O Estado de S.Paulo
O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade
Aos poucos, sem muito critério, as coisas estão voltando ao que era
vivido como normalidade. Embora haja menos agitação, as pessoas passaram
a circular com intensidade. Há um cansaço solto no ar. São superficiais as expectativas de que entraremos num “novo normal”,
expressão desprovida de significado claro. Não é de repente que um modo
de vida se altera. A rigor, não há um antes e um depois. A vida é
continuidade, processo permanente de acúmulo e adaptação. Impossível ir
de um padrão a outro só pela força da vontade. A pandemia, no entanto,
já deixou suas pegadas e estamos sendo impelidos a adotar novas práticas
e ideias. O convite é para que incorporemos condutas sustentáveis:
menos agressivas com a natureza, a cultura, a sociedade, mais generosas,
humildes e voltadas para o bem-estar comum.
Precisamos aumentar nossa capacidade de pensar em termos de
complexidade, como gosta de dizer Edgar Morin. Ver o local e o global, o
particular e o universal, a cultura e a natureza, partes de um único
todo. O abandono da quarentena se dá sem que a covid-19 tenha arrefecido. [ATENÇÃO: não HOUVE QUARENTENA - O STF decidiu que governadores e prefeitos cuidariam do assunto e o resultado foi, entre os vários negativos obtidos, uma quarentena meia-boca.] Na
maioria dos Estados a doença se estabilizou, mas a média nacional de
óbitos segue em patamar elevado. Hoje são 4 milhões de infectados, 115
mil mortes, números que continuam a crescer. É uma desgraça, para a qual
o governo federal contribuiu e diante da qual a população não soube e
não teve como reagir.
A briga pela quarentena foi permanente. Fiquem em casa, evitem
aglomerações, pediram médicos, gestores, profissionais da saúde. O que
houve de distanciamento social ajudou a reduzir o impacto do vírus,
especialmente nas grandes cidades. A vida digital avançou, o
teletrabalho mostrou ser factível e tão produtivo quanto o presencial.[até 'flanelinhas' passaram a dar um 'brilho' virtual - o que atrapalha é que alimento virtual não funciona, ao contrário, aumenta a fome.] Perdeu-se o receio de comprar à distância. Mas ninguém se conformou em
deixar de ver filhos, netos, amigos. Têm sido meses angustiantes.
Há uma dura estrada pela frente. O País não encontrou um eixo para
combater o vírus e retomar a “normalidade”. Não sabe como voltar a
crescer, reativar a economia, reduzir o desemprego e a desigualdade. Os
sistemas nacionais – educação, saúde, infraestrutura, cultura,
saneamento, ciência e tecnologia – estão sem coordenação e tenderão a
ficar também sem recursos, pessoas e verbas, risco que aumenta quando se
vê o governo brasileiro falar em diminuir o orçamento da Educação e da
Saúde em benefício da Defesa. [o que fortalece a ideia de diminuir o orçamento da Educação é que os professores, especialmente os da rede pública, não demonstram a menor vontade de que a volta às aulas ocorra;
já a Saúde, seus profissionais de todos os níveis agem conscientes de sua importância, o que torna imperioso aumentar as verbas da Saúde, melhorar ainda mais o SUS.]
A expectativa de que a vacina resolverá tudo no curto prazo é ingênua. A
competição entre os laboratórios torna o processo sombrio. A Sputnik,
russa, está sendo lançada sem testes públicos confiáveis, em nome de uma
“guerra” insensata. Por mais que as vacinas saiam no início de 2021,
não há como atestar preliminarmente sua qualidade, nem saber como será
feita sua aplicação em massa. Serão necessários 8 bilhões de doses se a
ideia for imunizar a população terrena. Além disso, o mundo
superconectado, frenético e desigual em que vivemos é propício a novas
ondas pandêmicas.
O “depois da pandemia” somente virá à custa de cuidados e sacrifícios.
Serão indispensáveis novas modalidades de políticas públicas, governos
de outro tipo, outros critérios de promoção da justiça e da igualdade,
que incorporem e valorizem os direitos. Teremos de aprender a levar uma
vida com máscaras e higiene redobrada, com distanciamento social e mais
tempo em casa. Aglomerações serão focos de irradiação e perigo.
Mas, e o transporte urbano, com sua precariedade, seus vagões e ônibus
que amontoam pessoas como sardinhas em lata? E a vida escolar, com suas
interações comunicativas? E os encontros, os relacionamentos, as
amizades? E o caráter festivo e social do brasileiro?
O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança
ou liberdade. O que tem mais importância e valor?
Como voltar a olhar
para si e para os seus queridos quando na memória latejam as imagens da
vida aberta, sem freios?
Como controlar nossos desejos e pulsões,
recompô-los e deixá-los fluir de outro modo?
Teremos de experimentar de
maneira distinta o prazer e os prazeres? Saberemos fazer isso?
São perguntas para as quais não há respostas cabais. Formam o enigma
freudiano que acompanha a marcha da civilização naquilo que contém de
“mal-estar” e de substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma
comunidade. Estão sendo repostas, hoje, de modo dramático, e teremos de
nos haver com elas uma vez mais, aproveitando o que temos de cultura da
psicanálise, conhecimento e informação. A vida digital joga a favor. Oferece-nos um novo campo de sensações e
possibilidades, ainda que, ao mesmo tempo, crie novas postulações éticas
e novas zonas de atrito com a vida no plano físico. É uma transição,
difícil como qualquer outra.
A educação é o recurso de que dispomos para construir atitudes
cooperativas e aprender a desenvolver hábitos coletivos que garantam um
mínimo de convivência saudável. Não se trata somente de valorização da
escola, mas de educação com E maiúsculo.
[Nada contra os 'flanelinhas'; os que "flanelam", tudo contra os que extorquem.]
Resta saber se venceremos a batalha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário