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quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Os fura-teto - Carlos Alberto Sardenberg

Coluna publicada em O Globo - Economia 20 de agosto de 2020

Estão tentando fazer com o teto de gastos do governo federal a mesma coisa que fizeram com o teto salarial do funcionalismo público. Pela lei, nenhum funcionário poderia ganhar mais que R$ 39,2 mil brutos, o salário de ministro do Supremo Tribunal Federal, aliás reajustado recentemente, em 2019. Mas muitos servidores ganham mais, muito mais. Gambiarras diversas, inscritas na lei, em regulamentos ou interpretações do judiciário, fizeram com que várias “verbas” fossem classificadas como extratexto. Há anos que se faz assim.

Antes, o salário-teto era o do presidente da República, hoje de R$ 30,9 mil. Isso valia também para os ministros do STF, mas estes deram um jeito de ultrapassar o do presidente e, assim, o teto subiu. E todas as demais carreiras foram em busca do novo patamar.
Mas o golpe mais eficiente, para eles, claro, e não para o contribuinte que paga os impostos, é a invenção do extratexto. Isso permite acumular salário com o que chamam de “vantagens pessoais”, como determinados auxílios (educação, saúde, etc.) e aposentadorias.

Pelo espírito da regra – ou seja, se a gente entender o óbvio, que teto é teto – tudo o que passasse dos R$ 39,2 mil simplesmente deveria ser abatido. Mas não é. O próprio Bolsonaro tem direito ao salário de presidente, mais duas aposentadorias, uma da Câmara dos Deputados, outra do Exército, como capitão reformado. [se  o funcionário  fez jus as duas aposentadorias por tempo de serviço, tempo de contribuição e na forma da lei - vigente na época da aposentadoria - e, posteriormente, passou a exercer uma função de forma legal que lhe vale novo salário, nada mais justo que o teto não seja aplicado sobre a soma total dos rendimentos.
Mas sendo a aposentadoria ou aposentadorias decorrentes de invalidez ou qualquer outro motivo que impedisse o beneficiário de trabalhar, nada mais justo que voltando a trabalhar (em outro emprego, cessando a invalidez) as aposentadorias recebidas fossem suspensas.
A situação do presidente Bolsonaro ocorre dentro da estrita legalidade, afirmamos sem receio de erro, pela simples razão de houvesse a mais remota possibilidade de ilegalidade, os inimigos do presidente Bolsonaro = inimigos do Brasil, da democracia e da liberdade = já teriam recorrido à Justiça para cancelar.
Uma das vantagens que torno o capitão o herói de todos os brasileiros é exatamente ser público e notório que qualquer ilegalidade que envolva o presidente Bolsonaro, será de pronto combatida.
Não combatem,  prova incontestável que nada existe de ilegal.]

É quase um padrão por todo o serviço público, a acumulação de um salário da ativa com alguma ou algumas pensões. Isso, em si, já está errado. Ou o sujeito está trabalhando ou parado. Se a pessoa volta ao serviço ativo, deveria perder a aposentadoria, como acontece em muitos países.  De tempos em tempos, o Congresso aprova alguma lei dizendo que teto é teto, sem penduricalhos ou puxadinhos, como classificou uma vez a ministra Cármen Lúcia, do STF. É só aprovar a lei que começam as ações judiciais para recuperar o extratexto.

Agora mesmo, está na gaveta do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, um projeto de lei dizendo de novo que o teto é R$ 39,2 mil – e acabou. Está lá. Mas aparentemente Maia ainda não encontrou um momento, digamos, oportuno, para colocá-lo em votação. Talvez tenha medo da repercussão negativa que haveria caso o projeto fosse esmagadoramente derrotado. E, assim, não apenas o pessoal consegue avacalhar o teto salarial, como tenta agora avacalhar a lei de 2016, pela qual a despesa do governo federal de um ano deve ser igual à do ano anterior mais a inflação.  Dizem que isso vai contrair gastos com saúde e educação, mas na verdade a preocupação é com a possibilidade de não se permitir aumentos salariais para o funcionalismo. [os funcionários públicos, - servidores públicos que não são MEMBROS de Poder ou do MP - não recebem aumento faz algum tempo, bem antes da pandemia.]

O economista Alexandre Schwartsman publicou artigo no site Infomoney e no seu próprio blog (“O teto e a raça: o que dizem os números) mostrando que os gastos sociais, generalizando, aumentaram, sim, depois da lei do teto. Por exemplo: despesas com a função Saúde saltaram de R$ 143,3 bilhões em 2016 para R$ 153,3 bilhões em 2019, em valores constantes. Mais interessante ainda: a função “Proteção Social” (previdência e assistência social) foi de R$ 871,4 bilhões para R$ 938,2 bilhões, no mesmo período.
Schwartsman mostra ainda que o gasto com “remuneração de empregados” saltou de R$ 280,5 bilhões em 2016 para R$ 305,8 bilhões no ano passado, também em valores constantes.

Finalmente, os dados da PNAD (IBGE) mostram que o rendimento médio do trabalhador brasileiro no setor privado é de R$ 2 mil/mês; dos estatutários, R$ 4,3 mil.
[um dos problemas que puxa o Brasil para trás é a mania de distribuição de renda, reduzindo salários = distribuição de pobreza.
Em passado não muito distante a regra era: 'esperar o bolo da riqueza crescer, para distribuir' = ainda hoje é esperado.
Agora se o setor público ganha mais que o privado, sempre tentam reduzir o salário do servidor público para o patamar do empregado privado. Se ambos ganham mal - a suposta vantagem do servidor público é quando seu rendimento é comparado com o do empregado privado, cujo salário é pior  - reduzir do que ganha um pouco mais é distribuir miséria e não igualdade.]
Esse dado permite duas observações. Uma, óbvia, que o servidor ganha mais de duas vezes do que as demais categorias. Segunda, e talvez mais importante, registra a imensa desigualdade dentro do funcionalismo. Se o teto é teto R$ 39,2 mil mais os extras e a média é de R$ 4,3 mil, é sinal de que muitos funcionários ganham mal. E são em geral os trabalhadores mais próximos do público e mais longe de Brasília.
Mas toda vez que surge o debate, sindicatos do funcionalismo argumentam com os salários mais baixos. Seria importante que esses funcionários mal remunerados percebessem que poderiam ganhar mais se os de cima ganhassem menos. [percebem, mas os de cima são os de cima que quando interpretam algum questionamento contra alguém que ganha muito, tem presente que a decisão de agora pode ser estendida a ele em futuro não muito distante.]

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista 




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