Instituto Pereira Passos identificou na cidade 2,3 mil famílias que vivem com quase nada
Pela
manhã, dois pães franceses alimentaram Deise, seis filhos e uma neta de 4 anos.
À tarde, sem opção, todos tiveram que se contentar em dividir um prato de angu.
À noite, era provável que não tivessem o que comer. Nesta quinta-feira, foi
mais um dia em que Deise dos Santos Barbosa, de 36 anos, fez o que pôde para
para minimizar a fome da família, recolhida no interior de uma casa minúscula
desprovida de saneamento básico na Rua da Torre, no sub-bairro Coqueiral, em
Santa Cruz, na Zona Oeste.
Analfabeta,
mãe de nove filhos — três deles vivem com parentes —, Deise cuida dos que estão
em casa com R$ 234 do Bolsa Família. No mais, recebe ainda um dinheiro incerto
da pensão paga pelo pai de dois de seus filhos, que vende balas em frente ao
Centro Municipal de Saúde Décio do Amaral Filho, no conjunto Urucânia, em
Paciência, um bairro vizinho. O esgoto
produzido na residência é despejado num valão que fica em frente, por onde
também escoam, a céu aberto, os dejetos de vizinhos. A água consumida vem de um
cano, de aproximadamente dois centímetros de diâmetro, instalado pela Cedae,
que, pelas condições insalubres, passa por valões. Para ter energia, ainda que
precária, Deise recorreu a ligações ilegais na rede elétrica da casa de uma
vizinha que, com frequência, não funcionam. Com os picos constantes, os poucos
alimentos disponíveis estragam na geladeira. É comum, em noites quentes, como a
de ontem, dormirem sem luz e sem ventilador.
O bairro
onde mora Deise é um dos redutos de famílias da capital identificadas pelo
Instituto Pereira Passos (IPP) como em situação de vulnerabilidade social
grave, como informou Flávia Oliveira em sua coluna no GLOBO.
Ao todo, o Rio tem 2.324 famílias que sobrevivem com muito pouco ou quase nada,
segundo o estudo. A maioria delas mora na Zona Oeste: Santa Cruz, Jacarepaguá
(Cidade de Deus), Paciência, Guaratiba, Campo Grande, Bangu, Paciência e
Realengo. Noventa por cento dessas famílias, diz o instituto, vivem em situação
de insegurança alimentar. Ou seja: no limiar da fome, como informou. — Uma
coisa curiosa é que no Rio a gente faz o recorte do que é favela e do que não é
favela. Mas, entre os 180 piores locais, nenhum está em favelas da Zona Sul. Ou
seja, a pobreza também é territorializada — afirma Mauro Osório, presidente do
IPP. — Esse levantamento mostra a desigualdade que a cidade do Rio de Janeiro
ainda tem.
SONHOS
DESPEDAÇADOS
A vida de
Deise é semelhante à de seus vizinhos. Dois deles são o casal Euler Jordan, de
24 anos, e Clarice Miranda de Oliveira, de 19 anos. Eles chegaram ao Rio, em
2004, de Contagem, Minas Gerais, de onde saíram fugindo da pobreza. Cauan, de 3
anos, é filho do casal e viajou na barriga da mãe para nascer no Rio. Hoje,
Clarice carrega mais um bebê na barriga, que deve nascer em dois meses. Para
sustentar a prole, Euler faz biscates em uma oficina mecânica.
A casa em
que vivem não tem saneamento. A energia é fruto de “gato” e, por isso, a
geladeira quase não funciona e não pode ser usada. A água aparece na torneira
somente das 22h às 8h. É quando Clarice enche galões para uso diário. Um galão
fica permanentemente aberto para afazeres domésticos e banho. Ontem, havia uma
linguiça numa panela sobre o fogão exposto ao sol. Era o que tinha para comer
até as 11h30m.
— Quando
tem muito serviço, consigo R$ 1 mil num mês. Quando está fraco, R$ 500. Como
vou sustentar uma família com isso? Viemos para melhorar, porque a situação em
Contagem era braba — lamentou Euler que, assim como a mulher, estudou até o 8º
ano do ensino fundamental.
Famílias
como a de Deise e de Euler são assistidas pelo programa Territórios Sociais do
IPP, que as ajuda a obter benefícios do governo, como Bolsa Família. Além de
90% de famílias identificadas estarem no limiar da fome, uma em cada quatro
tinha crianças em idade escolar longe das salas de aula. Ao todo, 53% não têm
acesso à água encanada e 69%, a esgoto tratado. Setenta e dois por cento das
famílias não tinham sequer filtro de água. Outro dado preocupante é que um
terço dos chefes de família não tem CPF, o que impede que estejam cadastrados
em programas assistenciais.
Segundo
Andrea Pulici, coordenadora do programa, o critério de vulnerabilidade social
usado pelo Instituto Pereira Passos é o mesmo usado pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O grupo de mais de duas mil famílias foi
identificado, com base nesse parâmetro, entre 20 mil domicílios dos 180 piores
setores censitários (zonas divididas de acordo com indicadores socioeconômicos)
na cidade. Todos eles têm Índice de Desenvolvimento Econômico (IDS) menor que
0,39, quando a média na cidade é de 0,6.
— O PNUD
leva em conta duas coisas: uma é a imobilidade, a dificuldade dessas famílias
terem acesso aos serviços, e a outra é a carência material — diz Andrea.
Uma
carência que beira à tragédia. Há 13 anos, Antônio Abade Correira, de 62 anos,
veio oo Maranhão para trabalhar na área de serviço social. Chegou a fazer um
curso no Hospital Municipal Souza Aguiar, mas não foi efetivado. Soropositivo,
ele hoje não consegue remédios e os pais que o ajudavam estão mortos. Sua luta,
agora, é para ter, ao menos, uma aposentadoria. Enquanto isso não acontece,
vive da doação de cestas básicas que obtém, na clínica da família, ou do que
arrecada em biscates. A casa onde mora com seu companheiro não tem energia.
Como os vizinhos, Antônio tem “gato”, que mal funciona. E, como não tem vaso
sanitário — um dos itens que caracterizam a situação de carência extrema das
famílias localizadas pelo IPP —, ele é obrigado a descartar os dejetos em um
saco plástico. À tarde, Antônio faz o descarte deles no caminhão de lixo da
Comlurb que passa pela Rua Colina dos Santos: — A Cedae
não trouxe canos até aqui. Há três dias estou sem tomar banho. Meus vizinhos é
que me ajudam.
Quando
não tem cesta básica, Antônio improvisa. Anteontem, por exemplo, seu namorado
chegou com seis salsichas para os dois.
— Tivemos
que fazer três salsichas para o almoço e três para o jantar. Não dá para
guardar. As moscas varejeiras não deixam — lamenta ele. O
arquiteto Pedro da Luz, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB),
acredita que a invisibilidade dessas famílias longe dos centros da cidade agrava
a situação que elas enfrentam:
—
Tradicionalmente todas as cidades brasileiras têm essa característica de
expulsar os mais pobres paras suas periferias mais distantes. E é aí que está a
extrema carência — observa, defendendo que essas pessoas se aproximem, por meio
de programas, dos centros.
O Globo
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