Coluna publicada em O Globo - Economia 10 de setembro de 2020
Em artigo recente no Estadão, Fernando Henrique Cardoso fez um “mea
culpa” pela introdução do sistema de reeleição. Foi uma reflexão clara e
corajosa. Disse que estava pensando no modelo americano, mas: “visto de
hoje, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a
reeleição é ingenuidade”. Ressalvou: “Eu procurei me conter. Apesar disso, fui acusado de
“haver comprado” votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De
pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso
era favorável à minha reeleição: temiam a vitória… do Lula. Devo
reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são
insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no
quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo “plebiscitário”, seria
preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final”.
O “mea culpa” teve óbvia repercussão. Alguns lembraram o episódio da
desvalorização cambial, feita em janeiro de 1999, logo após sua
reeleição. Um estelionato, dizem. Tendo acompanhado bem de perto todos esses acontecimentos, quero
deixar minha opinião sobre o conjunto da obra de FHC. Primeiro, é
verdade que a maioria queria a reeleição, tanto que FHC foi reeleito no
primeiro turno. Quanto à desvalorização do real, não era unanimidade que isso deveria
ser feito. Basta ler os Diários da Presidência de FHC e o noticiário da
época para conhecer o intenso debate que existia entre economistas
dentro e fora do governo. De todo modo, o mercado forçou a desvalorização e o que parecia ser o
fim do real, foi uma mudança crucial: a introdução da âncora fiscal.
Tudo considerado, FHC simplesmente liderou a maior virada econômica da
história brasileira.
Escolhido ministro da Fazenda por Itamar Franco, definiu o objetivo
central: dar ao país uma moeda confiável. Cercou-se de economistas que
ainda não tinham a fórmula pronta, mas eram acadêmicos que trabalhavam
numa determinada linha de pensamento – o pessoal da PUC-Rio, mais
ortodoxo. Muitos desses economistas haviam trabalhado no fracassado Plano
Cruzado (de 1987) e traziam dessa experiência uma impressão negativa do
ambiente político brasileiro. Achavam difícil viabilizar um plano de
estabilização, dadas as enormes mudanças que seriam necessárias em
praticamente todos os setores da vida econômica.
Por exemplo: na ocasião, até como herança do regime militar, era tudo
estatal (mineração, siderúrgicas, telecomunicações, bancos estaduais) e
tudo ineficiente. Os políticos da democracia haviam gostado muito desse
monte de vagas a ocupar. Como dizer a eles que seria preciso um amplo
programa de privatização? Só o prestígio pessoal e a liderança de FHC poderiam reunir, num
fraco governo Itamar, aqueles talentosos economistas. A história da
URV/Real já é bastante conhecida. Menos conhecida é a arquitetura
política desenhada por FHC para conseguir que o plano fosse aprovado
dentro do governo, no Congresso e na sociedade.
Mesmo o sucesso imediato do Real não tornou fácil aprovar as
complementações, especialmente a reforma (parcial) da Previdência, a Lei
de Responsabilidade Fiscal, a reforma administrativa, as privatizações,
a quebra do monopólio da Petrobrás. Já como presidente, FHC certamente
tinha mais poder, mas ainda assim precisou gastar muito capital político
na votação das reformas constitucionais. A oposição a essas medidas não vinha apenas do PT, mas dos próprios
aliados de FHC, de seus amigos da academia e de amplos setores da
sociedade, todos ainda com a cabeça antes da queda do muro de Berlim.
FHC foi um dos raros políticos de seu tempo a entender o novo mundo. Certamente houve equívocos – o “mea culpa”. Mas eis o que importa: ficamos com uma moeda de verdade e todo um
arcabouço institucional que preservou a estabilidade macroeconômica. Desde o segundo mandato de Lula, estão tentando destruir isso. Que a
estabilidade tenha resistido é prova de sua força. Mas a culpa dessa
tentativa de retrocesso não é só a reeleição. É da legião dos que acham
que governas é gastar e roubar. Incluindo a legião dos apanhados pela
Lava Jato.
Alguém disse sobre FHC: o melhor presidente que tivemos e que teremos.
[expressar uma opinião, ainda que absurda, é um direito que a democracia assegura - apesar do argumento "preservação da democracia" ser usado pelos que querem restringir tal direito = pessoas cujo slogan é:
- exprimir toda e qualquer opinião desfavorável ao presidente Bolsonaro é exercer o constitucional, democrático e legítimo direito de expressão; e,
- opinar desfavoravelmente contra os inimigos do presidente Bolsonaro = inimigos do Brasil, é atentar contra a Constituição, a Democracia e os direitos fundamentais.]
Também acho isso.
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
Em artigo recente no Estadão, Fernando Henrique Cardoso fez um “mea culpa” pela introdução do sistema de reeleição. Foi uma reflexão clara e corajosa. Disse que estava pensando no modelo americano, mas: “visto de hoje, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade”. Ressalvou: “Eu procurei me conter. Apesar disso, fui acusado de “haver comprado” votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória… do Lula. Devo reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo “plebiscitário”, seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final”.
O “mea culpa” teve óbvia repercussão. Alguns lembraram o episódio da desvalorização cambial, feita em janeiro de 1999, logo após sua reeleição. Um estelionato, dizem. Tendo acompanhado bem de perto todos esses acontecimentos, quero deixar minha opinião sobre o conjunto da obra de FHC. Primeiro, é verdade que a maioria queria a reeleição, tanto que FHC foi reeleito no primeiro turno. Quanto à desvalorização do real, não era unanimidade que isso deveria ser feito. Basta ler os Diários da Presidência de FHC e o noticiário da época para conhecer o intenso debate que existia entre economistas dentro e fora do governo. De todo modo, o mercado forçou a desvalorização e o que parecia ser o fim do real, foi uma mudança crucial: a introdução da âncora fiscal. Tudo considerado, FHC simplesmente liderou a maior virada econômica da história brasileira.
Escolhido ministro da Fazenda por Itamar Franco, definiu o objetivo central: dar ao país uma moeda confiável. Cercou-se de economistas que ainda não tinham a fórmula pronta, mas eram acadêmicos que trabalhavam numa determinada linha de pensamento – o pessoal da PUC-Rio, mais ortodoxo. Muitos desses economistas haviam trabalhado no fracassado Plano Cruzado (de 1987) e traziam dessa experiência uma impressão negativa do ambiente político brasileiro. Achavam difícil viabilizar um plano de estabilização, dadas as enormes mudanças que seriam necessárias em praticamente todos os setores da vida econômica.
Por exemplo: na ocasião, até como herança do regime militar, era tudo estatal (mineração, siderúrgicas, telecomunicações, bancos estaduais) e tudo ineficiente. Os políticos da democracia haviam gostado muito desse monte de vagas a ocupar. Como dizer a eles que seria preciso um amplo programa de privatização? Só o prestígio pessoal e a liderança de FHC poderiam reunir, num fraco governo Itamar, aqueles talentosos economistas. A história da URV/Real já é bastante conhecida. Menos conhecida é a arquitetura política desenhada por FHC para conseguir que o plano fosse aprovado dentro do governo, no Congresso e na sociedade.
Mesmo o sucesso imediato do Real não tornou fácil aprovar as complementações, especialmente a reforma (parcial) da Previdência, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a reforma administrativa, as privatizações, a quebra do monopólio da Petrobrás. Já como presidente, FHC certamente tinha mais poder, mas ainda assim precisou gastar muito capital político na votação das reformas constitucionais. A oposição a essas medidas não vinha apenas do PT, mas dos próprios aliados de FHC, de seus amigos da academia e de amplos setores da sociedade, todos ainda com a cabeça antes da queda do muro de Berlim.
FHC foi um dos raros políticos de seu tempo a entender o novo mundo. Certamente houve equívocos – o “mea culpa”. Mas eis o que importa: ficamos com uma moeda de verdade e todo um arcabouço institucional que preservou a estabilidade macroeconômica. Desde o segundo mandato de Lula, estão tentando destruir isso. Que a estabilidade tenha resistido é prova de sua força. Mas a culpa dessa tentativa de retrocesso não é só a reeleição. É da legião dos que acham que governas é gastar e roubar. Incluindo a legião dos apanhados pela Lava Jato.
Alguém disse sobre FHC: o melhor presidente que tivemos e que teremos.
[expressar uma opinião, ainda que absurda, é um direito que a democracia assegura - apesar do argumento "preservação da democracia" ser usado pelos que querem restringir tal direito = pessoas cujo slogan é:
- exprimir toda e qualquer opinião desfavorável ao presidente Bolsonaro é exercer o constitucional, democrático e legítimo direito de expressão; e,
- opinar desfavoravelmente contra os inimigos do presidente Bolsonaro = inimigos do Brasil, é atentar contra a Constituição, a Democracia e os direitos fundamentais.]
Também acho isso.
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
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