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domingo, 21 de janeiro de 2018

Carnaval este ano: se algum homem olhar para uma mulher quase totalmente nua, poderá ser preso por machismo e assédio



Mulheres espalham iniciativas contra machismo e assédio pelo carnaval

Reação aos abusos engloba mapa colaborativo, blocos e tatuagens feministas


É carnaval: hora de jogar confete e purpurina não apenas nas ruas, mas também sobre a causa feminista. Na onda do “Time’s up”, campanha contra abusos sexuais na indústria americana de cinema, os blocos do Rio preparam uma folia empoderada num ritmo até mais forte do que nos últimos anos. Além de repertórios contra o assédio e fantasias que brincam com o tema, as mulheres vão para o carnaval com “alegorias” mais práticas: um crowdfunding para financiar a distribuição de tatuagens feministas e até um site desenvolvido por uma ONG para receber denúncias anônimas e mapear onde os abusos acontecem. Tudo para não deixar a discussão acabar em samba. No enredo machista, puxada de cabelo, beijo forçado e até xingamentos ainda se repetem, mesmo nos cordões mais engajados.




Para Margarida Pressburguer, advogada e ex-subsecretária estadual de Políticas para Mulheres, “o exagero tem que ser punido e denunciado”. O caminho, diz, é longo:

— Há uma distinção grande entre assédio e galanteio. O mulher tem que poder ir para a rua e ter sossego — observa. — A mentalidade brasileira ainda é muito machista. A discussão sobre o assunto é importante, e o carnaval é um momento bom para a reflexão de até onde essas abordagens devem ir. 


O MAPA DO ABUSO

Os números da Polícia Militar revelam a gravidade do problema. Ano passado, a corporação recebeu 2.154 denúncias de assédio no serviço 190 durante o carnaval — 14% do total de chamados. Foi naquele carnaval que surgiu o coletivo carioca “Não é não”, que distribuiu 4 mil tatuagens adesivas com a mensagem que dá nome ao grupo. Este ano, a tiragem será seis vezes superior, com 25 mil adesivos, que também serão entregues gratuitamente em blocos de São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Olinda. O projeto tem tudo para ser uma febre entre as mulheres. Só ganhou impulso graças a uma campanha de financiamento coletivo no site Benfeitoria: a vaquinha já arrecadou R$ 20 mil.
— Queremos atingir cada vez mais pessoas com mensagens de conscientização. Nosso alerta, “não é não”, é muito óbvio, mas, infelizmente, a gente ainda tem que continuar falando sobre isso, estampando um aviso no corpo — afirma a designer Nandi Barbosa, de 28 anos, integrante do coletivo. — As mulheres precisam falar de assédio sem se sentirem intimidadas.

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Nandi, que trabalha com outras cinco produtoras na campanha deste ano, ressalta que o assédio marca presença em blocos porque os agressores se sentem no direito de importunar mulheres que exibem seus corpos de forma mais livre. Para a designer, todo abuso deve ser combatido, e não minimizado ou encarado como “cantada” ou “elogio”.
A tecnologia, desta vez, também será aliada. A Rede Nossas Cidades, que engloba a ONG Meu Rio, criou um portal na internet com um mapa colaborativo, em que mulheres daqui e de outras seis cidades do país poderão relatar situações de assédio durante o carnaval. Os relatos serão levados às autoridades. O site www.aconteceunocarnaval.org [tem tanta coisa que aconteceu no carnaval e vai continuar acontecendo] vai garantir o anonimato de todas as denunciantes.
— Queremos chegar ao governo de cada cidade para tentar transformar essa luta em política pública — informa Paula Lago, do site Catraca Livre, parceiro da Rede Nossas Cidades no projeto. [anotem o nome das mulheres que estão envolvidas com este movimento e confiram que serão candidatas, ainda que a vereadoras, nas próximas eleições - aparecerão invocando a condição de líderes.]
A campanha contra o assédio é uma luta tão árdua que até em um bloco que nasceu com esta bandeira, o Maria Vem com as Outras, houve episódios indesejados no último carnaval, praticados por homens que se aproximaram do grupo. Prestes a se apresentar pela segunda vez, o coletivo que reúne 40 mulheres — de engenheiras a jornalistas — escolheu a irreverência como resposta. As integrantes saem fantasiadas de bichos que costumam dar nome aos xingamentos usados para desqualificar as mulheres: cobra, cachorra, galinha, vaca, piranha. Na última quinta-feira, fizeram o dia do “barracão” na casa em que moram algumas delas, ocasião em que aproveitaram para confeccionar juntas os próprios adereços.


— Já demos um grande passo ao colocar o assunto do assédio em pauta. As pessoas estão falando, denunciando, mas ainda é preciso reafirmar as posições de que certas posturas dos homens são machistas e até criminosas. Também queremos deixar uma mensagem de que as mulheres são capazes e de que precisamos ser respeitadas — diz Aline Lima, de 32 anos, engenheira que está na posição de regente da “bloca”, como elas se chamam.


Todo o repertório vem de músicas de Cássia Eller, Chiquinha Gonzaga e Elza Soares. As meninas da “bloca”, que antes animavam outras baterias, se aproximaram depois que cansaram de ouvir homens repetindo que elas tocavam de um jeito “errado”, e de suportar piadas toda vez que pretendiam se aventurar em instrumentos mais pesados, como os surdos. Por esse motivo, quem quer entrar no coletivo não precisa de nenhum 


Mariana Teixeira, farmacêutica de 26 anos, recorda que, apesar dos episódio pontuais de assédio na apresentação do ano passado, o carnaval do grupo foi marcado pela sensação de empoderamento entre as parceiras de bloco: [O dia do desfile foi lindo. Ainda mais porque tinham meninas que nunca haviam tocado instrumentos em outros carnavais, e naquele conseguiram. Esse é o nosso intuito, empoderar. São mulheres ensinando outras mulheres — lembra Mariana, ressaltando que a bateria delas procura ensaiar em todos os cantos da cidade, do Centro a Madureira, para espalhar essa mensagem. [esclarecimento: a palavra correta é empoderamento, muitos confundem - não sabemos os motivos - com empoleiramento.] 

Veterano (o primeiro desfile foi em 2015), o Mulheres Rodadas decidiu investir no resgate da memória de grandes brasileiras. O desfile deste ano terá uma “ala” com 11 mulheres em pernas-de-pau. Tirando Amanda Salles, a jornalista de 27 anos que já era pernalta e ensinou o que sabia às outras, todas aprenderam a técnica especialmente para este carnaval. Lá do alto, elas vão sair fantasiadas de Clarice Lispector, Leila Diniz, Dandara, Luz del Fuego, Chiquinha Gonzaga, Karol Conka, Elke Maravilha, Gal Costa, Rita Lee e até Gabriela, personagem de Jorge Amado.

— Trabalhei o estar na perna-de-pau como uma afirmação do que é ser mulher para elas. A gente levantava toda uma discussão sobre como elas se sentiam confortáveis na perna-de-pau. É um lugar em que você fica acima de todo mundo, todo mundo te vê — relata Amanda.


As fantasias também vão dar um recado contra o assédio e pela liberdade das mulheres. Amanda, por exemplo, vai de seios à mostra como Luz del Fuego, nome artístico da capixaba Dora Vivacqua que morreu em 1967, aos 50 anos de idade. — Ela lutou pelo nudismo, então ir com os seios de fora, para mim, é muito importante. É preciso bater nisso. Não podemos ver uma mulher que amamenta na rua ser xingada — protesta. — Há também essa questão de não estar com meu corpo disponível, apesar de ele estar visível.


Larissa Araújo, estudante de medicina de 24 anos, é uma das pernaltas que vão desfilar com o bloco. Ela mesma pesquisou na internet e escolheu ser a rapper curitibana Karol Conka por um dia. — Me identifiquei de cara com a causa do bloco. O objetivo é passar um pouco da nossa história, da nossa força — afirma ela, entusiasmada para o desfile.
 
DEBATE TAMBÉM NAS QUADRAS

No universo das escolas de samba, onde o machismo também impera, o papo cabeça carnavalesco chegou para ficar. Este ano, só há duas carnavalescas (Rosa Magalhães e Márcia Lávia) entre as 13 escolas do Grupo Especial. Pensando nessa e em outras desvantagens, as passistas do Salgueiro Larissa Neves, Rafaela Dias, Sabrina Ginga e Mirna Moreira, que cresceram juntas frequentando os ensaios da escola, decidiram criar, em 2016, o grupo Samba Pretinha. Nele, as rodas de samba são também de conversa.

Depois de uma pausa em 2017, quando as quatro (três estudantes universitárias e uma cientista social) estavam envolvidas em trabalhos acadêmicos, as jovens decidiram voltar com tudo. Um dos temas para o qual chamam atenção é o assédio às passistas. A própria Larissa, estudante de psicologia de 23 anos, lembra das vezes em que, durante as apresentações, os homens “escorregavam a mão” de propósito ao tirar fotos ou, mais ousados, colocavam dinheiro no bustiê de sua fantasia:  — Sofro assédio o tempo todo. É só vestir uma roupa curta e subir no palco que os homens se acham no direito de algo. As meninas vão naturalizando. Quando eu era mais nova, não me dava conta do quão grave isso era. Há histórias de várias meninas que recebiam ultimato dos namorados: ou terminavam o relacionamento ou seguiam como passistas — conta.

Outra frente do Samba Pretinha é garantir que novos espaços conquistados pelas mulheres sejam respeitados. As que se aventuram na bateria de grandes escolas, por exemplo, não raro são discriminadas:  — Por mais que a mulher dentro do samba seja valorizada, porque tem a musa, a rainha de bateria, o preconceito persiste — destaca Larissa.
Por acaso ou não, este ano o enredo da escola do coração das jovens não poderia servir melhor à causa. Com “Senhoras do ventre do mundo”, o Salgueiro chega à Sapucaí mais feminista e feminino do que nunca para exaltar a força e o valor da mulher negra.

O Globo
 

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