Eliane Cantanhêde
Criado contra o ‘mundo unipolar’, o Brics passa a contar com um forte aliado dos EUA
A reaproximação do Brasil com a China e o entusiasmo do ministro Paulo
Guedes com acordos bilaterais de livre-comércio são bons passos para
corrigir dois erros da política externa, um bem recente, do início do
governo Bolsonaro, e outro lá atrás, do início da era PT. Esses passos
vêm em boa hora. A política externa e comercial do governo Lula, fortemente pautada pela
ideologia, impediu a discussão séria e pragmática da Área de Livre
Comércio das Américas, a natimorta Alca. Poderia ter sido bom ou ruim
aos interesses brasileiros, mas nunca saberemos. O próprio debate foi
bloqueado.
Além de inviabilizar a Alca, o Brasil foi decisivo para vetar acordos
bilaterais dos parceiros do Mercosul, ficando subentendido que não fazia
e não permitia que Uruguai, Paraguai e Argentina fizessem acordos de
livre-comércio diretamente com os Estados Unidos. Sem Alca e sem
bilaterais, a grande aposta foi na Rodada Doha da Organização Mundial do
Comércio (OMC), que nunca saiu. Ou seja, não sobrou nada.
Agora, depois do anúncio (por enquanto, um mero anúncio) do acordo
Mercosul-União Europeia, o governo Bolsonaro atira para todos os lados.
Já acenou com livre-comércio com os EUA, com a China e, depois das duas
maiores economias do planeta, sabe-se lá com quantos mais. A palavra de
ordem de Guedes é abertura.
De outro lado, a obsessão em desvincular o Brasil do Tio Sam
correspondeu a uma ilimitada aproximação com a China, que começava a
desbravar todos os continentes e ultrapassou os EUA como nosso principal
parceiro comercial. E com vantagem objetiva enorme: o Brasil é
superavitário nas relações com os chineses, ou seja, vendeu mais do que
comprou. Pois não é que Jair Bolsonaro, eleito, já passou a – também fortemente
pautado pela ideologia como Lula, mas às avessas – cutucar e provocar a
parceira e gigante China. Quanto mais se assumia pró-EUA, ou melhor,
pró-Trump, mais Bolsonaro desdenhava a China, que “queria comprar o
Brasil”.
Ao ser recebido com pompas em Pequim e agora no seu encontro com Xi
Jinping em Brasília, o presidente corrige seu próprio erro, recoloca as
relações nos eixos e, mesmo sendo a China uma ditadura de esquerda,
passa a agir com pragmatismo. O regime da China é um problema dos
chineses, as trombadas entre Washington e Pequim são problema dos dois e
o que nos diz respeito são os interesses brasileiros nas relações. E
isso parece estar, enfim, prevalecendo.
Quanto ao Brics, há uma mudança importante. Ao se unirem em 2006,
Brasil, Rússia, Índia e China (África do Sul veio depois) tinham uma
ambição econômica e uma estratégia política: se rebelar contra um “mundo
unipolar”, ou seja, contra a hegemonia acachapante dos EUA. Hoje,
porém, o B mudou de lado.
Quatro dos cinco países estão entre os dez maiores, mais ricos e
populosos do planeta, logo, capazes de reequilibrar o jogo mundial. O
Brasil, porém, abre uma fenda na unidade do grupo. Assim como rompeu sua
histórica postura independente para seguir os EUA em votos sobre Cuba e
sobre direitos humanos na ONU, o Brasil age para o Brics incomodar o
mínimo possível os EUA.
Assim, o Brics continua sendo forte e importante na economia mundial,
mas a unidade política e o futuro do grupo parecem incertos e não
sabidos, com China e Rússia de um lado, o Brasil sonhando com um
alinhamento automático com os EUA e a Índia e a África do Sul tentando
se equilibrar entre os parceiros. Só isso explica que a declaração final da cúpula de Brasília tenha se
ocupado de Síria, Coreia do Norte, Sudão e Iêmen, sem uma única linha
sobre Venezuela e Bolívia. Os negócios vão muito bem, mas os EUA pairam
sobre o Brics e as visões de mundo dos cinco são hoje claramente muito
diferentes.
Eliane Cantanhêde, colunista - O Estado de S. Paulo
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