Mulheres espalham iniciativas contra machismo e assédio pelo carnaval
Reação aos abusos engloba mapa colaborativo, blocos e tatuagens feministas
É
carnaval: hora de jogar confete e purpurina não apenas nas ruas, mas também
sobre a causa feminista. Na onda do “Time’s up”, campanha contra abusos sexuais
na indústria americana de cinema, os blocos do Rio preparam uma folia
empoderada num ritmo até mais forte do que nos últimos anos. Além de
repertórios contra o assédio e fantasias que brincam com o tema, as mulheres
vão para o carnaval com “alegorias” mais práticas: um crowdfunding para
financiar a distribuição de tatuagens feministas e até um site desenvolvido por
uma ONG para receber denúncias anônimas e mapear onde os abusos acontecem. Tudo
para não deixar a discussão acabar em samba. No enredo machista, puxada de
cabelo, beijo forçado e até xingamentos ainda se repetem, mesmo nos cordões
mais engajados.
Para
Margarida Pressburguer, advogada e ex-subsecretária estadual de Políticas para
Mulheres, “o exagero tem que ser punido e denunciado”. O caminho, diz, é longo:
— Há uma
distinção grande entre assédio e galanteio. O mulher tem que poder ir para a
rua e ter sossego — observa. — A mentalidade brasileira ainda é muito machista.
A discussão sobre o assunto é importante, e o carnaval é um momento bom para a
reflexão de até onde essas abordagens devem ir.
O MAPA DO
ABUSO
Os
números da Polícia Militar revelam a gravidade do problema. Ano passado, a
corporação recebeu 2.154 denúncias de assédio no serviço 190 durante o carnaval
— 14% do total de chamados. Foi naquele carnaval que surgiu o coletivo carioca
“Não é não”, que distribuiu 4 mil tatuagens adesivas com a mensagem que dá nome
ao grupo. Este ano, a tiragem será seis vezes superior, com 25 mil adesivos,
que também serão entregues gratuitamente em blocos de São Paulo, Belo
Horizonte, Recife e Olinda. O projeto tem tudo para ser uma febre entre as
mulheres. Só ganhou impulso graças a uma campanha de financiamento coletivo no
site Benfeitoria: a vaquinha já arrecadou R$ 20 mil.
—
Queremos atingir cada vez mais pessoas com mensagens de conscientização. Nosso
alerta, “não é não”, é muito óbvio, mas, infelizmente, a gente ainda tem que
continuar falando sobre isso, estampando um aviso no corpo — afirma a designer
Nandi Barbosa, de 28 anos, integrante do coletivo. — As mulheres precisam falar
de assédio sem se sentirem intimidadas.
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Nandi,
que trabalha com outras cinco produtoras na campanha deste ano, ressalta que o
assédio marca presença em blocos porque os agressores se sentem no direito de
importunar mulheres que exibem seus corpos de forma mais livre. Para a
designer, todo abuso deve ser combatido, e não minimizado ou encarado como
“cantada” ou “elogio”.
A
tecnologia, desta vez, também será aliada. A Rede Nossas Cidades, que engloba a
ONG Meu Rio, criou um portal na internet com um mapa colaborativo, em que
mulheres daqui e de outras seis cidades do país poderão relatar situações de
assédio durante o carnaval. Os relatos serão levados às autoridades. O site
www.aconteceunocarnaval.org [tem tanta coisa que aconteceu no carnaval e vai continuar acontecendo] vai garantir o anonimato de todas as denunciantes.
— Queremos
chegar ao governo de cada cidade para tentar transformar essa luta em política
pública — informa Paula Lago, do site Catraca Livre, parceiro da Rede Nossas
Cidades no projeto. [anotem o nome das mulheres que estão envolvidas com este movimento e confiram que serão candidatas, ainda que a vereadoras, nas próximas eleições - aparecerão invocando a condição de líderes.]
A
campanha contra o assédio é uma luta tão árdua que até em um bloco que nasceu
com esta bandeira, o Maria Vem com as Outras, houve episódios indesejados no
último carnaval, praticados por homens que se aproximaram do grupo. Prestes a
se apresentar pela segunda vez, o coletivo que reúne 40 mulheres — de
engenheiras a jornalistas — escolheu a irreverência como resposta. As
integrantes saem fantasiadas de bichos que costumam dar nome aos xingamentos
usados para desqualificar as mulheres: cobra, cachorra, galinha, vaca, piranha.
Na última quinta-feira, fizeram o dia do “barracão” na casa em que moram
algumas delas, ocasião em que aproveitaram para confeccionar juntas os próprios
adereços.
— Já
demos um grande passo ao colocar o assunto do assédio em pauta. As pessoas
estão falando, denunciando, mas ainda é preciso reafirmar as posições de que
certas posturas dos homens são machistas e até criminosas. Também queremos
deixar uma mensagem de que as mulheres são capazes e de que precisamos ser
respeitadas — diz Aline Lima, de 32 anos, engenheira que está na posição de
regente da “bloca”, como elas se chamam.
Todo o
repertório vem de músicas de Cássia Eller, Chiquinha Gonzaga e Elza Soares. As
meninas da “bloca”, que antes animavam outras baterias, se aproximaram depois
que cansaram de ouvir homens repetindo que elas tocavam de um jeito “errado”, e
de suportar piadas toda vez que pretendiam se aventurar em instrumentos mais
pesados, como os surdos. Por esse motivo, quem quer entrar no coletivo não
precisa de nenhum
Mariana
Teixeira, farmacêutica de 26 anos, recorda que, apesar dos episódio pontuais de
assédio na apresentação do ano passado, o carnaval do grupo foi marcado pela
sensação de empoderamento entre as parceiras de bloco: [O dia
do desfile foi lindo. Ainda mais porque tinham meninas que nunca haviam tocado
instrumentos em outros carnavais, e naquele conseguiram. Esse é o nosso intuito,
empoderar. São mulheres ensinando outras mulheres — lembra Mariana, ressaltando
que a bateria delas procura ensaiar em todos os cantos da cidade, do Centro a
Madureira, para espalhar essa mensagem. [esclarecimento: a palavra correta é empoderamento, muitos confundem - não sabemos os motivos - com empoleiramento.]
Veterano
(o primeiro desfile foi em 2015), o Mulheres Rodadas decidiu investir no
resgate da memória de grandes brasileiras. O desfile deste ano terá uma “ala”
com 11 mulheres em pernas-de-pau. Tirando Amanda Salles, a jornalista de 27
anos que já era pernalta e ensinou o que sabia às outras, todas aprenderam a
técnica especialmente para este carnaval. Lá do alto, elas vão sair fantasiadas
de Clarice Lispector, Leila Diniz, Dandara, Luz del Fuego, Chiquinha Gonzaga,
Karol Conka, Elke Maravilha, Gal Costa, Rita Lee e até Gabriela, personagem de
Jorge Amado.
—
Trabalhei o estar na perna-de-pau como uma afirmação do que é ser mulher para
elas. A gente levantava toda uma discussão sobre como elas se sentiam
confortáveis na perna-de-pau. É um lugar em que você fica acima de todo mundo,
todo mundo te vê — relata Amanda.
As
fantasias também vão dar um recado contra o assédio e pela liberdade das
mulheres. Amanda, por exemplo, vai de seios à mostra como Luz del Fuego, nome
artístico da capixaba Dora Vivacqua que morreu em 1967, aos 50 anos de idade. — Ela
lutou pelo nudismo, então ir com os seios de fora, para mim, é muito
importante. É preciso bater nisso. Não podemos ver uma mulher que amamenta na
rua ser xingada — protesta. — Há também essa questão de não estar com meu corpo
disponível, apesar de ele estar visível.
Larissa
Araújo, estudante de medicina de 24 anos, é uma das pernaltas que vão desfilar
com o bloco. Ela mesma pesquisou na internet e escolheu ser a rapper curitibana
Karol Conka por um dia. — Me
identifiquei de cara com a causa do bloco. O objetivo é passar um pouco da
nossa história, da nossa força — afirma ela, entusiasmada para o desfile.
DEBATE
TAMBÉM NAS QUADRAS
No
universo das escolas de samba, onde o machismo também impera, o papo cabeça
carnavalesco chegou para ficar. Este ano, só há duas carnavalescas (Rosa
Magalhães e Márcia Lávia) entre as 13 escolas do Grupo Especial. Pensando nessa
e em outras desvantagens, as passistas do Salgueiro Larissa Neves, Rafaela
Dias, Sabrina Ginga e Mirna Moreira, que cresceram juntas frequentando os
ensaios da escola, decidiram criar, em 2016, o grupo Samba Pretinha. Nele, as
rodas de samba são também de conversa.
Depois de
uma pausa em 2017, quando as quatro (três estudantes universitárias e uma
cientista social) estavam envolvidas em trabalhos acadêmicos, as jovens
decidiram voltar com tudo. Um dos temas para o qual chamam atenção é o assédio
às passistas. A própria Larissa, estudante de psicologia de 23 anos, lembra das
vezes em que, durante as apresentações, os homens “escorregavam a mão” de
propósito ao tirar fotos ou, mais ousados, colocavam dinheiro no bustiê de sua
fantasia: — Sofro
assédio o tempo todo. É só vestir uma roupa curta e subir no palco que os
homens se acham no direito de algo. As meninas vão naturalizando. Quando eu era
mais nova, não me dava conta do quão grave isso era. Há histórias de várias
meninas que recebiam ultimato dos namorados: ou terminavam o relacionamento ou
seguiam como passistas — conta.
Outra
frente do Samba Pretinha é garantir que novos espaços conquistados pelas
mulheres sejam respeitados. As que se aventuram na bateria de grandes escolas,
por exemplo, não raro são discriminadas: — Por
mais que a mulher dentro do samba seja valorizada, porque tem a musa, a rainha
de bateria, o preconceito persiste — destaca Larissa.
Por acaso
ou não, este ano o enredo da escola do coração das jovens não poderia servir
melhor à causa. Com “Senhoras do ventre do mundo”, o Salgueiro chega à Sapucaí
mais feminista e feminino do que nunca para exaltar a força e o valor da mulher
negra.
O Globo
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