O Globo
Igreja Universal passou a ser vista, em Angola, como potencial ameaça
Há uma guerra em curso, em Angola, entre o poder terreno e o poder
espiritual. Dias atrás, o governo angolano ordenou o fechamento de
diversos templos da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), sob as
acusações de evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Atrás do véu das
aparências, ocultam-se tensões políticas profundas, que envolvem o
Brasil, além dos múltiplos usos do discurso da “africanidade”.
A Universal construiu um império com cerca de 300 templos, 500 mil fiéis
e receitas anuais de US$ 80 milhões no país lusófono africano. No
passado recente, a influência dos bispos de Edir Macedo não assustava o
regime autoritário de José Eduardo dos Santos. A Iurd era aliada dos
governos petistas — que, por sua vez, operavam como parceiros econômicos
e diplomáticos do homem forte angolano, especialmente pela concessão de
financiamentos do BNDES a obras da Odebrecht.
Mas tudo mudou, nos dois lados do Atlântico. Do lado de lá, João
Lourenço tomou o lugar de José Eduardo dos Santos, deflagrando expurgos
no MPLA, o partido dirigente, eliminando os dirigentes ligados ao
antecessor. Do lado de cá, Bolsonaro substituiu o PT, rompendo a
parceria com Angola. A única coisa que não mudou foi o “governismo de
resultados” de Edir Macedo, que estabeleceu aliança com o presidente
brasileiro de extrema-direita. Daí, a Iurd passou a ser vista, em
Angola, como potencial ameaça ao sistema de poder de João Lourenço.
Regimes autoritários incomodam-se, sempre, com a presença de focos
alternativos de influência. A ofensiva contra a Iurd inscreve-se nessa
moldura genérica. Contudo as formas singulares que assume oferecem uma
pequena aula sobre a narrativa da genuína “africanidade”. Ano passado, sob a liderança do bispo Valente Bezerra Luiz, um vasto
grupo de pastores angolanos cindiu com o comando brasileiro da Iurd,
representado na África pelo bispo Honorilton Gonçalves. Os dissidentes
formaram um centro dirigente local, a “comissão reformada”, e lançaram
dois tipos de acusações contra a direção “universal”. De um lado,
emergiu o tema do dinheiro: transferência ilegal de recursos angolanos
ao Brasil. De outro, surgiu o da “africanidade”: o predomínio “racista”
dos pastores brasileiros sobre os de Angola.
A igreja “universal” viu-se diante da questão nacional, uma encruzilhada
que, ao longo da história, atormentou os partidos e movimentos
internacionais. A guerra esquentou no fim de junho, durante a quarentena
da Covid, quando os seguidores da “comissão reformada” invadiram
templos vazios em quatro províncias, hasteando bandeiras angolanas nos
púlpitos. Então, o grupo dissidente atacou residências de bispos
brasileiros, enquanto os dirigentes oficiais organizaram uma milícia
para recuperar os templos.
A cisão religiosa acompanha, como uma sombra, tanto a campanha de João
Lourenço contra a facção de seu antecessor quanto o distanciamento
geopolítico de Angola em relação ao Brasil. Valente e os seus ofereceram
ao governo angolano os pretextos legais para deflagrar a ofensiva
contra a Iurd. Repentinamente, as práticas financeiras habituais dos
bispos “universais” chamaram a atenção de um regime que, antes, fingia
nada saber.
O discurso da “africanidade” desempenha, mais uma vez, seu papel
legitimador. Desde as independências africanas, regimes autoritários o
utilizam para calar opositores, rotulados como “antiafricanos”,
“imperialistas” ou “neocolonalistas”. Em nome da “africanidade”, a Aids
foi ignorada por duas décadas na África do Sul e, sempre em nome dela,
diversos países africanos aplicam leis de origem colonial para reprimir
os LGBTs. Agora, em Angola, o argumento identitário funciona como
ferramenta para uma reforma religiosa: a estatização disfarçada do
neopentecostalismo.
“Todos nós fazíamos parte do sistema”, admitiu João Lourenço,
referindo-se à ditadura cleptocrática de José Eduardo dos Santos, na
qual ocupou o Ministério da Defesa. A Iurd fazia parte do “sistema”, que
a considerava suficientemente “africana” para participar da repartição
do butim. Hoje, o “sistema” mudou — e a Iurd tornou-se “estrangeira”.
Demétrio Magnoli, sociólogo - O Globo
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