em Curitiba,
Brasília ou São Domingos do Cariri?
É incompreensível para o cidadão
pagador de impostos, ou para qualquer ser racional, que um juiz de
direito, em vez de estabelecer se o réu cometeu ou não os crimes de que é
acusado, fique fixado em discutir em qual vara penal deve correr o seu
processo — mas não tente entender, porque para o ministro Fachin isso é
uma questão de vida ou morte, e quem resolve é ele.
Na verdade, essa história de ficar regulando onde o sujeito deve ser
julgado é um dos truques processuais mais ordinários que há no livro de
regras; qualquer advogado de porta de cadeia, quando não tem mais que
dizer em favor do réu, pode alegar que ele não está sendo julgado no
“foro” certo. Tudo bem: que seja.
Mas, no caso de Fachin e de Lula, que
raio de grande assunto constitucional é esse, para ser decidido no
Supremo? Como assim, num processo que simplesmente não tinha mais para
onde ir, após seu julgamento em todas as instâncias possíveis — e no
qual, ainda por cima, o ministro que julga o caso joga no lixo cinco
anos de decisões da Justiça? Nenhum dos oito magistrados que julgaram a
correção da primeira sentença achou nada de estranho com ela, ao longo
destes anos todos. Não se achou nada porque nunca houve nada de errado
com as condenações de Lula — nem quanto à sua culpa nem quanto a
qualquer outra questão.
O que a decisão do ministro Fachin tem a ver com qualquer dos 250
artigos da Constituição Federal do Brasil?
Os advogados de Lula alegaram
que seu cliente estava sendo prejudicado em seus direitos
constitucionais.
Mas, nesse caso, os 200 milhões de cidadãos brasileiros
podem ir até o Supremo, por qualquer coisa que lhes dê na telha, se
acharem que seus direitos não estão sendo respeitados; por essa maneira
de ver a Justiça, até uma ação de despejo pode acabar no STF. [o STF já foi acionado para decidir se banheiro público pode ser unissex?
em português claro: o STF foi chamado a julgar se o cidadão que tem todos os 'instrumentos' do macho, do homem, mas se sente mulher, pode adentrar em um banheiro no qual se encontrem senhoras, incluindo meninas,expor à vista de todos e todas, seu instrumento viril e urinar.
Nos parece que o assunto foi adiado, tendo em conta que agora o mesmo cidadão que se sente mulher em um momento pode, movido por razões outras, se sentir macho. Situação que complica exigindo um pedido de vista.]
O fato,
quando o palavrório fica de lado, é que não existe nesse caso questão
constitucional nenhuma; só existiu a vontade de dizer que Lula não fez
nada de mais, que recupera os seus direitos políticos e que merece um
pedido público de desculpas. Na vida real, e pelo que fica comprovado na
experiência do dia a dia, o STF não cumpre praticamente nunca, ou nunca
quando realmente interessa, a sua única obrigação real — justamente,
decidir se a Constituição brasileira está ou não está sendo cumprida.
Os
onze ministros fazem de tudo. Soltam corruptos e traficantes de droga;
soltariam Al Capone se ele estivesse vivo.
Proíbem a polícia de voar
sobre as favelas do Rio de Janeiro.
Prendem deputados e jornalistas por
crime de opinião.
Censuram a imprensa.
Mandam o governo distribuir
vacinas que estão na China e na Índia.
O que não fazem é cuidar do
respeito à Constituição — fazem tudo, menos isso.
Ou, mais exatamente,
fazem o contr
exordial acusatória
ário; são, hoje, os maiores agressores da lei que há no
Brasil. Ninguém promove a insegurança jurídica tanto quanto eles.
Esqueçam a “exordial acusatória” e outras bobagens
A notícia foi recebida com festa na maioria da mídia, no submundo da
política, em que pelo menos um terço dos congressistas responde a
processo penal, e nos partidos de esquerda, que desde 2014 não ganham
uma eleição — e que têm em Lula sua única e eterna esperança de
salvação. Houve o esforço geral, francamente cômico, de debater motivos
“técnicos” para a decisão de Fachin. Ele falou em “exordial acusatória”,
e outros despropósitos incompreensíveis em português; é o suficiente,
no Brasil, para acharem que o sujeito está sendo um jurista de grande
profundidade.
É a velha história: se ninguém entende nada do que o
doutor está falando, então ele tem de ser mesmo um homem muito sério.
Também circulou a misteriosa teoria de que Fachin, ao anular os
processos de corrupção contra Lula, estava, na verdade, querendo
combater a corrupção. Hein? Como assim?
É que, agindo como agiu, o
ministro quis ajudar a Lava Jato; de novo, o melhor é não perder o seu
tempo tentando entender essa fábula.
Nada disso, é claro, escondeu o que
realmente houve: o que Fachin quis, e fez, foi riscar do cartório a
ficha suja de Lula e dar a ele o direito de se candidatar nas eleições
presidenciais de 2022.
Trata-se de uma dessas coisas que todos os interessados conhecem
muito bem — mas de que nenhum deles fala, porque não lhes interessa
falar. O ministro Fachin, muito simplesmente, agiu como um militante
político empenhado em servir a Lula e ao PT, como se comprova por seus
atos, suas palavras e sua conduta. Ele foi advogado do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra, agrupamento ilegal e responsável, durante anos a
fio, por centenas de crimes graves contra a pessoa e contra a
propriedade. Em 2010, durante a campanha eleitoral, pediu publicamente
votos para Dilma Rousseff — que depois, como presidente, lhe deu a sua
cadeira no STF.
Não foi, como quer a lenda oficial que ele faz circular
até hoje, um ato impensado da juventude: Fachin tinha 52 anos de idade
na época, e nunca deu motivos para achar que hoje, aos 63, se tornou um
outro homem. Ao contrário: sete meses atrás, em agosto do ano passado,
disse em entrevista que a candidatura de Lula na eleição presidencial de
2018, ocasião em que ele estava preso num xadrez da Polícia Federal em
Curitiba, teria “feito bem à democracia”. Acrescentou que o Brasil de
hoje vive em “recessão democrática”.
Se a candidatura de Lula teria sido uma coisa boa em 2018, não há
razão para Fachin achar que seria uma coisa ruim em 2022. Seu voto para
suprimir a ficha suja de Lula, além disso, foi precedido pela divulgação
de uma “pesquisa de opinião”, feita por instituto de sondagens do qual
ninguém tinha ouvido falar até hoje, dizendo que Lula tem “o maior
potencial de votos” para 2022. Não se sabe o que poderia ser isso. O
termo não existe nos métodos dos institutos mais conhecidos, como Ibope e
Datafolha; mas dá para saber perfeitamente que é a favor de Lula. O
ex-presidente, por sua vez, disse pouco antes que estava “à disposição”
para a próxima eleição; até convidou Fernando Haddad, a quem dizia
apoiar, para ser candidato a vice. Dirigentes petistas, enfim,
festejaram em público a sua volta à política às vésperas da decisão de
Fachin.
A verdade mais elementar é que não existia até agora nenhum candidato
sério para disputar a eleição de 2022 com o presidente Jair Bolsonaro.
As candidaturas inventadas até o momento, num arco que vai de
governadores de Estado a apresentadores de programa de auditório,
fracassaram miseravelmente. Foi sepultada junto com elas a miragem de
que uma dessas criaturas do noticiário poderia obter a adesão de Lula e
do PT, numa “frente democrática de centro-esquerda”, equilibrada,
civilizada, limpinha, aprovada pelo ex-presidente Fernando Henrique e
capaz de derrotar Bolsonaro. Acreditou-se mais uma vez — imaginem só se
uma coisa dessas seria possível — que Lula e o PT iriam,
patrioticamente, apoiar alguém que não seja eles mesmos. Nunca
aconteceu. Não vai acontecer nunca.
O manifesto de Fachin resolve essa desgraça; onde não havia ninguém,
não de verdade, agora passa a haver Lula, o único candidato de carne e
osso com possibilidades efetivas, pelo menos na teoria, de evitar a
reeleição de Bolsonaro nas próximas eleições. Esqueçam a “exordial
acusatória” e outras bobagens. É isso, e apenas isso, que aconteceu —
Lula, por sinal, já estava pedindo voto logo no dia seguinte à
liquidação dos seus processos. Talvez não mude nada no mundo das
realidades, é verdade, porque o problema essencial continua sendo a
candidatura de Bolsonaro; é aí que está a complicação verdadeira, e ela
permanece do mesmo tamanho.
Mas o STF fez o que poderia fazer até o
momento para derrotar o presidente em 2022, ou quando der — se for
preciso fazer mais, é coisa para ver de novo mais adiante. Por enquanto é
o que temos. É previsível, obviamente, que os ministros façam outra vez
o que Fachin e Gilmar acabam de fazer: talvez venham com algum embargo
agravante, ou agravo embargante, ou seja lá o que inventarem, proibindo
Bolsonaro de se candidatar de novo, ou de continuar na Presidência, ou
de governar o país. Sempre sobra, além e acima de tudo, a possibilidade
de fraudar a apuração das eleições; é garantido, para tanto, que o
Supremo vai aprovar tudo o que tiver de ser aprovado.
Esse jogo, na verdade, está sendo jogado desde que Dilma foi posta no
olho da rua pelo Congresso Nacional, em maio de 2016 — com o “Fora,
Temer”, a tramoia do procurador Janot junto a um megaempresário ladrão
para derrubar o então presidente e as tentativas de conseguir o impeachment,
primeiro do próprio Temer, e depois de Bolsonaro. Continua agora, com a
anulação dos processos de Lula. Não há sinais de que possa parar
enquanto a esquerda não voltar ao governo.[somos brasileiros e desejamos o melhor para o Brasil e, para tanto, a esquerda será, quando e se preciso for, parada.]
Leia também a reportagem de capa desta edição, “Farra na republiqueta”
J R Guzzo, jornalista - Revista Oeste