Quando entidades de juízes e promotores defendem seus privilégios, podem dizer que estão tendo uma postura moral?
Pena que
a discussão sobre a reforma da Previdência enverede para questões menores, referentes
às mais diversas formas de interesses particulares e partidários, quando está
em questão o interesse coletivo. Perde-se a noção de bem maior, de bem público,
como se os bens particulares devessem primar sobre o todo. São os privilégios
defendidos com tanto afinco pelas corporações do Estado, como se estes se
confundissem com o atendimento das demandas de seu estamento burocrático, seja
no Executivo, seja no Legislativo, seja no Judiciário, seja no Ministério
Público. São também os interesses de políticos e partidos que barganham suas
demandas para a aprovação da reforma, como se novamente o bem menor devesse ter
primazia sobre o maior.
A palavra
moralidade em suas diferentes modalidades, com destaque para as moralidades
administrativa e política, está recorrentemente em pauta. A sociedade luta por
moralidade, assim como dizem fazer juízes e promotores. Ocorre que cada setor
tem uma acepção específica de moralidade que, bem examinada, talvez não
resistisse ao teste de universalidade, de seu valor para todos os cidadãos.
Será que o atendimento de demandas das corporações pode ser qualificado como
moral, embora apresente-se sob o manto da moralidade pública? Não haveria uma
máscara que deveria ser aqui desvelada?
Quando
juízes e promotores, representados por suas instituições de classe, defendem
seus privilégios, podem eles dizer que estão tendo uma postura moral?
Um
exemplo atual, fora do escopo da reforma da Previdência, é bastante
ilustrativo. Juízes e promotores, em suas várias instâncias, defendem o
auxílio-moradia, superior a R$ 4.000 para cada indivíduo. Na origem, tal
benefício era perfeitamente justificável, pois destinava-se a juízes, juízas,
promotores e promotoras, que, para o exercício de suas funções, tinham se
deslocado para outros municípios.
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Necessitavam de moradia nesta sua etapa de transição. Nada havia que agredisse a moralidade. Ora, para o atendimento de demandas corporativas, esse benefício foi estendido para todos, independentemente de terem casa própria e de atuarem em seus próprios municípios. Como se não fosse suficiente, há casos de casais de juízes e promotores que ganham duas vezes o mesmo auxílio-moradia, vivendo sob o mesmo teto. Seus defensores vêm a público dizer que se trata de algo legal. Até pode ser. É, contudo, tal benefício moral? [nem sempre o legal é moral; ao contrário, muitas vezes a legalidade é usada para esconder a imoralidade.
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Necessitavam de moradia nesta sua etapa de transição. Nada havia que agredisse a moralidade. Ora, para o atendimento de demandas corporativas, esse benefício foi estendido para todos, independentemente de terem casa própria e de atuarem em seus próprios municípios. Como se não fosse suficiente, há casos de casais de juízes e promotores que ganham duas vezes o mesmo auxílio-moradia, vivendo sob o mesmo teto. Seus defensores vêm a público dizer que se trata de algo legal. Até pode ser. É, contudo, tal benefício moral? [nem sempre o legal é moral; ao contrário, muitas vezes a legalidade é usada para esconder a imoralidade.
Abaixo, uma sugestão de leitura para o ministro Fux - certamente ele conhece, pode ter esquecido:
“Em 1966 o presidente Castello Branco leu nos jornais que seu irmão, funcionário com cargo na Receita Federal, ganhara um carro Aero-Willys, em agradecimento dos colegas funcionários pela ajuda que dera na lei que organizava a carreira.
O presidente Castello Branco telefonou mandando que ele devolvesse o carro..
O irmão argumentou que se devolvesse ficaria desmoralizado em seu cargo.
O presidente Castelo Branco interrompeu-o dizendo:
– Meu irmão, afastado do cargo você já está. Estou decidindo agora se você vai preso ou não.”]
A
situação torna-se ainda mais esdrúxula na medida em que são os mesmos juízes e
promotores, beneficiários de tais privilégios, claramente imorais, que enchem a
boca para se declararem defensores da moralidade pública. Como assim? Pessoas cujos
atos e posicionamentos revelam privilégios manifestamente imorais podem
colocar-se na posição de representantes da ética? Não haveria flagrante
contradição?
A
situação torna-se ainda mais problemática por serem esses mesmos personagens,
destinatários de benefícios imorais, que criticam e menosprezam a classe
política por sua imoralidade. Há dois pesos e duas medidas. Os políticos não
poderiam ser imorais pela atividade que exercem, enquanto juízes e promotores
poderiam usufruir de mais um privilégio, o da imoralidade, apesar de se
exibirem como os representantes mesmos da moralidade.
O Estado
foi, nesta perspectiva, capturado pelo estamento burocrático, embora essa
captura se apresente sob a forma da moralidade e do bem público, apesar de seus
agentes não deixarem de atuar sob a forma da imoralidade no atendimento de seus
interesses particulares, seus privilégios, colocando o bem próprio acima do
público. No Brasil, as corporações estatais passaram a atuar não no sentido de
uma burocracia à vocação universal no sentido hegeliano do termo, mas ativa na
consecução de seus interesses particulares sob a forma de privilégios não
usufruídos pela maioria da população. O que vale para uns não valeria para
todos.
Gozam de
uma espécie de direito exclusivo, que só é “direito” em uma acepção muito
peculiar, pois carente de qualquer universalidade, ao qual os cidadãos normais
não têm nenhum acesso. “Direitos exclusivos” só impropriamente deveriam ser
ditos direitos. Cria-se, assim, uma situação completamente anômala, pois o
Estado que deveria estar a serviço da sociedade e dos cidadãos coloca-se a
serviço de suas corporações, como se o interesse delas coincidisse com o
interesse público. De fato, embora não de direito, o Estado é capturado por
suas corporações que lutam com afinco pela conservação e ampliação de seus
privilégios.
É como se
o Tesouro Público devesse a elas subordinar-se, com essas corporações nem mais
escondendo o seu interesse particular como um bem maior, embora façam campanhas
e criem justificativas como se estivessem a serviço da comunidade. Há mesmo
aqui uma certa perda de pudor. Logo, a
captura do Estado traduz-se não apenas pela injustiça, ao tornar desiguais os
membros das corporações em relação ao resto dos cidadãos, tornando uma quimera
o conceito de igualdade de oportunidades e de direitos que o Estado deveria
representar, como produz graves consequências do ponto de vista do equilíbrio
fiscal. Privilégios têm custos não apenas do ponto de vista moral e político,
mas também econômico. É o Estado aprisionado, que passa a agir em dissonância
com a sociedade que deveria servir e representar.
Denis
Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul
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