Há sinais de que em nome de décadas de boa convivência e sólida relação comercial, os governos da Argentina e do Brasil decidiram optar pelo pragmatismo
A decisão do presidente Jair Bolsonaro de enviar o vice-presidente
Hamilton Mourão para representar o Brasil na posse do presidente da
Argentina, Alberto Fernández, realizada ontem, pode contribuir para
distender a relação entre os dois países, afetada por divergências
ideológicas profundas entre os dois chefes de Estado. Não se deve esperar, é claro, que essas divergências sejam de todo
superadas, pois derivam de visões de mundo completamente antagônicas,
mas há sinais de que, em nome de décadas de boa convivência e de uma
sólida relação comercial, os governos da Argentina e do Brasil
decidiram, afinal, optar pelo pragmatismo, e não pelo confronto.
Não parece ter sido uma decisão fácil para o presidente Bolsonaro, que
até o último minuto parecia firme em sua disposição de não enviar
ninguém do primeiro escalão para a posse de Alberto Fernández. Na
véspera, Bolsonaro informou que ainda estava analisando a “lista de
convidados” do novo presidente argentino para avaliar se mandaria
alguém.
A preocupação do presidente brasileiro era com a presença de líderes
esquerdistas com os quais não queria nenhum tipo de contato, a começar
pelo presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel. A tal lista de convidados
que Bolsonaro avaliou incluía o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, e
os ex-presidentes Lula da Silva e Dilma Rousseff, além dos
ex-presidentes Rafael Correa, do Equador; José Pepe Mujica, do Uruguai;
Fernando Lugo, do Paraguai; e Evo Morales, da Bolívia. Lula, Dilma, Evo e
Maduro não foram, mas era realmente difícil imaginar o presidente
Bolsonaro à vontade mesmo entre os demais próceres da esquerda
latino-americana que prestigiaram a posse.
Problema maior, contudo, era ter de cruzar olhares ou sair na foto com a
vice-presidente eleita, Cristina Kirchner. Durante a campanha eleitoral
argentina, Bolsonaro qualificou Fernández e Cristina de “bandidos de
esquerda” e disse que, se “a esquerdalha” vencesse, “o povo (argentino)
saca, em massa, seu dinheiro dos bancos”, entre outros efeitos
catastróficos.
Do lado argentino, o comportamento na campanha não foi muito melhor. O
agora presidente Fernández reagiu às provocações de Bolsonaro chamando o
presidente brasileiro de “racista, misógino e violento”. Além disso,
fez campanha pela libertação de Lula da Silva, qualificando o petista
como “preso político” – uma afronta à Justiça brasileira. Não era um bom
prenúncio para as relações entre os dois países.
Contudo, os ânimos parecem ter arrefecido. Há alguns dias, Fernández
aproveitou uma visita do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para enviar
a Bolsonaro uma mensagem de “respeito” pelo Brasil. Do lado brasileiro,
houve pressão, dentro do governo e também do Congresso, para que
Bolsonaro recuasse de sua determinação de boicotar a posse. Funcionou.
“Achamos melhor, para não dar a entender que estamos fechando portas”,
explicou Bolsonaro sobre a decisão de enviar o vice-presidente Mourão.
“O que interessa para nós interessa para eles”, completou o presidente,
referindo-se à relação entre os dois países.
Houve alívio imediato entre os empresários brasileiros. Embora admita
que “não ficou uma mensagem positiva” de todo o entrevero entre
Bolsonaro e Fernández, o vice-presidente da Fiesp, José Ricardo Roriz,
disse que “prevaleceu o bom senso”, pois “a Argentina é o país que
historicamente mais compra manufaturados do Brasil e é importante manter
uma boa relação, independentemente da posição ideológica do
presidente”.
Do lado argentino, o novo presidente disse, em seu discurso de posse,
que “com o Brasil, em particular, temos que construir uma agenda
ambiciosa, inovadora e criativa, nas áreas tecnológica, produtiva e
estratégica, apoiada pela irmandade histórica de nossos povos e que vá
além de qualquer diferença pessoal daqueles que governam”.
Se o Brasil não pode colocar em risco a relação com um parceiro
comercial tão estratégico como a Argentina, os argentinos, por sua vez,
não podem nem sequer cogitar de brigar com o Brasil no momento em que o
novo governo assume já avisando que “tem vontade de pagar (a dívida
externa), mas não tem capacidade para fazê-lo”.
A necessária distensão – Editorial - O Estado de S. Paulo
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