O Estado de S.Paulo
Urge investigação minuciosa sobre quem violou os direitos de uma criança abusada
Foi esse o grito da turba ensandecida diante de um hospital, no Recife,
encarregado da interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos,
estuprada sistematicamente pelo tio. A manifestação seguiu um ritual de
perseguição a todos os que se colocam, voluntariamente ou não, contra as
convicções de um grupo de fanáticos que procuram impor de qualquer
maneira suas ideias. O evento tornou-se ainda mais dramático por mostrar
a falta de sensibilidade moral, para não dizer psicológica, diante de
uma criança desprotegida. Onde fica o amor ao próximo? [a pergunta é de resposta complexa para muitos.
Apoiar o aborto é ter amor ao próximo - no caso a vítima - e demonstrando este amor assassinar covardemente o próximo - o ser humano inocente e indefeso.
O que não surpreende, visto que no Brasil se tornou rotina violar direitos e liberdades individuais - assegurados na Constituição, tão invocada em prosa e verso - para proteger à Constituição e os direitos que ela assegura.
Quase sempre os que tem os direitos violados são apoiadores do presidente Bolsonaro e politicamente da direita - condutas que caminham para a tipificação dese tratar de crimes hediondos.]
Uma operação que deveria ser sigilosa, para a proteção da vítima, foi
publicamente escancarada, tendo ela de entrar escondida no hospital. A
ativista radical de extrema direita Sara Giromini, dita Sara Winter, já
bem conhecida por seu acampamento anterior na Esplanada dos Ministérios,
com a complacência de autoridades, divulgou em suas redes o endereço
onde seria realizada a interrupção da gravidez. Acontece que há um
problema da maior gravidade aqui envolvido. Onde ela obteve as
informações sobre o hospital? Quem as forneceu? Tem contatos com
autoridades? Sua responsabilidade é flagrante! Urge uma investigação
minuciosa que produza resultados, visto que o ocorrido é intolerável
jurídica e moralmente! [Nossa posição contrária em algumas ações da Sara Winter,é conhecida dos nossos dois leitores - ninguém e todo mundo;
O que nos surpreende é que alguns órgãos da imprensa defendam a punição da cidadã Sara Winter, contradizendo uma das máximas dos defensores da liberdade de imprensa, que usam e abusam do jargão: 'censurar a imprensa é o mesmo que quebrar o termômetro que acusa febre'. Algo do tipo defender a punição do mensageiro e não do criminoso, que é o responsável pelo vazamento. = tipo punir o mensageiro e não o crime e o criminoso.]
A história é aterradora. Essa criança foi abusada sistematicamente por
seu tio desde os 6 anos de idade, ficando à mercê dele, com ameaças de
que se não consentisse ele mataria seu avô, a quem é muito afeiçoada.
Não se sabe exatamente o que acontecia naquela “família”, porém salta
aos olhos que estamos diante de uma menina desprotegida. Não tinha
nenhum domínio de si mesma. Estritamente falando, não tinha liberdade de escolha, seu corpo era
usado e abusado. Assim transcorreram anos até que o inevitável numa
situação dessas terminou por se consumar: a gravidez. Imaginem-se os
tormentos dela ao tomar progressivamente consciência do que lhe estava a
acontecer, até conseguir verbalizá-lo para sua avó. Foi então que ambas
recorreram às autoridades. O sofrimento e a angústia eram crescentes.
Tiveram a sorte de encontrar no secretário da Saúde do Espírito Santo
uma pessoa compreensiva, que soube corretamente avaliar a relevância do
caso, atento à condição humana dessa criança. Note-se que o secretário é
médico e pertence à Igreja Batista. Faço essa observação para que não
se faça indevidamente a identificação entre conservadorismo e
insensibilidade moral com essa criança, havendo casos em que, por mais
distintas que sejam as convicções religiosas, a interrupção da gravidez é
necessária. Quero dizer com isso que estamos diante de um caso,
previsto em lei, que se situa para além das oposições entre “abortistas”
e “não abortistas”. A interrupção da gravidez, dependendo dos casos, e
não necessariamente apenas os hoje previstos em lei, é necessária por
afetar irremediavelmente a mãe.
O secretário, ademais, alertou para o problema de alguns conselhos
tutelares que postergam sua decisão para tornar irreversível a gravidez,
de modo que a interrupção caia fora do que está temporalmente
contemplado em lei. Seria uma postergação voltada para afetar a vítima
em proveito de convicções religiosas que procuram se impor de qualquer
maneira, até mesmo à revelia da lei. Em nome da moralidade e da
religião, o desamor à vítima é patente, numa assombrosa expressão de
insensibilidade, para além da irresponsabilidade no cumprimento de suas
funções.
Decisão tomada, a criança foi removida rapidamente para o Estado de
Pernambuco por ter condições hospitalares propícias para esse tipo de
operação. Foi quando irrompeu o grito de “assassinos!”, mormente [e merecidamente] endereçado, no ato, àqueles que iriam realizar a intervenção. O
comportamento de médicos e enfermeiros foi exemplar, cumprindo a lei,
imunes aos ataques daqueles fanáticos. O mesmo não se pode dizer de um
médico que, na noite anterior, foi ao quarto da menina para dissuadi-la
de realizar a interrupção. Não tinha nenhum mandato para isso, invadiu a
privacidade de uma pessoa desprotegida e procurou arbitrariamente impor
suas convicções. É propriamente intolerável que uma pessoa dessas
exerça a medicina. O que farão os responsáveis das entidades médicas?
Segundo se soube, há uma investigação sigilosa em curso. Espera-se, em
nome da dignidade humana, que ela produza resultados!
[Comentário final: por mais bytes que sejam gastos tentando maximizar a condição de vítima da criança estuprada por quatro anos - lembrando que os primeiros dois anos de estupro coincidiram com o período em que o estuprador cumpria pena por tráfico de drogas (crime hediondo e cujos autores deveriam, ou devem, cumprir a pena em regime fechado, sem direito a progressão) e regularmente era libertado , ocasião que utilizava para satisfazer seus instintos estuprando uma inocente - tem uma vítima maior, inocente e indefesa: a criança abortada.
É moral, é ético, é humano, matar o ser humano mais indefeso e inocente para preservar o outro partícipe - não tão inocente, não tão indefeso? ]
A menina com a girafa, bichinho que trouxe consigo, símbolo precisamente
da infância, de uma infância ultrajada, violada, não teve nem direito
ao sossego, porque algumas autoridades religiosas resolveram rezar pela
“criança abortada”. A reza mudou de lugar, numa inversão completa de
valores morais. De repente, opera-se um deslocamento, deixando ainda
mais desprotegido aquele ser, que carece de compaixão. O que pretendiam?
Que ela tivesse um bebê fruto do incesto, da violência? Deus deu aos
homens a liberdade, e não a ignomínia de uma espécie de “fatalidade”, como se tudo o que acontece fosse fruto da vontade Dele, pois assim
chegaríamos a justificar os piores atos de maldade cometidos no mundo
como se fossem divinos, o que seria uma blasfêmia.
Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia - O Estado de S. Paulo
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