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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Decisão que afastou Witzel parece ter algo fora do lugar - Folha de S. Paulo

Eloísa Machado de Almeida


Eleito em 2018, governador foi afastado do cargo por 180 dias em decisão de ministro do STJ

Ainda que o governador Wilson Witzel já tenha sido responsabilizado pelo Supremo Tribunal Federal pela condução de sua necropolítica durante a pandemia, com ordem para suspensão de operações policiais nas comunidades cariocas, que tenha contra si uma maioria sólida para um processo de impeachment e pululem indícios de corrupção com verbas de saúde, a decisão de seu afastamento preventivo como governador gerou desconforto. [comentário e pergunta que não quer calar:
Desde a posse do presidente Bolsonaro ou mesmo a partir de sua eleição em segundo turno, diversos políticos e mesmo instituições,  inconformados com a eleição do capitão, começaram a plantar a ideia de que a democracia no Brasil corre risco.
Já que cada um acredita no quer quer e lhe convém, os inimigos do presidente Bolsonaro (sejam os inimigos do Brasil, a turma do mecanismo, inimigos da liberdade e da democracia) conseguiram razoável êxito em consolidar a gigantes 'fake news' - que a democracia corre risco no Brasil - e toda decisão que de alguma forma seja contra o presidente Bolsonaro, seus apoiadores, tem apoio de grande parte da imprensa, sendo bem recepcionada, apoiada e mesmo validada pelo Judiciário e Legislativo.
Em comum, quase sempre são monocráticas e provisórias.
A tendencia é se consolidarem.
Agora vamos a pergunta: decisão monocrática já determinou a condução, se necessária, de oficiais generais, 'debaixo de vara'.
E se um ministro do Supremo em decisão monocrática determinar a suspensão do mandato do presidente da República e sua condução debaixo de vara?
Quem vai se opor?
Cada 'excesso' do Poder Judiciário é aceito por pura inércia.]

A suspensão do exercício das funções públicas de Witzel por uma decisão monocrática de um ministro do Superior Tribunal de Justiça recolocou o tema sobre as imunidades constitucionais — e a forma como os tribunais a interpretam — no centro do debate jurídico e político do país.  A Constituição estabelece uma série de imunidades para detentores de cargos eletivos do Executivo e do Legislativo. São imunidades que procuram proteger a função relevante e representativa, impondo sobretudo limites mais severos à persecução criminal. 

Parlamentares são invioláveis por suas palavras e votos, possuem foro por prerrogativa de função e não podem ser presos senão em flagrante de crime inafiançável, sendo tanto a prisão como o próprio processo criminal sujeitos à suspensão pelas Casas legislativas. Para o cargo eletivo do Executivo, a Constituição é ainda mais exigente: a suspensão de mandato pela prática de crime comum se dá a partir de um duplo controle: a autorização prévia do Legislativo e o recebimento da denúncia pelo Judiciário.

As imunidades compõem uma série de controles judiciais e políticos que garantem não só estabilidade para o exercício da função como também reforçam a lógica da separação de Poderes. Mas não se trata apenas disso. A preservação do vínculo de representatividade entre eleitor e eleito é mais uma razão, talvez a maior delas, para a existência de imunidades a detentores de cargos eletivos. A função é especialmente importante e protegida porque decorre de investidura vinda de voto.

As Constituições estaduais, na sua maior parte, reproduziram a mesma lógica da Constituição Federal: governadores só poderiam ser afastados do cargo com autorização prévia do Legislativo, seja no recebimento de denúncia por crime comum ou na hipótese de crime de responsabilidade.
Ainda que as regras constitucionais sejam consideravelmente claras, a interpretação dos tribunais tem sido vacilante quanto à sua extensão. Nos últimos anos, foi ampliada a interpretação dada a flagrante de crime inafiançável para permitir a prisão de senador. Trata-se do caso Delcídio do Amaral, preso por decisão monocrática de Teori Zavascki, depois referendada em plenário.

Também recentemente, o Supremo passou por duas versões distintas de uma mesma questão jurídica: a possibilidade de afastamento da função pública como cautelar alternativa à prisão de parlamentares. No caso Eduardo Cunha, a decisão monocrática também de Teori Zavascki, referendada depois em plenário, que suspendeu o exercício de suas funções, não passou por crivo da Câmara dos Deputados; logo depois, o Supremo decidiu que a decisão suspendendo mandato de Aécio Neves deveria ser analisada pelo Senado (que derrubou a decisão de afastamento).

Logo depois, o Supremo decidiu restringir a interpretação sobre foro por prerrogativa de função: crimes cometidos antes da diplomação e sem relação com mandato seriam investigados pelas instâncias ordinárias. Desde então, a decisão tem suscitado questões inéditas. 
- Juízes de primeira instância poderão determinar a prisão cautelar ou afastamento de deputados e senadores de suas funções? 
- Poderão determinar busca em gabinetes parlamentares?

Recentemente, investigações contra José Serra (PSDB-SP) foram suspensas monocraticamente pelo presidente do STF, Dias Toffoli, pois as buscas determinadas por juízes de primeira instância poderiam afetar documentos relacionados ao atual mandato de senador. Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), [atual senador da República] investigado no suposto esquema das “rachadinhas” antes de se tornar senador,teve foro garantido.

O Supremo também tem se debruçado sobre as imunidades de governadores.  Para o tribunal, o regime de responsabilidade criminal de governadores deve ser distinto do conferido a presidente da República. Por isso, o Legislativo estadual não pode ser uma etapa prévia para a análise da denúncia criminal, e governadores podem ser presos, inclusive por atos estranhos ao mandato e no curso do mesmo. Também para o Supremo, se alguém com cargo eletivo pode ser preso, pode receber uma cautelar diversa da prisão, como o afastamento da função pública.

A interpretação restritiva significou o avanço do Judiciário sobre as imunidades parlamentares e foi amparada — e isso é inegável— por um sistema político agindo de forma nada republicana, não raras vezes usando as imunidades como anteparo para a prática criminosa. Traem a lei e seus representantes. Mas a substituição de maus políticos através de decisões judiciais instáveis, sem colegialidade e sujeitas a maior politização, tampouco é um bom resultado.

É nessa trajetória cheia de idas e vindas que se insere o caso de Wilson Witzel: uma decisão monocrática provisória de um ministro do Superior Tribunal de Justiça suspendeu o exercício das funções de um governador eleito. Mesmo não sendo uma decisão inédita, estando repleta de indícios de crimes de corrupção (frise-se, afetando as políticas de saúde durante uma pandemia) e referenciada por uma série de julgamentos recentes, algo parece fora de lugar.

Não à toa. Afinal, o sofisticado desenho constitucional de responsabilização por crimes comuns, no qual a suspensão do mandato só ocorre com chancela dos pares eleitos e, sua perda, após trânsito em julgado da sentença penal condenatória com avaliação de um tribunal colegiado, foi substituído pela decisão cautelar de um único juiz
É como se foro por prerrogativa de função, que se caracteriza pela colegialidade, fosse extinto na marra: um juiz sozinho pode afastar um governador. 
A cautelar de afastamento de função pública é uma alternativa à prisão. Porém aplicada a cargos eletivos parece esquecer um componente essencial dessa relação: a proteção que a Constituição dá ao voto.

Eloísa Machado de Almeida, FGV Direito SP - Folha de S. Paulo - UOL


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