André Uliano
Um dos maiores desafios que as democracias enfrentam é o de
evitar que grupos que alcançam o poder para um exercício temporário, acabem por
se perpetuar no comando político da nação.
Um dos mecanismos que a ciência política já diagnosticou que
são comumente usados para esse fim são as Supremas Cortes.
Composta por pessoas
com mandatos vitalícios e sem responsabilidade política, o aparelhamento de
órgãos judiciais é atualmente a menina dos olhos dos grupos autoritários. [não pode ser olvidado que são as Supremas Cortes que decidem, via decisão colegiada ou monocrática, os limites dos poderes que possuem.
Está se tornando regra que qualquer movimento contrário ao establishment, que ofereça algum perigo aos que controlam os poderes estabelecidos, é um risco para a democracia. E, para combater tal risco, vale até violar os direitos dos opositores - direitos que são conferidos pela própria democracia - o que constitui o maior de todos os riscos à democracia.
O incidente ocorrido no dia seis passado em Washington se tornou um golpe - manter as instituições sob controle, justifica qualquer coisa, até chamar a reunião de algumas centenas de pessoas de 'golpe' contra a democracia.]
Em toda a América Latina, o forte movimento de erosão
democrática que marcou os primeiros quinze anos do século na região foi
fortemente marcado pelo aparelhamento das Supremas Cortes. O Brasil, a meu ver, ainda que não tenha chegado aos níveis
de deterioração de países como Venezuela, não ficou totalmente livre desse
movimento. Aliás, o fato foi de algum modo reconhecido por um dos ministros do
Tribunal. Recentemente, o Ministro Marco Aurélio de Mello reconheceu que o STF
se tornou um tribunal de boicote ao Presidente Jair Bolsonaro. Disse ele: “o
STF está sendo utilizado pelos partidos de oposição para fustigar o governo.
Isso não é sadio. Não sei qual será o limite”. Muitos observadores atentos veem
no STF não um tribunal de controle jurídico, mas uma militância de boicote
político.
Os indícios desse fenômeno são inúmeros: decisões que esvaziam
atribuições da União e do Presidente, perseguição a apoiadores, críticas públicas
inoportunas e de caráter político-ideológico, duplo padrão de tratamento etc.
O fenômeno voltou a ocorrer nos últimos dias. O ministro
Fachin, historicamente bastante próximo de grupos que hoje ocupam a oposição,
proferiu monocraticamente - apesar da fragilidade da fundamentação e da
ausência de precedentes no mesmo sentido - decisão que, sem embasamento sólido
na Constituição, substancialmente impõe uma das agendas políticas da oposição
no tocante a armas de fogo.
Conforme noticiou a Gazeta do Povo, “o ministro Edson
Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a resolução sancionada
pelo Comitê Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (Gecex) que
reduziu a tarifa de importação de revólveres e pistolas de 20% para zero (...).
A decisão foi tomada após análise de um pedido feito pelo PSB”. [partidecos insignificantes em termos de votos e bancada, sem noção, sem programa, usam o Supremo para 'governar' - impedindo o Poder Executivo de realizar o que não fariam se governo fossem.
O Joãozinho Doria usou o Supremo para impedir que insumos para uma futura vacinação contra a covid-19, comprados com dinheiro público, sejam utilizados pelo Governo Federal para execução de um plano de vacinação que o mesmo ministro (cuja amplitude dos seus conhecimento de Medicina é desconhecida) também atendendo a um pedido de um partideco, determinou fosse apresentado em tempo recorde pelo governo Bolsonaro.
A decisão impede que maior números de prioritários - especialmente o pessoal da saúde - sejam beneficiados em todo o território nacional.
Só que a conta da compra das seringas e agulhas fatalmente será apresentada ao Governo Federal.]
O que chama atenção na decisão não é tanto seu potencial de
ofender direitos fundamentais básicos, mas o grau de minúcia que o ministro
acredita poder determinar a partir de princípios abstratos. De fato, parece no
mínimo extravagante que alguém acredite que a Constituição teria fixado
implicitamente, por meio de seus princípios, a alíquota de importação de um
bem.
Como salientou acertadamente o jurista Cláudio Ari Mello, na
obra “Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais” (p. 277), essa visão
do direito de que tudo está nos princípios constitucionais (facilmente
manipuláveis pelo STF) resulta na “conversão da constituição em uma espécie de
Alcorão, onde se encontram preceitos normativos para todas as ações da vida
política, social e privada”. Do jeito que a coisa vai, corremos o risco de que,
em breve, Fachin diga o tipo de roupa, a cor do carro e o penteado que a
constituição permite que o Presidente da República e seus apoiadores usem.
O ministro, além de tudo, afronta flagrantemente a
Constituição que outorga claramente ao Presidente da República a fixação de
alíquotas de importação, em seu art. 153, inciso I e § 1º, desde que “atendidas
as condições e os limites estabelecidos em lei”. Frise-se: em lei, não na
cabeça de quaisquer dos ministros.
Para “fundamentar” seu voto, Fachin tentou afirmar que as
políticas desarmamentistas decorreriam dos princípios constitucionais. A
opinião, no entanto, não conta com argumento sólido. Fachin confunde a leitura
defendida pela agenda de esquerda, que em matéria de segurança pública colheu
péssimos resultados, com a Constituição. Tal confusão é descabida e tem efeitos
negativos. É de se lembrar que o tema das políticas de armas foi bastante
debatido durante a última eleição e a agenda imposta pelo ministro foi
derrotada na urnas. Ademais, no caso, nem se está falando em relaxamento de
requisitos para aquisição, posse ou porte de armas (o que também encontraria,
de per se, óbice na Constituição), mas simplesmente da redução de alíquotas
aplicáveis à sua importação.
Creio que posturas como a do ministro acabam por transformar
a Constituição em uma “camisa de força” sobre a democracia, em que o único
resultado legítimo das deliberações políticas seria aquele alinhado com a
agenda política preferida por ministros do STF. Mas nossa Constituição,
definitivamente, não é uma “camisa de força”. Ela impõe limites, sem dúvida.
Contudo, deixa margem para acomodação, experimentalismo, alternância e
aprendizado. [o que mais assusta é que a cada decisão em prol da 'democracia' - a deles, não a do povo, referendada por quase 60.000.000 de votos - incita ao cabo de guerra que está em curso e que poderá ser rompido quando o alvo, ou alvos, das medidas 'democráticas' decidir não cumprir o determinado. A corda irá se romper, como sempre do lado mais fraco e qual será o lado mais fraco?]
Atenta à pluralidade de nossa sociedade, nossa Constituição
não elegeu expressamente uma política concreta quanto ao acesso a armas. Como
em outros pontos, nossa Constituição foi compromissória nesse tocante. Ela não
impôs a paulatina restrição de armas com um de seus princípios, de modo que
qualquer medida que possa ter por impacto ampliar a circulação de pistolas e
revólveres seria inconstitucional. Isso não está previsto em lugar algum da
Constituição. Essa previsão simplesmente não existe. Dos princípios abstratos e
vagos invocados pelo ministro (basicamente, vida, segurança e proteção do
mercado interno) não decorre necessariamente qualquer política desarmamentista.
Pelo contrário, a Constituição previu o direito à segurança,
e deixou para cada geração, por meio da democracia representativa, decidir como
pretende concretizar esse direito. Uma das formas é a permissão controlada à
posse de armas. Inúmeros países que preveem em suas constituições o direito
à segurança e o garantem de modo muito mais efetivo do que o Brasil – como
Suíça, Noruega, Canadá, Nova Zelândia e, na América Latina, o Uruguai –
permitem de modo bastante amplo o acesso a armas de fogo. Inexiste a correlação
negativa alegada pelo ministro entre “acesso a armas” e “direitos fundamentais
à vida e segurança”. Pelo contrário. Inúmeros dados apontam no sentido oposto.
O ministro também tenta, sem sucesso, criar uma dicotomia
entre “segurança pública” e “autodefesa” (segurança privada), dando a entender
que viabilizar os mecanismos para a última ocorreria necessariamente em
detrimento da primeira. É algo completamente desprovido de fundamento. Como
quase todo direito fundamental, a segurança possui um aspecto privado (o
direito de se defender) e outro social (o dever do Estado de organizar um
aparato para proteger esse direito). Entre as duas perspectivas não existe
contradição, mas complementariedade.
Aliás, a Constituição aponta nesse sentido, uma vez que
prevê a segurança como direito individual no art. 5º: “Art. 5º Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. E depois, em
outro dispositivo, no art. 144, trata da segurança pública, onde deixa
expresso: “Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos”.
O voto ainda invoca inúmeros dispositivos e tratados de
direitos humanos, tentando de modo falacioso concluir que daquelas previsões
vagas e abstratas decorreria necessariamente a ideologia desarmamentista. Para perceber a falácia, basta ver os dispositivos citados e
perceber que vários dos países que são signatários daqueles acordos possuem
legislações pouco restritivas quanto a armas. O ministro, na verdade, tenta
transformar suas opiniões subjetivas em comandos constitucionais, o que caso
imposto por meio do Judiciário seria apenas mais um lamentável e triste caso de
ativismo antidemocrático, afrontoso à divisão e harmonia dos Poderes.
Acredito que por qualquer ângulo que se examine a questão, é
absolutamente inegável que princípios como vida, segurança e proteção do
mercado interno, não resolvem logicamente a questão tratada no julgamento. A
Constituição, nitidamente, deixa margem de discricionariedade quanto à forma de
concretizar esses princípios. E como bem pontuou a Gazeta do Povo em recente
editorial: “É a sociedade, por meio de seus representantes eleitos, que define
quais as melhores políticas de segurança pública (incluída, aí, a questão da
posse e porte de armas), e não o Poder Judiciário.”
Por fim, vale salientar que Fachin não simplesmente votou
pela inconstitucionalidade. O que já seria equivocado, como vimos acima. Mas
ele foi além e derrubou a lei monocraticamente.
Já escrevemos sobre o abuso atual no tocante às decisões
monocráticas. Esse tipo de decisão existe para dois fins:
a) urgência em vista
de risco de dano irreversível a direito provável, ou seja, casos
extraordinários que não podem aguardar a instrução processual;
b) casos em que
a jurisprudência é consolidada, não havendo por que consumir a pauta do órgão colegiado.
No caso concreto, nenhum desses requisitos está presente. O fundamento constitucional invocado é frágil, não conta com precedentes do colegiado para situações com similitude demonstrada, tampouco há demonstração de urgência.
Logo, tendo em vista que o Presidente exerceu poder que a
Constituição expressamente lhe concede;
que o fundamento jurídico invocado por
Fachin é frágil e inconsistente;
que inexiste precedente que dê suporte
juridicamente sólido à decisão;
que ela impõe uma agenda política derrotada e
restringe excessivamente o campo de atuação e deliberação dos órgãos
representativos: cremos que se trata de decisão fortemente equivocada e que
invade a atribuição de outros Poderes. O Brasil precisa debater com urgência os
limites da atuação judicial e dos ministros monocraticamente, sob o risco de
nosso regime democrático converter-se em uma clara e irreversível
juristocracia.
André Uliano, Procurador da República. Mestre em Economia e pós-graduado
em Direito. Professor de Direito Constitucional. Gazeta do Povo - Vozes