No
último século, a inflação tem sido tema de intensa discussão em vários
países do mundo. Políticos, analistas e jornalistas falam de inflação
veementemente, porém sempre referindo-se a alguma taxa média de aumento
de determinados preços.
Essa forma de inflação é
equivocada por vários motivos:
1. Porque,
tecnicamente, a inflação não é o aumento dos preços. O aumento dos
preços é uma consequência direta da inflação. Inclusive, tecnicamente
pode haver inflação até mesmo sem que os preços subam.
2.
Porque os preços sobem e descem circunstancialmente por muitos motivos
não relacionados à inflação. Em suma, todos os preços – incluindo o do
dinheiro – estão em constante movimento de acordo com múltiplos fatores
que influenciam a oferta e a demanda.
3. Porque a
escolha de um punhado de produtos, por mais importantes e genéricos que
sejam, normalmente é arbitrária e gera diferentes resultados dependendo
dos produtos selecionados. Essa forma de "medir a inflação" não resulta
da ignorância, mas geralmente é a maneira pela qual os governos tendem a
distrair as pessoas com suas estatísticas e manipular os resultados.
Ainda assim, e apesar disso, em todo o mundo fala-se de inflação
nesse sentido, e são feitos cálculos, projeções e previsões, sob o auspício dos
políticos, que estão prontos para ajudar a espalhar a confusão a fim de
afastarem-se da própria responsabilidade em um fato do qual eles são os únicos
culpados.
A verdade é que a inflação é o aumento da
quantidade de dinheiro – o que "infla" é o dinheiro, não os preços –, e o
único que pode produzir esse efeito nos atuais regimes de moeda
fiduciária, criado e imposto monopolisticamente pela legislação, é o
próprio governo.
Em
tempos de padrões monetários vinculados a determinados bens de uso
comum, a quantidade de dinheiro era regulada por mecanismos de mercado
sem interferência do Estado. A partir da escolha de certos metais
preciosos, surgiu a oportunidade para intervenção estatal por meio da
cunhagem de moedas, cujo monopólio os monarcas justificavam com a
necessidade de garantir a quantidade e a qualidade do metal de cada
unidade monetária.
Mas, como veremos adiante, isso
acabou sendo apenas uma desculpa para degradar a qualidade das moedas
com o objetivo de aumentar sua quantidade e financiar suas próprias
despesas. A inflação, como fenômeno político generalizado, tem sua
origem nessas manobras dos governantes sobre as moedas que cunhavam.
Há mais de um século, em uma época em que o padrão-ouro
cambaleava devido à intervenção de Estados que suspendiam a conversibilidade da
moeda para usar o ouro nas despesas de guerra, Ludwig von Mises, alertou o
seguinte:
Em um sistema econômico baseado na
propriedade privada dos meios de produção, nenhuma regulação
governamental pode alterar os termos de troca, exceto se modificar os
fatores que os determinam.
Reis e repúblicas recusaram-se repetidamente a reconhecer esse fato. O edito do imperador romano Diocleciano de pretiss rerum venalium
["sobre os preços dos allimentos", publicado no ano 301 e que buscava a
reestruturação do sistema de cunhagem de moedas, além de determinar um
congelamento de salários e preços de vários tipos de bens, especialmente
alimentos], as regulações de preços na Idade Média e os preços máximos
na Revolução Francesa são os exemplos mais conhecidos do fracasso da
interferência autoritária no mercado. Em um Estado que deixa a produção
e a distribuição para as empresas privadas, tais medidas não podem
outra coisa a não ser falhar.
O conceito de
moeda como uma criação do Direito e do Estado é claramente
insustentável. Nenhum fenômeno do mercado o justifica. Atribuir ao
Estado o poder de ditar as leis de intercâmbio é ignorar os princípios
fundamentais das sociedades que utilizam dinheiro.
O
abandono dos padrões monetários baseados em bens físicos –
principalmente o padrão-ouro –, e sua substituição por cédulas impressas
que o Estado emite de forma monopolista, obriga as pessoas a
utilizá-las pelo curso legal e forçado [uso regulamentado por lei e
obrigatório, respectivamente, da moeda estabelecida por lei em
determinado país], colocou o dinheiro em risco. A generalização de
situações de alta inflação que se viu muitas vezes em boa parte do mundo
no século XX e até agora, no século XXI, deve-se aos excessos causados
por esse monopólio estatal de emissão desses papéis chamados "dinheiro" e
a falta de controle efetivo sobre quem pode produzi-los.
Como
apontou Friedrich Hayek, os governos nunca utilizaram seu poder para
fornecer uma moeda aceitável e evitaram cometer grandes abusos apenas
durante a manutenção do padrão-ouro. Uma vez libertos das restrições
impostas pela quantidade restrita de metal, eles cometiam todo tipo de
descalabro pelo manuseio discricionário do dinheiro de papel.
Por meio desse mecanismo, se produz uma agressão generalizada ao
direito de propriedade. O Estado monopoliza a gestão monetária, emite moeda de
curso forçado que as pessoas devem obrigatoriamente usar nas suas transações e,
ao mesmo tempo, vai reduzindo seu valor ao aumentar sua quantidade. Na prática,
esse processo equivale a roubar de cada pessoa uma quantia de dinheiro que ela
carrega no bolso, sem que ela perceba.
O problema
torna-se complexo porque a relação existente entre preço e moeda é tão
próxima que, às vezes, é difícil diferenciá-los e a inflação tende a ser
interpretada como o aumento dos preços, e não como o aumento da
quantidade de dinheiro. No entanto, apontar claramente essa diferença é
algo extremamente necessário para identificarmos quem é o verdadeiro
culpado pela inflação; pois considerar o aumento de preços como inflação
não é um erro inocente, mas um meio de desviar a atenção das pessoas,
tirando o foco dos próprios governantes e depositando-o nos
comerciantes, banqueiros e conspiradores.
Não há
queixa mais difundida do que a que tem por objeto o "alto custo de
vida". Nenhuma geração deixou de expressar seu descontentamento com os
"tempos caros" em que viveram. Mas o fato de que "tudo" se torna mais
caro ao longo do tempo simplesmente corresponde à queda objetiva do
valor de troca da moeda. [Ludwig von Mises, em 'Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel' (1912)]
Essa
conversa fiada que os políticos usam para esconder a causa da inflação
teve bastante sucesso no mundo todo e se intensificou pela propensão das
pessoas em colocar seus direitos nas mãos do governo e esperar que seja
ele quem resolva todos os problemas. Nesse aspecto dizia Hans Sennholtz
(1922-2007), em 1978, sobre os efeitos da inflação nos Estados Unidos:
Nossa
era é de inflação. Durante nossa vida, todas as moedas sofreram
depreciações importantes. Em termos do dólar do consumidor de 1933, hoje
fazemos compras com dólares que valem apenas vinte centavos; em termos
da construção civil, tão vital para os negócios, compramos materiais e
mão de obra com dólares que valem apenas seis ou até cinco centavos.
Embora, talvez, as autoridades não tenham tido a intenção explícita de
inflar a moeda, seus sintomas e consequências são igualmente graves e
reais. A inflação corrói a poupança das pessoas e sua confiança nos
próprios recursos à medida que, gradualmente, corrói suas economias.
Ao
beneficiar os devedores às custas dos credores, cria um fluxo maciço de
receitas e perdas injustas. Consome o capital produtivo e destrói a
classe média que investe em instrumentos monetários. Produz os chamados
ciclos econômicos, os movimentos comerciais de euforia e crise que
prejudicam milhões de pessoas. Convida o governo a fazer uso do controle
de preços e salários e outras políticas restritivas que impedem a
liberdade e as atividades individuais. Em suma, a inflação produz
catástrofes econômicas e desordens sociais e, em geral, corrói a fibra
moral e social da sociedade livre.
Não há
dúvida de que todo verdadeiro norte-americano deseja sinceramente deter a
inflação e salvar o dólar. Mas a dificuldade provém da adesão do
público àquelas políticas que são diretamente inflacionárias ou que
exigem a emissão de moeda. A forma como as pessoas condenam publicamente
as consequências dessas políticas é incongruente. É semelhante à
confissão pública de pecados que se faz nas igrejas aos domingos de
manhã. O padre recita a confissão, a congregação o acompanha em voz alta
e depois seus membros retornam para suas casas para continuar pecando.
O
presidente denuncia a inflação na segunda-feira e, na terça-feira,
aprova outra lei concedendo bilhões de dólares. Políticos que na
quarta-feira fazem muito barulho na luta contra a inflação, na
quinta-feira propõem mais leis dispendiosas para estímulos econômicos
artificiais e redistribuição de riqueza. Na sexta-feira, os
comentaristas de notícias também entram na guerra contra a inflação,
mas, no sábado, com muita coragem, se manifestam a favor de outro
programa perdulário de melhoria econômica artificial. E o ritual se
repete na semana seguinte.
O
governo que, repetidas vezes, declarou guerra à inflação é o mesmo que a
iniciou, forma ativa, causou-a e continua levando-a adiante com cada
vez mais força. Os mesmos políticos que às vezes discursam como se
fossem militantes na luta contra a inflação brigam entre si para gastar
cada dólar do déficit fiscal
Por essa razão, as
“soluções” estatais para a inflação frequentemente consistem em
estabelecer controles de preços, cujos resultados sempre foram um
fracasso. No final da Segunda Guerra Mundial, Ludwig von Mises
(1881-1973) afirmou:
O verdadeiro perigo não está
no que já aconteceu, mas nas falsas doutrinas oriundas desses fatos. A
superstição de que o governo pode prevenir as consequências inevitáveis
da inflação por meio do controle dos preços é o principal perigo. Isso
ocorre porque essa doutrina desvia a atenção do público do foco do
problema.
Enquanto as autoridades travam
uma luta inútil contra o fenômeno que acompanha a inflação, poucos são
os que atacam a origem do mal, ou seja, os métodos que o governo utiliza
para solucionar o excesso de gastos. Enquanto a burocracia ocupa as
primeiras páginas dos jornais com suas extensas atividades, as
estatísticas referentes ao aumento da circulação monetária do país são
relegadas a um espaço secundário nas páginas de economia dos jornais.
É
o que pretendo mostrar na primeira parte do meu livro 'Inflação como
Delito'. Para isso, abordo questões como o que é o dinheiro, o que são
os preços, o que é inflação, quais são suas causas e como poderia ser
evitada. Isso nos permite concluir que, na verdade, o governo é o único
produtor de inflação e que, ao fazê-lo, gera um mecanismo de coerção que
confisca os bens das pessoas, mina a confiança do público na moeda e
incorpora um crescente abuso de poder.
Mais adiante
examinano esse processo de alteração monetária e expropriação de bens à
luz do direito penal. Minha conclusão é que a ação intencional de
aumentar a quantidade de dinheiro por parte de determinados funcionários
públicos – geralmente com o objetivo de cobrir o déficit de seus
orçamentos – viola alguns direitos legais protegidos pela legislação
penal.
Disso decorre que tal ação dolosa deveria ser incluída como
crime nos códigos penais. Mas, para garantir o princípio da legalidade que rege
a matéria penal, a própria legislação deveria esclarecer quais são os limites
objetivos e específicos para a emissão de moeda, cuja transgressão tornaria
criminosa a conduta dos agentes que a ordenam.
Por
fim, como corolário da minha explicação, proponho um tipo penal
específico incluído em um capítulo sobre falsificação e adulteração de
moeda, onde julgo apropriado situar tal crime. Também apresento uma
proposta de modificação da legislação orgânica do banco central ou da
autoridade monetária de cada país, no que tange ao seu poder de ordenar a
emissão de moeda e seus limites, e que deve ser complementada pela
garantia da livre circulação das moedas, de forma que a concorrência
atue como um controle efetivo para detectar a tempo qualquer alteração
nas limitações na quantidade de dinheiro em circulação.
A
fim de eliminar a principal causa da emissão monetária, que é cobrir os
gastos excessivos do governo, também proponho que, por meio de
alteração legislativa, o banco central seja impedido de conceder
financiamento ao governo ou adquirir títulos públicos, seja com suas
reservas ou com dinheiro emitido para tal efeito.
Os sujeitos ativos desse tipo penal serão os funcionários dos
bancos centrais e do poder executivo em questão, envolvidos na decisão de
emitir e colocar dinheiro em circulação de forma espúria.
Deste
modo, a intenção do livro é alertar sobre a necessidade de impor
maiores limites e responsabilidades ao poder estatal que se tornou
praticamente incontrolável. Nunca como atualmente o Estado imiscuiu-se
tão profundamente em uma questão que nunca deveria ter sido expropriada
das pessoas. O dinheiro surgiu espontaneamente como um bem cuja
aceitabilidade generalizada o tornou um meio de troca. Não foi uma
criação de uma autoridade ou governo. No entanto, com o tempo, sua
dependência da autoridade política não parou de crescer.
Sei
que o ideal seria devolver esse poder aos indivíduos e permitir que o
dinheiro surja espontaneamente no mercado, em tantas formas diferentes
quanto a vontade das pessoas que fazem trocas se quiserem. Mas, enquanto
permanecer como produto da atividade estatal, será necessário, ao
menos, impor limites mais claros a esse poder.
É
interessante notar que, embora a teoria econômica tenha se desenvolvido
a partir de decisões individuais tomadas por pessoas com base em seus
próprios valores e motivações, e sejam admitidas as vantagens do
processo de mercado para definição de preços e crescimento geral da
economia, também houve quase o mesmo consenso para eliminar o processo
de mercado na definição de um preço fundamental, o preço do dinheiro, o
preço daquilo que é utilizado para expressar os preços. A interferência
estatal na moeda impediu o desenvolvimento teórico em torno de como
funcionariam sistemas com liberdade monetária, com bancos atuando
livremente, emitindo suas próprias cédulas e se responsabilizando por
suas decisões frente ao impiedoso escrutínio dos consumidores de
dinheiro.
O princípio de que a livre concorrência
entre os diferentes produtores de bens e serviços serve aos interesses
dos consumidores e que o monopólio se opõe a eles tem orientado a
corrente dominante no pensamento econômico desde o tempo de Adam Smith. A
maior parte das iniciativas empresariais realizadas foi influenciada
por esse princípio, com a única exceção da cunhagem de moedas metálicas
inicialmente e, depois, a emissão de bilhetes de bancos. Apenas uma
minoria de teóricos opôs-se aos governos que permitiram a criação de
bancos que detinham o monopólio ou quase monopólio da emissão de
papel-moeda nos séculos XVII, XVIII e XIX. Um grupo menor ainda criticou
os governos quando, mais tarde, eles idealizaram a criação de bancos
centrais de emissão à frente dos sistemas bancários – uma ideia
supostamente bem pensada para monopolizar a oferta de moeda e reservas
bancárias –, uma solução que passou a ser considerada indispensável para
uma política monetária nacional.
Como
consequência, a teoria das implicações da oferta de moeda bancária
interna (dinheiro em espécie e depósitos à vista em contas correntes)
descentralizada por meio de múltiplos emissores concorrentes foi
amplamente ignorada. De fato, a existência de um banco central que
monopoliza a emissão de notas e reservas monetárias para os demais
bancos comerciais de um país foi, durante muitos anos, considerada uma
realidade tão evidente que não houve qualquer esforço para analisar
sistemas alternativos, nem que fosse apenas para mostrar que, se
implementados, fracassariam. [George A. Selgin, em 'The Theory of Free Banking: Money Supply Under Competitive Note Issue' (1988)]
Acredito que essa solução de mercado deve ser explorada e
implementada no futuro. O surgimento de criptomoedas privadas pode forçar a
substituição do atual paradigma monetário e bancário. Mas, até lá, os poderes
do Estado sobre a criação e uso do dinheiro deverão ser submetidos ao maior
número possível de controles e restrições.
Quem sabe a pressão da ameaça de penas de prisão sobre os
políticos irresponsáveis que inflam a quantidade de dinheiro para custear seus
excessos contribua para que decidam finalmente libertar um mercado que nunca
deveria ter sido cativo.
Para encerrar , talvez seja bom recordar a reflexão de Friedrich Hayek:
Grande
parte da política contemporânea baseia-se na presunção de que os
governos têm o poder de criar e fazer com que as pessoas aceitem
qualquer quantidade de dinheiro adicional. Por essa razão, os
governantes defendem ferozmente seus direitos tradicionais, mas,
justamente por isso, é importante privá-los disso.
Ao
estudar a história do dinheiro, não podemos deixar de nos perguntar por
que as pessoas suportaram por mais de 2 mil anos um poder monopolista
exercido pelo Estado para explorar e enganar as pessoas. A única
explicação é que o mito (a necessidade da prerrogativa do Estado) se
enraizou tão firmemente que nem mesmo os estudiosos do tema pensaram em
questioná-lo (incluindo, por muito tempo, o autor desta obra). Contudo,
uma vez questionada a validade da doutrina estabelecida, rapidamente sua
base frágil torna-se evidente.
Por
isso, pelo menos enquanto o monopólio estatal sobre a criação de moeda
não for abandonado, seus poderes devem ser limitados não só em termos de
emissão – considerando o que exceder esses limites como um crime –, mas
também assegurando um mercado tão aberto quanto possível para a moeda e
para os bancos, bem como restrições que impeçam a autoridade monetária
de financiar o governo sob qualquer forma.
Alguns
dirão que já existem restrições e que funcionam razoavelmente bem em
alguns países, ainda que exista um monopólio estatal na matéria.
Contudo, a verdade é que essas limitações não têm sido eficazes nos
países com fraca institucionalidade e legalidade. Daí a proposta de
intensificá-las e reforçá-las por meio de legislação penal, uma vez que a
ação criminosa de emitir moeda sem justificativa e de colocá-la em
circulação com grave prejuízo para a sociedade não é diferente de outras
ações criminosas que podem ser cometidas por funcionários públicos e
que há séculos merecem punição no âmbito penal.
O
pior de todos os mundos é o monopólio estatal de pedaços de papel
impostos legalmente para uso próprio e pagamento de dívidas, emitidos e
postos a circular pelo governo sem quaisquer controles ou limites
efetivos. Entendo que, enquanto esses pedaços de papel chamados de
"dinheiro"continuarem a existir, a legislação deve reforçar os limites
do poder de emissão de moeda.
O texto publicado pela Gazeta do Povo integra o livro ‘Inflação como Delito', que acaba de ser lançado no Brasil pela LVM Editora.
Ricardo M. Rojas é advogado, doutor em História Econômica e juiz em Buenos Aires.
Atualmente dirige o Departamento de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da Universidade Francisco Marroquín.