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sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Não vale o escrito - Valor Econômico

César Felício


Da forma como pode ser feita, mudança corrói democracia

O acordado prevalece sobre o legislado. Esse é o espírito, tão em sintonia com os novos tempos, da argumentação que o Senado apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa da reeleição para as presidências das Casas do Congresso. A Constituição, em seu artigo 57, parágrafo 4, é um tanto quanto explícita: o mandato dos presidentes do Senado e da Câmara é de dois anos, “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.

No parecer do secretário-geral da Mesa do Senado, esta norma não pode ser levada a ferro e fogo. A peça constata uma obviedade: circunstâncias políticas fizeram com que na Constituição de 1988 se mantivesse o princípio criado no regime militar de se impedir a reeleição indefinida dos presidentes das duas Casas, porque é disso que se trata. A partir dessa constatação, a de que o Congresso constituinte criou normas não porque Deus as esculpiu em uma pedra, mas por circunstâncias políticas, chega-se ao desfecho surpreendente: como as circunstâncias políticas são outras, o texto do parágrafo quarto do artigo 57 merece ser declarado caduco.

A reeleição, seja de quem for, presidente da República, da Câmara, do Senado, governador ou prefeito, já não é algo saudável para um dos pilares básicos da democracia, que é a competição política.[a clareza impõe destacar que quem elege, e reelege,  o presidente da República, os governadores e os prefeitos é o POVO;
Já os presidentes da Câmara e do Senado são eleitos e reeleitos por seu pares - o que já torna uma eleição, em especial uma reeleição contrária a um mandamento constitucional, algo nebuloso.
Uma nevoa; a eleição do Alcolumbre produziu um resultado de 82 votos, quando os eleitores eram, e continua sendo, 81.]
Da forma como querem fazer, contudo, é pior. Muito pior. Corrói outros princípios.

A Constituição sempre é um produto de sua época, mas com regras que precisarão necessariamente valer para outros tempos. Por isso tanto é melhor quanto mais enxuta for, o que não é o caso da brasileira. O pecado da prolixidade em 1988 é remediado pela emenda constitucional, e o texto da Carta já foi modificado mais de cem vezes. A ninguém havia ainda ocorrido argumentar no Judiciário que, como 32 anos se passaram, a regra estabelecida não vale mais. É o que prega o Senado. Se a tese emplacar, por que outros limites constitucionais precisarão ser obedecidos? 
Por que o presidente só pode se candidatar a reeleição uma vez? 
Por que os ministros do Supremo precisam se aposentar aos 75 anos? Tudo dependerá da existência ou não de justificativas do ponto de vista histórico ou político para que se diga se o escrito vale ou não.
[o grande responsável por tais interpretações criativas é o Supremo.
Se a Suprema Corte adapta muitas das suas interpretações  do texto do qual se diz guardiã, o que impede que o ilustre secretário-geral da Mesa do Senado se julgue no direito de adaptar o texto constitucional a sua 'soberana' vontade?]

Um dos argumentos dos defensores da tese é que já houve uma interpretação criativa do texto constitucional em 1999, quando Antonio Carlos Magalhães (1927-2006) se reelegeu na presidência do Senado. 
Foi o primeiro a cruzar esta fronteira, mas tratava-se de uma legislatura diferente. Abrir a exceção para a mesma legislatura significa criar a possibilidade de se eternizar o comando.

O acordo que pode se forjar para que se acolha no Supremo a tese de reeleição dentro da mesma legislatura é uma possibilidade concreta, porque seria tentador para as cúpulas dos Três Poderes. O Supremo hipertrofiaria ainda mais seu status, porque ganharia a faculdade de decretar que dispositivos constitucionais perdem a validade porque a banda agora toca diferente.

O presidente também teria ganhos potenciais. [havendo o risco dos inimigos do presidente Bolsonaro = inimigos do Brasil + turma do mecanismo + adeptos do 'quanto pior, melhor' + inimigos da democracia e da liberdade - decretarem que o decidido por adaptação eólica da CF não vale para o presidente Bolsonaro.
Insatisfeitos a quem iriam reclamar?
Afinal, o artigo 142 da CF, reforçado por uma norma menor, mas esclarecedora, uma LC, já foi alvo de interpretação monocrática bem diversa do que está escrito.]  Presidentes da Câmara e do Senado que são eternos candidatos à reeleição podem ter menos interesse em se indispor com a base governista.  Quanto à cúpula do Legislativo, não há nem muito o que dizer. Um presidente da Câmara que pode se reeleger ganha um poder de fogo imenso frente a seus rivais. É um pouco fantasioso achar que Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia não concorreriam em situação de imenso favoritismo. Talvez mais importante do que esses fatores seja o enfraquecimento mútuo do sistema de contrapesos. Legislativos, Executivo e Judiciário podem se tornar feudos, em jogo permanente de defesa e proteção mútua.

Falta alternativa
Um dos 18 pré-candidatos a prefeito de São Paulo, a ser oficializado no dia 5, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) é acima de tudo realista e pragmático. “Essa eleição municipal para a oposição será um momento de acúmulo de forças”, diz. Silva concorre em São Paulo de olho em 2022, momento em que o PCdoB será submetido às novas regras de cláusula de barreira e as forças contra o presidente Jair Bolsonaro terão escolhas difíceis a fazer.

“Pelo andar da carruagem, Bolsonaro chega em 2022 competitivo. E essa competitividade tem a ver com a ausência de uma alternativa crível a ele ”, diz. Para Silva, a oposição estará fadada a conversar em 2021 para fornecer ao país esta tal alternativa crível. “Uma temporada de diálogo vai se abrir para uma gestação, que precisa de uma abertura”, aposta. “O bolsonarismo está ancorado na antipolítica. Uma nação precisa de uma estratégia e isso nós não temos na mesa”, afirma.

O pré-candidato pensa que o PT que sairá das urnas municipais não terá como fornecer uma saída para o problema. “Considero que o PT cumpriu sua missão. Eu aplaudo a trajetória do PT e penso que é necessário construir uma alternativa renovada. O PT pode participar, mas já teve a oportunidade de ser protagonista”. Já em relação ao PDT, o tom é bem menos assertivo. “O PDT e o Ciro não tiveram as oportunidades que o PT teve de governar o país. Mas não é de bom tom que nessa fase sentemos à mesa para discutirmos nomes”.

Com respeito ao próprio partido, eternamente ameaçado pela cláusula de barreira, Silva pensa que será de interesse geral na Câmara estudar uma saída para o fim das coligações proporcionais e “redesenhar o sistema político do Brasil”. Refazer o sistema político é criar brechas para permitir a coligação por outros meios, como por exemplo a federação partidária, no modelo uruguaio da Frente Ampla. A montagem de blocos unidos tanto na eleição como no exercício do mandato poderia se dar inclusive em torno de um nome independente, sem filiação partidária.

É algo que pode interessar as siglas fora do ambiente da esquerda. Partidos tradicionais, como o DEM, podem ter redução de bancada. Siglas vocacionadas para o Legislativo, como o PSD, estarão diante de um dilema. Do mesmo modo a mudança pode interessar aos novos amigos de Bolsonaro, como PP, Republicanos e PL, que teriam assim como embarcar na canoa da reeleição e receber dividendos na eleição de deputados e senadores.

César Felício - Valor Econômico 


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