Vozes - Crônicas de um Estado laico
Intolerância
Casal que não gostou de música com teor religioso insultou e depois agrediu motorista de aplicativo em Minas Gerais.| Foto: Melonemond/Pixabay
Já falamos aqui que o laicismo não tem nada a ver com o Estado laico e se caracteriza por um movimento de expurgo da religião do espaço público, limitando-a à residência dos fiéis e a suas igrejas.
Por outro lado, o Estado laico se caracteriza pela separação entre o Estado e o fenômeno religioso, garantindo liberdade de atuação de cada um, em suas respectivas esferas de competência, permitindo que os fiéis vivam sua vida, no público e no privado, de acordo com as suas crenças.
A laicidade possui variações, desde a norte-americana, que se caracteriza pelo wall of separation between church and State, até a colaborativa, na qual este “muro” não existe, possibilitando a colaboração do Estado com a igreja e vice-versa, um reflexo da ideia tomista e escolástica de que a fé e a razão devem andar juntas.
No Estado laico as pessoas não são laicas; a maioria delas tem uma fé e a exerce em casa, na igreja e no espaço público, ou seja, onde quer que elas estejam. O Estado tem uma postura neutra de não interferir e nem se relacionar com a religião, como nos EUA.
Em outras situações, o Estado tem uma conduta cooperativa, de auxiliar a igreja, sobretudo a principal, como acontece na laicidade italiana por meio do Acordo de Villa Madama, com a Igreja Católica.
Temos, ainda, o Estado que é colaborativo com o fenômeno religioso e possui uma atitude benevolente e positiva com todas as fés, colaborando com elas em prol do interesse público – é o caso brasileiro, como diz o artigo 19, I da Constituição.
Em nenhum desses exemplos há uma conduta negativa do Estado para com a religião. Essa conduta é típica de países laicistas, que bebem da fonte francesa, onde religiosos perdiam suas cabeças e freiras eram estupradas por não concordarem com o regime da fraternidade francesa do século 18 e a imposição de sua religião positivista.
O Brasil, como já dito, não é laicista; basta olhar para sua bandeira e ver nela a Cruz de Cristo; temos os feriados religiosos, nomes de estados e cidades em homenagens a santos, referências religiosas na heráldica das maiores cidades brasileiras e por aí vai.
Entretanto, existe um movimento cada vez maior de pessoas laicistas no Brasil. Pensam elas: “Já que a história do Brasil, os símbolos nacionais, a Constituição, o ordenamento jurídico e tudo o mais têm uma atitude simpática com a religião, especialmente o cristianismo, e já que infelizmente existem liberdade religiosa e Estado laico colaborativo por aqui, serei eu o laicista; vamos censurar algum padre ou pastor, fechar alguma igreja, e processá-los todos nem sei pelo quê!”
No Estado laico as pessoas não são laicas; a maioria delas tem uma fé e a exerce em casa, na igreja e no espaço público, ou seja, onde quer que elas estejam
Esse pensamento se popularizou não só entre indivíduos, mas também entre grupos ativistas. O caso mais recente é de uma motorista de aplicativo de caronas, de 27 anos, que foi vítima de agressão verbal e física durante uma viagem entre um bairro de Belo Horizonte e Contagem (MG), de acordo com informações divulgadas pelo portal R7.
Os agressores, um jovem de 25 anos e uma mulher de 22 anos, teriam iniciado o ataque após questionar a religião da motorista e proferir xingamentos devido à música que tocava no rádio do veículo. A motorista solicitou que o casal desembarcasse do carro em frente à Unidade de Pronto-Atendimento JK, na cidade de Contagem, mas os passageiros, em vez de seguir a solicitação da motorista, teriam iniciado a agressão física.
Um espectador tentou intervir para proteger a vítima e impedir a continuação da agressão.
A Guarda Civil Municipal de Contagem, que estava posicionada nas proximidades da unidade de saúde, foi alertada pelos gritos de socorro e testemunhou o crime, corroborando a versão apresentada pela motorista.
Eis uma aplicação do pensamento laicista francês: “você não pode escutar essas músicas religiosas em um transporte público, mesmo que o carro seja seu; e, já que você insiste, vou descer-lhe a porrada”.
Uma reflexão sobre o caso
A agressão, em qualquer uma de suas formas, seja ela física, psicológica ou verbal, é algo profundamente lamentável e merece ser condenada veementemente.
O caso envolvendo a motorista de aplicativo em Minas Gerais, insultada devido à música religiosa que estava ouvindo e, depois, agredida fisicamente, lança um alerta preocupante sobre os crescentes casos de intolerância na sociedade. Intolerância que se manifesta pelo pensamento segundo o qual, “já que o Estado tem uma postura positiva com a religião, vamos nós persegui-la”.
A intolerância, antes restrita a xingamentos e manifestações nas redes sociais, parece estar ganhando espaço na forma de violência física no cotidiano das pessoas.
O fato de um casal de passageiros ter insultado a motorista por sua escolha musical é inaceitável, ainda mais quando a música está ligada à crença de quem a está ouvindo e que, ainda por cima, é o proprietário do carro.
O desdobramento dessa situação, que culminou na necessidade de a motorista pedir que os agressores deixassem o veículo, seguido de agressão física, torna o caso ainda mais grave.
Quando a intolerância atinge o ponto de agressão física devido a diferenças religiosas ou à escolha de uma religião específica, temos um claro ataque aos valores democráticos e à coexistência pacífica na sociedade
Este incidente ressalta a importância da liberdade religiosa e da tolerância em uma sociedade pluralista. A liberdade religiosa é um princípio fundamental em sociedades democráticas, que garante a todos o direito de praticarem sua religião ou crença, no público ou no privado; não se limita apenas à liberdade de culto, mas também engloba a liberdade de expressão e manifestação de suas crenças.
Portanto, é crucial que todos os cidadãos compreendam e respeitem a diversidade religiosa e cultural que enriquece nossas comunidades, podendo evidentemente discordar com relação a dogmas, práticas e liturgias, mas sem suprimir o direito do outro, muito menos agredi-lo. A disseminação do que é conhecido como “marxismo cultural”, que expande a luta de classes a diversas outras formas de divisão, está começando a mostrar seus efeitos mais alarmantes, minando a coesão social e prejudicando a convivência harmoniosa entre os indivíduos, fragmentando totalmente a sociedade.
Expressamos nossa solidariedade à motorista de aplicativo e desejamos sua recuperação emocional e física. Esperamos que as medidas legais adequadas sejam tomadas para responsabilizar civil e criminalmente os agressores, de acordo com as evidências apresentadas no devido processo legal. Mais do que nunca, é essencial que a sociedade reafirme seu compromisso com a liberdade religiosa, garantindo que todos possam viver em paz, independentemente de suas crenças.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos
Thiago Rafael Vieira, colunista - Gazeta do Povo - Crônicas de um Estado laico