Ideológicos são os outros
Ao mesmo tempo em que atacava
“sistemas ideológicos de pensamento” que,
segundo ele, não
“buscavam a verdade”, mas o "poder absoluto", Bolsonaro
fez um discurso de alta carga ideológica, na qual atribuiu todos os
males do Brasil e do mundo ao socialismo e à esquerda, sem fazer
distinção entre a social-democracia e as ditaduras de
partido único
comunista. Já na abertura — como já havia feito em seu discurso de
posse e em outros pronunciamentos, incluindo na Casa Branca em março
deste ano —, ele disse que assumiu um país
“à beira do socialismo”. Como
suposta evidência disso, citou os médicos cubanos que trabalhavam no
programa Mais Médicos.
Sem chegar a usar a expressão
“marxismo cultural” — uma das favoritas
dos seguidores do guru da direita Olavo de Carvalho, entre eles o
chanceler Ernesto Araújo, seu filho Eduardo Bolsonaro e o assessor
internacional do Planalto Filipe Martins, que o ajudaram a redigir o
discurso —, o presidente disse que a
“ideologia se instalou” na
cultura, na educação e na mídia,
[tentando, sem êxito, até agora, apesar de algumas supremas e infundadas intervenções do STF.] dominando meios de comunicação,
universidade e escolas, destruindo a família, a “inocência das crianças”
e a fé em Deus. Atacou o “politicamente correto” e definiu a identidade
sexual como puramente “biológica”.
Por fim,
criticou o que direita chama de “globalismo”, termo pejorativo
para as instituições e tratados globais, afirmando que os nacionalismos e
as soberanias não podem ser “apagadas” em nome de um “interesse global
abstrato”. Pouco antes do discurso de Bolsonaro, ao abrir os debates da
Assembleia Geral, o secretário-geral da ONU, António Guterres, que foi
primeiro-ministro de Portugal pelo Partido Socialista, havia destacado
que as crises internacionais devem ser resolvidas multilateralmente, mas
sem interferências indevidas nas questões internas das nações.
Defesa da ditadura
De modo não explícito,
ao mesmo tempo em que atacava a ditadura do
Partido Comunista em Cuba e o regime venezuelano de Nicolás Maduro,
Bolsonaro reiterou a defesa das ditaduras militares instaladas no Brasil
e na maioria dos países da América Latina nos anos 1960. Disse que na
época houve uma
“guerra” contra supostos agentes cubanos na qual "
civis e
militares brasileiros" foram mortos, ignorando que o governo deposto em
1964 havia sido eleito e enfrentava tensões políticas internas
decorrentes de demandas populares pela ampliação da democracia e por
mais direitos sociais.
Por fim, não deixou de mencionar o Foro de São Paulo, uma obsessão de
círculos da direita que costumam superestimar sua influência, e que é
formado por mais de cem partidos políticos de várias correntes da
esquerda e centro-esquerda.
Sem reconhecer aumento das queimadas
Ao falar da Amazônia, Bolsonaro não reconheceu o aumento das queimadas
registrado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais),
atribuindo essas ocorrências ao
“clima seco e aos ventos” desta época do
ano, “que favorecem queimadas espontâneas e criminosas”. Disse que os
índios também promovem queimadas, e que o Brasil é alvo de “ataques
sensacionalistas” de “grande parte da mídia internacional”. "É uma
falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade", afirmou.
Sobre os povos indígenas,
reiterou que não haverá mais demarcações de
terras em seu governo. Citou as reservas ianomâmi e Raposa Terra do Sol,
dizendo que a cobiça pelos depósitos de minerais nesses locais motiva
as críticas ao seu governo, que, no entanto, já manifestou a intenção de
abrir essas áreas à exploração. Bolsonaro também voltou a atacar
organizações não governamentais que, segundo ele,
"teimam em tratar
nossos índios como verdadeiros homens das cavernas".
Sem estender a mão a europeus
Ao falar da Amazônia
, Bolsonaro manteve o tom de confronto com líderes
europeus como o francês Emmanuel Macron e a alemã Angela Merkel, que
fizeram críticas ao desmatamento da Amazônia e a sua política ambiental.
Sem mencioná-los pelo nome, disse que
“um ou outro país embarcou nas
mentiras da mídia” e se comportou
“com espírito colonialista”. Disse que
a
França e a Alemanha exploram “mais de 50%” de suas terras para a
agricultura, enquanto o Brasil preserva a maior parte do seu território.
O presidente atacou, por duas vezes,
o cacique Raoni, que esteve com
Macron e o criticou em fóruns internacionais. Bolsonaro, cujas
políticas levaram ao bloqueio do Fundo Amazônia, mantido pela Noruega e a
Alemanha, também disse
“qualquer iniciativa de ajuda ou apoio” para a
preservação da floresta deve
“ser tratada em pleno respeito à soberania
brasileira”. Na reunião do G7 na França, ao ser questionado sobre
propostas de internacionalização da gestão da Amazônia, Macron disse que
o debate existia e poderia ser travado no futuro, mas não estava posto
no momento.
Preferência por Trump
O presidente americano, desde o início escolhido como aliado
preferencial pelo governo Bolsonaro — e que também atacou o
“globalismo”
em seu discurso na ONU feito logo em seguida ao do brasileiro —,
foi
citado nominalmente no discurso, deferência também reservada ao
argentino Mauricio Macri, que corre o risco de ser derrotado na eleição
de 27 de outubro. Segundo o presidente, Donald Trump evitou que o G7, o
grupo das sete maiores economias capitalistas, aprovasse sanções ao
Brasil pelas queimadas na Amazônia. Na verdade, não houve proposta de
sanções ao Brasil na última cúpula do grupo, na França, no final de
agosto.
Defesa do livre comércio
Embora a economia brasileira demore a se recuperar da recessão iniciada
em 2015,
Bolsonaro traçou um quadro otimista dos efeitos da política
econômica do seu governo, afirmando que a
“economia está reagindo” ao
“romper os vícios e as amarras de quase duas décadas de
irresponsabilidade fiscal, aparelhamento do Estado e corrupção
generalizada”. Destacou seu compromisso com a "liberdade econômica",
dizendo que "o livre mercado, as concessões e as privatizações" já se
fazem presentes no Brasil hoje, embora governos anteriores também tenham
privatizado e concedido ao setor privado a exploração de recursos
naturais e serviços públicos, como rodovias, aeroportos e fornecimento
de eletricidade.
O presidente fez uma defesa da abertura da economia, congratulando-se
pelos acordos firmados
"em apenas oito meses" entre o Mercosul e a União
Europeia e entre o bloco sul-americano e a Área Europeia de Livre
Comércio, embora esses tratados já viessem sendo negociados nos governos
anteriores. A ratificação desses acordos de livre comércio, no entanto,
pode ser dificultada se o governo brasileiro mantiver a tensão no
relacionamento com dirigentes europeus.
Direitos humanos e a polícia
Bolsonaro disse que tem
“compromisso intransigente” com os direitos
humanos, mas que esse compromisso
“caminha junto com o combate à
corrupção e à criminalidade”. Quatro dias depois da morte da menina
Ágatha, de oito anos, atingida por um tiro disparado pela polícia no
Complexo do Alemão, no Rio, o presidente destacou a morte de policiais
militares decorrente da violência criminosa, mas não a de civis. No
início de setembro, o brasileiro atacou a comissária de Direitos Humanos
da ONU, a chilena Michelle Bachelet, depois que ela apontou, em
entrevista, o aumento dos homicídios cometidos pelas polícias dos
estados do Rio e de São Paulo.
[quando a polícia se torna mais eficiente é natural que mate mais = polícia nas rua é mais bandido presou e/ou na vala.]
Ao falar do combate ao crime, o presidente destacou a
extradição do
italiano Cesare Battisti, ex-militante de um grupo armado de extrema
esquerda, e de
três opositores paraguaios que tiveram seu status de
refugiados no Brasil revogado, chamando-os indistintamente de
"terroristas". Não mencionou que o país tem uma longa tradição de asilo,
que beneficiou pessoas de diferentes ideologias, incluindo o ex-ditador
paraguaio Alfredo Stroessner.
Nesse item, B
olsonaro voltou a citar presidentes anteriores do Brasil
que desfrutavam de maior prestígio internacional do que o dele.
Mencionou a
"segurança e a coragem" de Sergio Moro por ter julgado e
punido ex-presidentes, que segundo ele eram aplaudidos na ONU sem nunca
terem atendido
"os reais interesses do Brasil" nem contribuído "
para a
estabilidade mundial".
E MAIS:
Bolsonaro na ONU: ‘Repercussão ruim entre adversários é sinal que discurso foi muito bom’, diz Augusto Heleno
Aceno aos militares
Bolsonaro fez um aceno específico aos militares ao falar da
participação
do Brasil em missões de paz das Nações Unidas no Haiti, no Líbano e na
República Democrática do Congo. Não mencionou que todos os postos de
destaque obtidos pelo Brasil nessas missões foram negociados em governos
anteriores ao seu, e que sua intenção de classificar o Hezbollah como
"terrorista" pode pôr em risco o papel do Brasil no país do Oriente
Médio, onde o movimento xiita participa do governo.
O presidente disse que os contingentes brasileiros
“são reconhecidos
pela qualidade do seu trabalho e pelo respeito à população” e que o país
continuará contribuindo para as missões de paz, mencionando a
experiência brasileira no treinamento e na capacitação de tropas.
Integrantes do seu governo, como Augusto Heleno, ministro do Gabinete de
Segurança Institucional, lideraram forças de paz da ONU. Heleno também
participou da redação do discurso de Bolsonaro na ONU.
O Globo