O Estado de S.Paulo
A debandada da equipe econômica sinaliza a perda de ênfase em reformas
A derrota do projeto eleitoral de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para a
economia brasileira é um fato que se pode aplaudir ou lamentar, mas é
incontestável. Definido em linhas gerais como uma ampla e profunda
transformação do Estado brasileiro, e a consequente “libertação” da
economia para gerar aumento de produtividade e crescimento, era um
conjunto de intenções aplaudidas por boa parte da sociedade, antes de
ser um plano.
Ficou até aqui muito aquém do pretendido (de novo, pode-se saudar ou
lamentar essa constatação) e agora não há mais condições políticas,
tempo e, ao que parece, intenção de realizá-lo. Grosso modo, a derrota
deve ser atribuída a dois grandes fatores. O primeiro é o fato de que
não havia uma estratégia, entendida como adequação dos meios (sobretudo
políticos) aos fins (reforma do Estado) dentro de um período de tempo.
Perdeu-se tempo precioso elaborando o que seria “nova” política, além da
dedicação de Bolsonaro ao que se chama na linguagem militar de “teatros
secundários”.
Como consequência, para o “projeto” acabou sendo ainda mais violenta a
devastação trazida pelo segundo grande fator: o imponderável da pandemia
da covid-19, que destruiu qualquer outro cálculo que não fosse o da
sobrevivência política.
A brutal crise de saúde pública agravou os males
que já existiam: escancarou a incompetência do governo central,
aprofundou a miséria, a crise fiscal e abalou uma economia que ensaiava
uma recuperação apenas tímida, presa aos limites estruturais de sempre.
Para todos os efeitos o presidente é hoje um personagem político
diminuído em seus poderes [apesar de de ter sido impedido, por 'cassação', do exercício de alguns dos seus poderes constitucionais, o presidente é alvo constante da ação de certos grupos, que estão sempre buscando, sem chances de êxito, sem chances de êxito, 'cassar' o mandato presidencial, e que agora tentam em mais uma desesperada cartada, convencer a população que o presidente é o responsável pelas mais de 100.000 mortes causadas pela covid-19.] e com escassa capacidade de liderança,
obcecado com a situação pessoal, gradativamente abandonado pelas elites
econômicas que apostaram nele e agora fascinado pelas recompensas
político-eleitoreiras trazidas pelo assistencialismo emergencial. Como
se antecipava, a economia definiria os rumos de Bolsonaro, que agora
precisa gastar o que não tem.
Surge com razoável nitidez o caminho após a derrota do “projeto”, e é
bem a cara do Brasil “velho” (aquele que nunca deixou de ser). A
premente ampla reforma tributária esbarra na incapacidade política de se
proceder à eliminação de distorções tais como renúncias fiscais que
atendem a vários interesses setoriais antagônicos, além da dificuldade
política de coordenar os vários entes da Federação. O Brasilzão de
sempre, esse que continua aí, indica que o caminho do menor esforço
político nos levará a mais e não menos impostos.
A pretendida reforma do Estado dependia de uma reforma administrativa
que atacasse gastos públicos – aumentá-los muito além da capacidade de
financiá-los foi um claro consenso da nossa sociedade, como assinalou o
ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Reforma que sumiu no
horizonte. Há um compromisso verbal com a manutenção da âncora fiscal
além do período de emergência, mas as nuvens da política sugerem que
esse período será estendido para o ano que vem.
Furar o teto de gastos é uma contingência política criada no plano
imediato pela convergência entre os “desenvolvimentistas” no Planalto,
entre eles os saudosistas do período militar (que convenientemente se
esquecem de como aquilo acabou), e a massa do Centrão que enxerga uma
oportunidade nos cofres públicos sem fundos. Juros baixos e inflação bem
comportada permitirão que essa “estratégia” se mantenha por um tempo
razoável, que é o tempo para se programar para uma reeleição. As
ambiciosas privatizações e a propalada diminuição do Estado ficam para
depois.
Bolsonaro deve ser ajudado por um conjunto de concessões e obras de
infraestrutura que movimentarão setores como construção e atrairão
investidores, ainda que preocupados com a eterna insegurança jurídica [da qual o presidente também é vítima.] que paira como sempre sobre os negócios. Vai ser indiretamente ajudado
também pelos setores modernos do agro negócio que desprezam como o
governo fala sobre questões ambientais, mas acham que bem ou mal
sobreviverão às pressões internacionais, e seguirão crescendo.
Com a perspectiva real de vacinas que ajudem a controlar o vírus, a
tragédia dos milhares e milhares de mortos vagarosamente se acomoda na
psicologia coletiva. No jeitão do Brasil de sempre, aquele que Bolsonaro
prometeu mudar, sonhando com o que poderia vir a ser, sem conseguir
deixar de ser o que é.
William Waack, colunista - O Estado de S. Paulo
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