Como se desconfia dos políticos, os juízes tomam para si o papel de dar substância aos valores da Constituição, assumindo o papel de fiscais da política
É líquido e certo. Hoje, qualquer decisão política de impacto acaba sendo judicializada. Suspende-se nomeação de ministro com base no princípio da moralidade, suspende-se indulto natalino invocando desvio de poder e cassam-se medidas provisórias alegando ausência de urgência. O fator “Judiciário” passa a ser considerado nos cálculos políticos. A mais recente manifestação dessa celeuma é a nomeação de Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho, atualmente obstada por decisão da ministra Cármen Lúcia, do STF. Em todos esses casos, vê-se a nítida interferência do Judiciário em decisões que competem, constitucionalmente, ao chefe do Poder Executivo.
Nem sempre foi assim. Antes, nos tribunais, havia nítido respeito ao espaço da deliberação política. A teoria jurídica sempre cuidou de delimitar que o controle do Judiciário sobre a atuação do Estado se dá pela legalidade, [principio abrigado no mesmo artigo da Constituição Federal que abriga o principio da moralidade.] e que espaços de autonomia do governo e da administração devem ser respeitados, pois, assim, se concretiza a separação dos poderes. Mas isso hoje em dia é démodé. O espírito do tempo reconhece aos juízes amplas capacidades de judicar com vistas a concretizar as promessas da Constituição. E a Constituição tem mais promessas que os bancos da Basílica de Aparecida. Nessa linha, é evidente que juízes passam a incorporar em suas decisões juízos políticos.
Um dos pressupostos da democracia é a existência de grupos que ficarão frustrados com a política
A Constituição é um texto amplo que se dirige à sociedade e aos poderes constituídos. Ela traz um misto de regras de organização, normas de conduta e também de objetivos a serem implementados (os princípios). Muito da linguagem constitucional se dirige a um estado ideal de coisas almejado pela sociedade brasileira. Muitas vezes, a Constituição elege fins sem tornar claros os meios pelos quais esses fins serão atingidos. Cabe aí a atuação concreta do Estado e da sociedade para implementar esses objetivos. A potência transformadora contida na Constituição precisa ser concretizada. E diversas visões de mundo, com distintos projetos, se articulam na complexa missão de tornar efetiva a Constituição. A articulação possível entre essas diversas formas de enxergar a realidade se faz pelo processo democrático.
A Constituição se abre à política. Ela pressupõe que pelo jogo democrático a sociedade elegerá os meios pelos quais pretende tornar efetivas as promessas da Constituição. E é natural que seja assim, pois a aplicação da normatividade constitucional dialoga com a realidade. Não se pode hipertrofiar o sentido jurídico da Constituição e pretender que ela seja um documento alheio à política. O que se passa, contudo, é que, na prática, as promessas da Constituição são em larga medida descumpridas. Nesse espaço de desencantamento constitucional brota a atuação política dos juízes. Como se desconfia dos políticos, os juízes tomam para si o papel de dar substância aos valores da Constituição, corrigindo os supostos desvios praticados. Assume-se, assim, um papel de fiscal da política, criando um nível novo de controle sobre a atuação do governo. A existência de normas abertas na Constituição serve de fundamento para tanto. Assim, decisões que tradicionalmente seriam aceitas como sendo “atos de governo” ou “atos discricionários” – e, portanto, escapariam à revisão judicial – hoje são revisitadas pelo Judiciário sem maiores embaraços.
A teoria jurídica tradicional enxergava com clareza a questão ao proscrever o controle judicial de atos de governo. Assim, preservava-se o espaço da decisão política, criado pela própria Constituição. Para tais questões, o controle se dá pelas vias políticas, pelo processo democrático. Tal modo de ver o problema exige maturidade e que se assuma que no processo político haverá descontentes, haverá frustrações. Isso é parte do jogo. Afinal, um dos pressupostos da democracia é a existência de grupos que ficarão frustrados com a política. Democracia implica descontentamento. Apenas os totalitarismos mais delirantes pretendem não haver conflitos dessa natureza e afirmam uma homogeneidade de interesses.
Percebe-se, portanto, que o Judiciário tem pouquíssima aptidão para lidar com essa complexidade. Os juízes decidem sobre recortes de realidade, contidos dentro de um processo. A velha frase de que “o que não está nos autos não está no mundo” dá conta disso. Portanto, ao pretenderem agir como fiscais da política, corrigindo o que veem como desvio, os juízes agem, necessariamente, sem ter a visão do todo. O risco de criar problemas que nem sequer foram imaginados é grande. Um outro ditado que vem a calhar diz “summum jus, summa injuria”.
O problema dessas visões que ignoram a realidade e creem nas virtudes mágicas do Direito é que elas não funcionam
Pior. A vulgarização do controle judicial sobre deliberações de governo acaba por incentivar a adoção de posturas passivas por parte dos governantes, que abdicam de agir para não se exporem aos controles do Judiciário, evitando assim desgastes de opinião pública. Não raro, sabedores de que suas decisões serão judicializadas, os que respondem pelo exercício do poder optam em nada fazer, criando vazios de deliberação. Todavia, um dos pressupostos do Executivo é exatamente ser um poder ativo, que dá contornos concretos à atuação do Estado. Estimular a paralisia do Executivo gera efeitos institucionais sérios.
O problema dessas visões que ignoram a política é que elas não funcionam. Elas ignoram a realidade e creem nas virtudes mágicas do Direito. Não há como pensar a atuação do Estado para além da política. Até há, mas isso é totalitarismo. Para o bem e para o mal, a formação de consensos em uma sociedade altamente complexa e desigual exige recurso à política. É ingênuo pensar que substituir a deliberação política resolverá nossos problemas. A intrusão desmedida do Judiciário no campo da política serve para infantilizar a política e tende a gerar problemas muito mais graves que aqueles que se pretendem combater. O respeito ao espaço da deliberação política deve ser respeitado, limitando-se a atuação do Judiciário ao controle de ilegalidades reais.
Gazeta do Povo - Bernardo S. Guimarães, advogado
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