O Globo
Julgar suspeição de Moro sem 2ª Turma completa seria uma afronta [Analista político comumente analisa e opina, mas neste caso podemos considerar, sem risco de errar, que a afronta ocorrerá.
Exceto se o decano do STF pedir aposentadoria imediata - o que ensejará outro ministro assumir seu lugar (e o presidente Bolsonaro iniciar a rotina de nomeações de ministros para o STF.]
Lembrei-me, então, de uma palestra que o escritor Deonísio da Silva fez num ciclo sobre Guimarães Rosa da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2018, sob o título “O julgamento de Zé Bebelo e a Lava-Jato”, sobre o romance “Grande Sertão, Veredas”. Deonísio Silva compara Lula a Zé Bebelo e Moro a Joca Ramiro: “Zé Bebelo está quase derrotado, comanda nove homens e quando seu bando conta com apenas três, Riobaldo, para salvar a vida do ex-chefe e ex-aluno, grita “Joca Ramiro quer este homem vivo”.
Sem saída, Zé Bebelo descarrega a arma no chão antes de ser preso e, quando os inimigos tiram-lhe o punhal, ele diz: “Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo julgamento correto legal”. Diante de Joca Ramiro imponente, montado em cavalo branco, Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, requer: “Dê respeito, sou seu igual”. Ouve de Joca Ramiro: “se acalme, o senhor está preso”. É quando toda a jagunçada vai para a Fazenda Sempre-Verde. Zé Bebelo, de mãos amarradas, é conduzido em cima de um cavalo preto, na rabeira da tropa. Relata Deonísio Silva: “Réu em inusitado julgamento no pátio da Fazenda Sempre-Verde, o jagunço letrado Zé Bebelo, salvo por Riobaldo, seu ex-professor, conduz o próprio julgamento. No insólito tribunal, os juízes são outros cangaceiros, liderados pelo grande chefe Joca Ramiro, todos sob o olhar misterioso de um jagunço que é jagunça: Reinaldo/ Diadorim.
A Lava a Jato pode inspirar outra leitura deste curioso episódio de Grande Sertão: Veredas, em que o sertão é assim definido: “Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” E mais: “onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.” “O Brasil também já foi assim. E agora chegamos à encruzilhada onde tribunais superiores estão decidindo se continuará assim ou se mudará. Fazendo as vezes de um Sérgio Moro do sertão, o jagunço Joca Ramiro, conhecido por sua lealdade e senso de justiça por todos os cangaceiros, tem diante de si um réu audacioso, solerte e a seu modo leal e sagaz.
“Zé Bebelo é um réu que dirige o julgamento, fixa limites de suas penas e traça as condições para cumpri-la: receber montaria, escolta, água e comida na viagem para Goiás, onde promete fixar-se, deixando de combater os ex-companheiros de luta, como vinha fazendo até ali. Mas se consegue obrar todos estes feitos é porque Joca Ramiro é um juiz ainda mais sagaz do que o réu.” E sobrevém o desfecho: Zé Bebelo é libertado sob condições que o próprio réu impõe.” Julgar o habeas-corpus de Lula sem a Segunda Turma completa, como pretende o advogado Cristiano Zanin, seria uma afronta. O mais provável é que o ministro Gilmar Mendes espere a volta dos trabalhos presenciais, no próximo ano, quando o STF já terá o novo componente da Corte.
A composição final das Turmas pode sofrer alterações, pois o novo ministro, que deveria assumir o lugar de Celso de Mello, pode ser deslocado para a Primeira Turma para não ter que enfrentar um julgamento tão difícil. O atual presidente do STF, ministro Dias Toffoli, deve ir para a Primeira Turma no lugar de Luis Fux, que assume a presidência em setembro. Haverá uma disputa interna para saber quem será o quinto membro da Segunda Turma.
Merval Pereira, jornalista - jornal O Globo
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