Um dos principais projetos logísticos do país e considerada
prioridade absoluta do Ministério da Infraestrutura, a Ferrogrão tem
tudo para se tornar a rota mais importante de escoamento do agronegócio
brasileiro. Com previsão de alcançar 933 quilômetros em extensão, a
ferrovia conectará a região produtora de grãos do Centro-Oeste, em Mato
Grosso, ao Estado do Pará, desembocando no Porto de Miritituba. A
Ferrogrão ligará os municípios de Sinop (MT) e Itaituba (PA), às margens
do Rio Tapajós. Um dos trunfos do projeto é a capacidade de levar parte
da carga do agro para os portos da Região Norte. Além disso, serviria
como uma “esteira de grãos”, substituindo o modal rodoviário — meio de
transporte mais poluente e ineficiente — e criando uma multimodalidade
formada por ferrovia, hidrovia e portos. Em 30 anos, a expectativa é que
a Ferrogrão movimente 48,6 milhões de toneladas e crie 160 mil
empregos, reduzindo em quase R$ 20 bilhões o custo logístico da
produção. O investimento estimado para o projeto é de R$ 12 bilhões.
J. R. Guzzo: “Uma agressão contra o Brasil e os brasileiros”
Parece auspicioso, e é. Mas, como o Brasil raramente perde a
oportunidade de frustrar qualquer esboço de progresso e desenvolvimento,
uma decisão tomada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF),
em 15 de março, literalmente tirou o país dos trilhos. Atendendo a uma
reivindicação do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), um baluarte de
nossa esquerda mais atrasada, o magistrado suspendeu a eficácia da Lei
13.452/2017, que teve origem em um projeto de conversão da Medida
Provisória (MP) 758/2016. Essa MP alterou os limites do Parque Nacional
do Jamanxim, no Pará, excluindo 862 hectares da unidade de conservação
ambiental.
Na ação impetrada pelo Psol, o partido alega que somente uma lei em
sentido formal — e não uma MP — poderia autorizar a alteração ou a
supressão de áreas de unidades de conservação. Segundo os socialistas, o
Parque Nacional de Jamanxim (que fica entre os municípios paraenses de
Itaituba e Trairão) é um patrimônio cultural imaterial do Brasil. A
legenda afirma que “os povos indígenas brasileiros são os nossos
melhores protetores das florestas” e “seu modo de vida e sua cultura são
muito mais avançados que qualquer outra experiência histórica e humana
conhecida”. Nesse sentido, prossegue o Psol, “a práxis dos não indígenas
é que se considera predatória e suicida”.
Leia mais: “‘Esquerda retrógrada’, diz ex-secretário de Bolsonaro após decisão de Moraes de suspender projeto de ferrovia”
De acordo com o entendimento de Moraes (leia aqui
a íntegra da decisão), uma alteração territorial dessa natureza não
poderia ter sido realizada por meio de medida provisória — além de
causar danos ao meio ambiente. “No caso sob análise, considerada a
aparente redução do patamar de proteção ambiental decorrente da exclusão
de cerca de 862 hectares do Parque Nacional do Jamanxim, bem como o
fato de que a edição de medidas provisórias não satisfaz a exigência de
lei em sentido formal para a alteração ou modificação de matéria que a
Constituição Federal submeteu a regime mais rígido e estável, afigura-se
necessário reconhecer a plausibilidade do risco de que a medida
provisória […] venha a produzir efeitos irreversíveis que,
posteriormente, não poderiam ser alcançados por eventual declaração de
inconstitucionalidade”, assinalou o ministro em seu despacho. A decisão
será submetida ao plenário do STF, para apreciação dos demais ministros
da Corte, e pode ser revertida.
Sem dano ambiental A MP contestada pelo Psol promoveu o alargamento da chamada
“faixa de
domínio” de
50 metros na lateral da Rodovia BR-163, que tinha
originalmente 396 hectares e passou a contar com 862 — o que corresponde
a uma
redução de 466 hectares do Parque do Jamanxim ou, mais
precisamente, 0,054% de sua área original, de 862.895,27 hectares. Além
da interferência mínima, a MP acrescentou ao parque uma área de 51.135
hectares em floresta preservada.
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“É um absurdo. Quando você contabiliza que esse produto que sairia da
ferrovia vai por caminhão, só a diferença de consumo de combustível do
modal rodoviário para o ferroviário já acaba com essa argumentação. É
muito espantoso que não se ouça o setor, que não se ouçam alguns Estados
que são cortados por essa ferrovia, e se tome uma decisão arbitrária
como essa”, afirmou a Oeste o presidente da Associação
dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT), Fernando
Cadore. “Em nossa visão, deveria ter sido uma decisão colegiada, e não
monocrática, e pautada em muito mais embasamento, em muito mais estudo
do impacto. Esse tipo de decisão é que tem travado o desenvolvimento do
nosso país, que já tem uma infraestrutura carente que está mais de um
século ultrapassada quando a gente compara com a evolução da produção”,
prossegue. “Isso só faz mal para o país, para a região afetada e para a
sociedade de maneira geral, uma vez que você não tem opção para diminuir
o custo do transporte, e a ferrovia viria para isso. Esse custo chega
ao bolso do consumidor final, quando ele vai ao supermercado fazer a
compra da cesta básica.”
Leia mais sobre ferrovias no artigo “O direito a viajar de trem”, de Dagomir Marquezi, publicado na Edição 18 da Revista Oeste
O advogado ambientalista Fernando Augusto do Prado, coordenador do
Núcleo de Agronegócio do escritório Nelson Wilians Advogados e membro da
Comissão de Direito Agrário da Ordem dos Advogados do Brasil de Goiás
(OAB-GO), avalia que Moraes, tecnicamente, poderia, de fato, ter tomado a
decisão que tomou, “observando apenas a legislação ambiental e os
princípios que a norteiam”. O que Moraes parece ter ignorado é que a
proibição de alterações em áreas protegidas, por meio de MP, entrou em
vigor somente a partir de 2019, conforme decisão do próprio STF — três
anos após a edição da MP. O advogado aponta um evidente componente
político por trás desse posicionamento. “Analisando os fatos e sua
cronologia, logo se perceberá que a medida provisória de 2016, que virou
lei em 2017, foi alvo de uma ação de inconstitucionalidade somente em
2020, o que nos leva a crer que se trata de uma manobra política do
partido autor da ação e que o STF está alinhado com a política exercida
pela oposição do governo Bolsonaro”, afirma a Oeste.
“Naturalmente, há matérias que vão à apreciação do STF que carregam em
si aspectos políticos, mas o julgamento, em minha opinião, não pode ser
contaminado pelo ambiente político. Em razão desses vários aspectos, o
mais prudente seria que o julgamento fosse levado diretamente ao
plenário”, prossegue.
Prado também rechaça a tese de que uma das alterações não poderia ter
sido feita por meio de MP. “No que diz respeito ao sentido formal, a
origem de uma lei via medida provisória tem o seu procedimento traçado
na Constituição Federal, o que foi observado quando da conversão da MP
758/2016 na Lei 13.452/2017”, explica.
Interferência ‘suprema’ Cadore ataca o que chama de
“judicialização da governabilidade”, com
decisões do STF que interferem nas atribuições do Poder Executivo.
“Nós
entendemos que o Executivo tem que fazer a gestão, que o Legislativo tem
que cuidar da legislação e que o Judiciário tem que julgar o que cabe a
ele. A partir do momento em que os Poderes começam a se entrelaçar e o
Judiciário acha que tem poder para ser o Executivo, as coisas perdem o
sentido e andam para trás”, critica.
“É isso que estamos vivendo no
país, infelizmente. Esperamos que os setores sejam ouvidos quando forem
tomar decisões que causem impacto em determinado segmento da economia.”
A Aprosoja-MT entrou como
amicus curiae em uma ação apresentada pelo governo federal pedindo a reversão da decisão de Moraes.
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Em nota encaminhada a Oeste, o Ministério da Infraestrutura
afirma que “entende, respeita e corrobora com o compromisso do STF com o
meio ambiente”, mas “segue confiante em sua argumentação em favor da
medida editada em governo anterior e referendada pelo Congresso
Nacional”. “Todos os pontos serão apresentados em favor da viabilidade
ambiental, econômica e jurídica da ferrovia”, diz a pasta. O governo
afirma ainda que o projeto pretende reduzir “em 50% a emissão dos gases
do efeito estufa” e “1 milhão de toneladas de CO₂ da atmosfera da
Amazônia”. “A implementação da Ferrogrão visa a fazer o Brasil maior e
mais competitivo da ‘porteira para fora’”, completa o ministério.
Governo otimista O governo federal está otimista em reverter a decisão de Alexandre de Moraes. Oeste apurou que o ministro da Infraestrutura,
Tarcísio Gomes de Freitas, tem evitado comentar publicamente o caso justamente para não ferir suscetibilidades de ministros do STF. Nas palavras de um interlocutor
próximo ao ministro, o objetivo é “
não aumentar a temperatura nas redes e
na imprensa” e “não politizar o assunto”.
Leia mais: “Tarcísio articula-se para destravar obras da Ferrogrão”
Desde a decisão de Moraes de suspender o projeto da Ferrogrão,
Tarcísio atuou reservadamente junto a ministros do STF para tentar
convencê-los da importância da ferrovia para o agronegócio brasileiro e,
por tabela, para o país. Pelo menos três ministros da Corte teriam sido
procurados. O imbróglio que envolve o projeto da Ferrogrão chegou a ser
levado ao plenário virtual do STF no dia 26 de março, mas acabou
retirado pelo próprio Moraes. O assunto pode ser debatido pelos
ministros a qualquer momento. “Fica muito claro que é uma decisão que
tem que ser revertida para o bem do país e da população de maneira
geral. Nesse sentido, estamos otimistas, até porque não existe esse dano
ambiental colocado pelo Psol. Foi uma narrativa de inverdades. Seria
uma insanidade não dar sequência a um projeto de que o país precisa”,
afirma Cadore.
Em entrevista ao jornalista Silvio Navarro publicada na Edição 27 da Revista Oeste (leia aqui),
o ministro Tarcísio ilustrou com clareza a importância econômica da
Ferrogrão para o Brasil. “Estamos investindo em ferrovias, que é o meio
ideal para o transporte de produtos de baixo valor agregado, como é o
caso de nossas commodities. Mas ferrovia não para em fazenda nem no supermercado. Por isso a importância da multimodalidade”, disse. “[A Ferrogrão]
É, sem dúvida, o projeto mais ambicioso de nossa história recente e tem
potencial para revolucionar a logística brasileira, ampliando a
competitividade do nosso produto no cenário global. […] Se criarmos
corredores mais eficientes de exportação, a produção hoje de Mato Grosso
pode saltar dos atuais 60 milhões para 110 milhões ou 120 milhões de
toneladas. Isso tudo sem precisar derrubar uma árvore.”
O agronegócio brasileiro, referência mundial de excelência e
competitividade, aguarda ansiosamente pelo dia em que a Ferrogrão sairá
do papel. Para que isso aconteça, é necessário que os ministros da mais
alta Corte do Judiciário se manifestem sobre a infeliz decisão de
Alexandre de Moraes — e a revertam, para o bem do país e em nome do
progresso e do desenvolvimento econômico. É preciso recolocar o Brasil
nos trilhos.
Leia também: “O fim do gargalo na infraestrutura”, entrevista de Tarcísio Gomes de Freitas publicada na Edição 27 da Revista Oeste