Que
história é essa? Quer dizer que no Brasil de hoje os tribunais mais
elevados do Poder Judiciário podem optar por aplicar ou não aplicar a
lei? Pelo que estão dizendo por aí, é isso mesmo. O Supremo Tribunal
Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior Eleitoral
têm diante de si, ao longo do futuro próximo, precisamente essa tarefa
prodigiosa. Vão ver se, no caso da condenação do ex-presidente Lula, a
lei que está em vigor vale ou não vale. É uma das marcas mais
triunfantes do nosso subdesenvolvimento.
Trata-se de um hábito comum
tanto aos mais civilizados cérebros da Escola Fernando Henrique de
Pensamento quanto aos bate-paus da CUT que fecham estradas para fazer
política: segundo essa maneira de ver a vida, aplicar a lei pode “criar
problema”. Dependendo da hora, do caso, do grão-duque que se enrolou com
a Justiça etc., a execução da lei, “assim ao pé da letra”, talvez não
seja o ideal. É possível que “a cura seja pior que a doença” — enfim,
por aí vai rolando esse tipo de filosofia rasteira à venda em loja de
contrabandista paraguaio, onde não existe nada de legal no estoque.
No
momento, a discussão levada aos nossos tribunais é algo realmente capaz
de encher de orgulho a atual “Corte Suprema” da Venezuela, ou os
conselheiros jurídicos do cacique Cunhambebe: defende-se, abertamente, a
ideia de que a autoridade pública “não deve” executar a sentença que
condenou a doze anos de prisão, por corrupção e lavagem de dinheiro, o
ex-presidente Lula. Mas por que não, Deus do céu? Sua sentença original
foi confirmada, e ampliada, por 3 a 0 no TRF4, o tribunal superior para o
qual o réu apelou. Não há mais fatos a discutir. As provas contra Lula
foram julgadas perfeitas, após seis meses e meio de estudo pelos três
desembargadores do TRF4. Seus cúmplices e corruptores confessaram os
crimes e receberam pesadas penas de prisão por isso. Todos os direitos
da defesa foram plenamente exercidos. Sobram ainda alguns recursos
formais, de decisão rápida — e, depois de resolvidos, a única coisa a
fazer é executar a sentença. Com Lula, porém, não está sendo assim.
Aplicar a lei, no caso, poderia “não fazer bem ao Brasil”, segundo
alegam o PT e o restante do “Complexo Lula”: juristas militantes,
políticos que têm medo de dizer que são contra Lula (o alto PSDB é uma
de suas tocas mais notórias), grandes comunicadores, o sistema
CUT-MST-UNE-MTST, artistas de televisão, intelectuais, o movimento LGBT,
e por aí vamos.
Resultado: cobra-se, agora, que os tribunais
façam ao ex-presidente a gentileza de “rever” a lei que permite a prisão
de réus condenados em segunda instância. É esse, justamente, o
dispositivo legal que levou o TRF4 a ordenar a execução imediata da
sentença, depois de serem cumpridas as disposições de praxe ainda
restantes. “Rever” por quê? É uma decisão absolutamente legal; na
verdade, o TRF não teria o direito de deixar tudo por isso mesmo, depois
de confirmar a condenação de Lula por 3 a 0. Cobra-se que seja
“revista”, também, a Lei da Ficha Limpa, que está aí desde 2010, foi
aprovada em cima de 1,6 milhão de assinaturas dos eleitores e proíbe a
candidatura de condenados como o ex-presidente. Nesse caso, temos algo
realmente fabuloso: o Partido dos Trabalhadores brasileiros, mais um
monte de gente de alta reputação, pedindo na prática uma Lei da Ficha
Suja. Nada pode funcionar desse jeito.
Todo mundo tem o direito, é
claro, de não gostar da sentença, ou de achar que ela foi injusta —
assim como há, igualzinho, o direito de gostar da decisão e achar que
foi justíssima. E daí? A Justiça não é um instituto de pesquisas; ela
não pode funcionar, em nenhum lugar onde há seres humanos, pela votação
do público, ou pelo que se “percebe” que é o “sentimento da maioria”,
etc. Se a sentença foi limpa, ela tem de ser executada, ponto-final — e a
sentença que condenou Lula é uma das mais limpas da história do
Judiciário brasileiro. Mas o nome “mais bem colocado nas pesquisas” não
estará na “lista de candidatos”, exclama o círculo do ex-presidente. E
daí? O que uma “pesquisa” tem a ver com a execução da lei? Haverá
“convulsão social”, ameaçam o PT e um ministro do próprio STF. Que
convulsão? Quais as provas disso? Não há nem haverá nenhuma convulsão. O
ex-presidente Alberto Fujimori, do Peru, ficou preso durante doze anos
e foi solto apenas em dezembro último. Jorge Videla, da Argentina,
condenado a prisão perpétua, morreu no cárcere. O que há de tão especial
com Lula? Presidente na prisão nunca acabou com país algum. [oportuno destacar que quando Lula estiver encarcerado não estará um presidente na prisão e sim um bandido, julgado e condenado em duas instâncias do Poder Judiciário. E lugar de bandido é na cadeia.]
J. R. Guzzo - Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2018, edição nº 2568
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