O Estado de S.Paulo
O governo está entre a alegria do momento e o pesadelo de amanhã
A dupla crise de saúde pública e econômica colocou Jair Bolsonaro diante
de opções aparentemente irreconciliáveis.
Ele ainda não encontrou o
caminho para prosseguir naquilo que as circunstâncias o obrigam:
a)
continuar prestando ajuda emergencial a milhões de necessitados, um
reconhecido imperativo político e humanitário; e,
b) investir em obras
públicas para retomada da economia, que precisa de estímulos para
crescimento.
Note-se que não é uma escolha entre um ou outro. Não há recursos para um
nem para outro dentro dos limites impostos pela crise fiscal.
Parece cansativa a repetição, mas é necessária: a questão fiscal domina
totalmente nossa política. E, como assinalou o economista Marcos Lisboa,
presidente do Insper, o problema central não é a existência do teto de
gastos, mas o crescimento dos gastos obrigatórios. Para agravar, há prazos curtos a serem respeitados (MPs que caducam, fim
do período emergencial, aprovação do Orçamento, por exemplo) e números
recentes compilados pela FGV escancaram a urgência imposta pela
realidade social e suas temidas consequências políticas. São números de
enorme crueldade, acentuada pela pandemia (aliás, os mesmos números
indicam que a medida mais eficiente de confinamento foi pagar para as
pessoas não terem de sair de casa).
Graças ao auxílio emergencial não se registrava desde 1986, época do
Plano Cruzado (congelamento de preços), movimento tão acentuado de
pessoas saindo de uma faixa socioeconômica (a dos paupérrimos) e indo
para um degrau acima. O economista Marcelo Neri, que compilou os dados,
foi, porém, contundente: “Acaba o auxílio, esses milhões descem de volta
para onde estavam”.
É um sinal eloquente da nossa pobreza quando R$ 600 dados de mão beijada
fazem tanta diferença nas estatísticas sobre faixas de renda. Ocorre
que a manutenção desse auxílio não é possível com a situação fiscal
presente. Bolsonaro livrou-se de um dilema inicial ao suspender a ideia
de Paulo Guedes (correta em princípio) de remanejar recursos de
programas sociais menos eficientes e dirigi-los a um programa de renda
básica batizado como se quiser. “Seria tirar de pobres para dar a
paupérrimos”, reconheceu o presidente, que, nesse ponto, demonstrou
percepção política mais aguçada que a de seu principal ministro até
aqui.
Livrou-se de um dilema, mas não do problema. A montagem dos programas de
assistência na base da ampliação da renda além do Bolsa Família, a cada
dia mais urgentes, depende do progresso em outras frentes políticas,
como a negociação de reformas de altíssima complexidade. E que estão
ligadas umas às outras: a tributária depende do Pacto Federativo que
está sendo ligado à PEC emergencial, e tudo também depende de uma
reforma do Estado via reforma administrativa, por exemplo. Sem criar
impostos, sem furar o teto.
[é um problema complexo imposto pela pandemia, que o presidente Bolsonaro tem que resolver, precisa solucionar, mesmo não existindo nenhuma solução que não adie o problema.
A pandemia além de milhares de mortes, muita corrupção, adiou o sonho de todo brasileiro ter condições de dizer o velho jargão: 'estou melhor do que ontem e pior do que amanhã'.]
O maior perigo tem sido vocalizado também por forças políticas que
apoiam o governo no Congresso e têm bom trânsito com a equipe de
economia. O senador Marcio Bittar (MDB-AC), por exemplo, relator da PEC
do Pacto Federativo, anda preocupado em se “tentar dar uma alegria no
momento criando, em troca, um pesadelo por muitos e muitos anos”,
declarou. Ou seja, continuar ajudando os 10 milhões de invisíveis às
custas de qualquer responsabilidade fiscal.
É nesse contexto que ganha um significado muito maior a expressão
“articulação política”. Pois não se trata de “apenas” conseguir votos
para aprovação de matérias ou a manutenção de vetos (como ocorrido na
Câmara recentemente). Talvez a palavra em espanhol “concertación”
expresse melhor o que significa “articulação política” em época de
opções irreconciliáveis: é um esforço político coletivo, coordenado,
dirigido e com um foco preciso.
É óbvio que esse esforço no momento é muito acanhado. E sofre a
concorrência de um comportamento típico de décadas de decisões políticas
no Brasil: livrar-se de um pesadelo do momento jogando-o para o futuro.
William Waack, colunista - O Estado de S. Paulo
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