Li "O homem
medíocre", de José Ingenieros, pela primeira vez, em 1999 quando topei
com ele na biblioteca de meu pai, que falecera dois anos antes. Era uma
edição argentina de 1917. Um capítulo do livro, em especial, chamou-me a
atenção por parecer escrito para aquela realidade. Ele tratava da
diferença entre a mera honestidade e a virtude, bem como da falsa
honestidade daqueles que a exibem como troféu. “Em todos os tempos, a
ditadura dos medíocres é inimiga do homem virtuoso. Prefere o honesto e
o exibe como exemplo. Mas há nisso um erro ou mentira que cabe apontar.
Honestidade não é virtude, ainda que não seja vício. A virtude se eleva
sobre a moral corrente, implica uma certa aristocracia do coração,
própria do talento moral. O virtuoso se empenha em busca da perfeição. O
honesto, ao contrário, é passivo”.
"Não há diferença entre o covarde que modera suas ações por medo do castigo e o cobiçoso que age em busca da recompensa", afirma o filósofo portenho enquanto sentencia sobre o homem medíocre: "Ele teme a opinião pública porque ela é a medida de todas as coisas, senhora de seus atos".
Quantos
existem, de uns e de outros, na vida social! Estão nas empresas
disputando postos, nas salas de aula ansiando pelos favores dos mestres,
na vida pública buscando aplauso e voto. Súditos da maioria, apontam
seu dedo cobiçoso ou covarde sempre que vislumbram, nos demais, algo que
possa ser apontado como falha ou falta. Cada sucesso por essa via é um
passo na direção do que denominam vitória e um recuo em relação à
verdadeira virtude. Continua Ingenieros: "A sociedade proclama: 'Não
faças mal e serás honesto'. Mas o talento moral tem outras exigências:
'Persegue a perfeição e serás virtuoso'. A honestidade está ao alcance
de todos; a virtude é uma escolha de poucos. O homem honesto suporta o
jugo a que o prendem seus cúmplices; o virtuoso se eleva sobre eles com
um golpe de asa". São palavras que queimam a palha da mediocridade e
incendeiam a alma dos que buscam a virtude porque é nela, e não na
simples honestidade, que se medem os valores da aristocracia moral.
É preciso
distinguir a virtude que se alcança por adesão voluntária a um
determinado bem, da virtude intrínseca a modelos institucionais que
inibem a conduta não virtuosa. A fidelidade será, sempre, um produto da
vontade humana. O pérfido só renunciará a perfídia quando ela se mostrar
inconveniente. O venal pode trocar de camiseta, mas só não terá preço
se não houver negócio a ser feito. É por esse motivo que quando o STF
proclamou a constitucionalidade da Lei da Ficha Lima, eu disse que
estávamos trocando de fichas, mas não estávamos acabando com a sujeira
que, logo iria encardir outras tantas.
Por quê?
Porque essa lei assume como verdadeiro que a corrupção tem apenas causas
intrínsecas aos indivíduos, mas isso é falso. Ela tem, principalmente,
causas de natureza institucional. E, mesmo no plano das
individualidades, só teremos pessoas virtuosas em maior número quando a
virtude for socialmente reconhecida como um bem a ser buscado e quando
as famílias, as escolas públicas e os meios de comunicação compreenderem
a relação existente entre o desvario das condutas instalado na vida
pública e o estrago que vêm fazendo na formação da consciência moral e
na vida privada.
Não há
virtude onde não há uma robusta adesão da vontade ao bem. E isso não
acontece por acaso. A busca da virtude exige grande empenho.
Contudo, a
democracia (governo de todos), não é necessariamente aristocracia
(governo dos melhores). E será sempre tão sensível à demagogia quanto a
aristocracia é sensível à oligarquia. Portanto, numa ordem democrática,
como tanto a desejamos, é necessário estabelecer instituições que, na
melhor hipótese, induzam os agentes políticos a comportamentos virtuosos
ou, com expectativas mais modestas, inibam as condutas viciosas.
Ora, o modelo político brasileiro parece ter sido costurado para compor guarda-roupa de cabaré.
Não há como
frear a corrupção que se nutre de um modelo institucional que a favorece
tão eficientemente, seja na ponta das oportunidades, seja na ponta da
impunidade cada vez mais escorada por leis de proteção. Não estou
falando de leis que a combatam, mas de um modelo político que a
desestimule. Como? Libertando a administração pública dos arreios
partidários, por exemplo. Ao entregar para o aparelhamento partidário a
imensa máquina da administração (que a mais elementar prudência
aconselharia afastar das ambições eleitorais), o Brasil amarra cachorro
com linguiça e dá operosidades e dimensões de serraria industrial ao
velho e solitário "toco". "É politicamente inviável fazer isso no
Brasil", estará pensando o leitor destas linhas em coro com a grande
maioria dos que, entre nós, exercitam poder político. Eu sei, eu sei.
Não sou ingênuo. Está tudo errado, mas não se mexe. As coisas são assim,
por aqui.
Do mesmo modo
como a fusão do Governo (necessariamente partidário e transitório) com a
Administração (necessariamente técnica e neutra porque permanente no
tempo) cria problemas e distorções de conduta, a fusão do Governo com o
Estado (que, por ser de todos, não pode ter partido) faz coisa ainda
pior no plano da política interna e externa. Desde a proclamação da
República, os governantes tratam de aparelhar o Estado e exercer
influência sobre suas estruturas.
Todos os
cidadãos, toda a mídia, todos os prefeitos, todos os governadores, todos
os vereadores e deputados estaduais sabem que se produziu uma brutal
concentração de poder e de recursos na União e na capital da República.
Tal concentração é incompatível com a própria forma federativa de
Estado, que, entre nós, virou um arremedo de si mesma. É grave.
Gravíssimo. Mas tem coisa ainda pior na falência da Federação. Onde se
reconheça que o Princípio da Subsidiaridade é irmão gêmeo da Liberdade,
sabe-se, simetricamente, que a centralização de poder é irmã gêmea do
totalitarismo. E, como ele, inimiga figadal da democracia. Mas eu sei: é
politicamente inviável, no Brasil, retomar a boa forma federativa
valorizando o poder local. Vai-se pelo viés oposto. Centraliza-se tudo,
dos exames vestibulares aos recursos públicos. Depois, se descentraliza
em conta-gotas, nas doses suficientes para gerar relações de dependência
e submissão.
Em nosso
sistema de governo, o presidente da República, uma vez eleito, deve
buscar maioria parlamentar constituindo um arco de alianças formado por
partidos minoritários. Com efeito, face à quantidade de legendas que
disputam os pleitos parlamentares (há mais de duas dezenas de partidos
representados na Câmara dos Deputados), todas as bancadas resultam
minoritárias. Não existe maioria natural. E não havendo maioria natural,
a "base" precisa ser adquirida pelo governo mediante um largo estoque
de moedas de troca - entre outras, as mais valorizadas: cargos,
liberação e pagamento de emendas parlamentares, verbas para nebulosas
organizações não-governamentais, concessões de emissoras de rádio e
televisão e dispensas de licitação. Os desdobramentos dessas operações
acabam, mais cedo ou mais tarde, nas páginas policiais.
Em Brasília
se decidem, como consequência, todos os contratos, todos os favores,
todas as leis e todas as exceções às leis instituídas, atraindo
corruptos e corruptores como pote de mel atrai abelha. Resumindo:
enquanto não enfrentarmos os vícios do sistema político e as deformações
morais administradas em doses crescentes à sociedade, estaremos a uma
distância da virtude que há de fazer o maligno esfregar as mãos em puro
contentamento.
Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto,
empresário e escritor e titular do site mel atrai abelha, colunista de
dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o
totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do
Brasil. Integrante do grupo Pensar+.