O Estado de S.Paulo
A pandemia de covid-19 conteve o avanço de líderes nacionalistas populistas
Bolsonaro e Lula são duas faces da mesma moeda, ambos apostam que nas eleições de 2022 se repetirá o cara ou coroa. Um é o inimigo querido do outro e tentam conjuntamente, em polos opostos, tornar inviável qualquer outra possibilidade. Não deveria, portanto, surpreender que Lula faça seu reingresso na cena política com um discurso tosco e anacrônico, pois, no seu entender, é a melhor forma de enfrentar o mesmo modo de falar e atuar de seu contendor. O ódio de um pelo outro é o espelho de um amor recíproco. Se um falta, o outro se entristece, fica mesmo amuado.
[- Bolsonaro é a face da moeda dos bons costumes, do caráter, do direito à propriedade, da família, da moral, do patriotismo, da religião, dos valores cristãos, do progresso e se destaca pela sua popularidade;
- o multicondenado é a face da moeda que lidera o perda total = pt = o partido da corrupção, dos que condenam e conspiram para destruir a moral, a religião, os valores cristãos, a família, o direito à propriedade, a vergonha, os bos costumes, o patriotismo e que tem a traição como norte e o populismo vil e traiçoeiro como meio.]
Essa polarização, contudo, não é fruto somente de uma rija política, com
parâmetros próprios, mas expressa algo mais profundo agindo na própria
sociedade, com valores morais se esfacelando. Não há adesão coletiva a
princípios reconhecidos como comuns, mas questionamentos que atingem o
que entendemos como viver em comunidade. Se o PT procurou impor goela
abaixo valores tidos por politicamente corretos, ao arrepio do
sentimento profundo da sociedade, a reação bolsonarista mostrou que os
afetados souberam reagir, expondo os limites de tal tipo de imposição.
De lá para cá, a sociedade não conseguiu se recuperar, expondo fraturas à
luz do dia.
Há o que poderíamos denominar torpor moral, que está sendo manipulado
politicamente. Os óbitos da covid-19 já ultrapassam os 130 mil, uma
enormidade. No entanto, a vida segue como se este fosse um dado do
destino. Individualmente as pessoas se mostram afetadas, sofrem,
sobretudo, quando seus próximos são atingidos, mas isso não se manifesta
coletivamente, como quando o presidente da República continua a ser
aprovado por expressiva fatia da população, até mesmo na condução da
pandemia. A realidade desaparece na perversão moral.
[gostem ou não o de concreto é que a pandemia - pelo menos da fase inicial até agora - independe da vontade de qualquer ser humano, de qualquer recurso material.
- Está nas mãos de DEUS que tem o controle absoluto sobre TUDO e sobre TODOS = ONIPOTÊNCIA;
- para os ateus pode ser destino, pode ser científico, mas que no estágio atual não pode ser controlada com medidas imediatas = tudo que é feito tentando controlar a pandemia é na base do empirismo.
O presidente da República tem feito o que é possível e lhe permitem. De nada adianta, que a cada noite, à meia-luz, assuma uma expressão compungida e lamente os mortos = aliás tarefa que já é realizada pelos 'contadores de cadáveres'.]
As imagens hilárias do presidente mostrando a cloroquina como solução
para a covid-19 são constrangedoras e irresponsáveis, todavia isso não
se traduz num verdadeiro protesto, como se a sociedade estivesse
anestesiada. Atitudes irresponsáveis desafinando regras básicas de saúde
continuam, entretanto os mais anestesiados não cessam de declamar os
seus encantos nas redes sociais. É o coro digital da degradação. Se age
como o faz, é porque tem a anuência de um setor expressivo da sociedade
que nele se reconhece.
Ora, a ciência é um valor civilizatório duramente conquistado no
transcurso dos séculos. Sua emancipação dos dogmas da Igreja Católica
foi um doloroso e perigoso processo. Métodos experimentais foram
elaborados, a dúvida veio a fazer parte do conhecimento, os
questionamentos incessantes foram internalizados por todos, a certeza
devendo ser argumentada e compartilhada por uma comunidade de pessoas
afeitas e formadas nesse mesmo desenvolvimento. Note-se que erros fazem
normalmente parte desse processo, alguns chegam a caracterizar o método
científico como de tentativas e erros.
Ora, o que estamos presenciando no Brasil? Questionamentos vêm de
políticos que não tem a menor noção do que isso significa, como se a sua
opinião fosse equivalente a um argumento cientificamente elaborado. O caso da pastora evangélica e deputada federal Flordelis é, sob essa
ótica, exemplar, por expor uma apropriação da religião não apenas pelo
lado financeiro, mas também pelo aspecto moral. Segundo todos os
indícios apresentados, surge um caso de perversão propriamente dito.
Primeiro, há a imagem de uma pastora voltada para a adoção de crianças
(mais de 50), elogiada pela ministra Damares Alves, aparecendo na foto
como formando um casal ideal com outro pastor. Segundo, esse mesmo
pastor seria, além de marido, filho e ex-genro, numa relação de tipo
incestuoso que se propagaria para toda a sua “família”. Uma de suas
filhas teria sido sexualmente oferecida a outros “pastores”, expondo
valores morais em degradação constante. Terceiro, o assassinato do
marido, empreendido, segundo o noticiado, por filhos e uma neta de
Flordelis, sob as ordens da mãe. O desarranjo moral é total, resvalando
para a esfera do crime. E sob patrocínio político.
Meninas são estupradas e, em lugar da compaixão por elas, surgem
discussões inócuas sobre o aborto em tal contexto, como se não fossem
elas que devessem ser acolhidas, e sim os gritos insensatos dos
acusadores com a palavra “assassinos” salivando na boca. Até hoje não se
sabe quem vazou a informação sobre o hospital em que foi realizada a
interrupção da gravidez, os envolvidos nessa indignidade não foram ainda
responsabilizados e, nesse cenário, o ministro interino da Saúde baixou
uma portaria criando ainda mais obstáculos para que a interrupção da
gravidez se faça, tornando os médicos agentes policiais. [é DEVER DE TODOS, não apenas das autoridades, usar de todos os meios legais para impedir um assassinato = especialmente se a vítima é além de inocente, indefesa e um dos assassinos é sua própria mãe - induzida ou por livre e espontânea vontade.]
Uma portaria afronta de maneira clara a lei, sem que haja indignação
correspondente. Os irresponsáveis que nos governam apostam em que tudo
caia no esquecimento. A acomodação e a tolerância com fraturas morais desse tipo, com a
perversão, são as que tornam as sociedades acolhedoras para líderes
populistas, de direita e de esquerda, que tudo prometem, pouco entregam e
aprofundam o dilaceração do tecido social.
Denis Lerrer Rosenfield, filósofo e professor de filosofia - O Estado de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário