Alexandre Garcia
"Dois anos de direito de propriedade, previsto no título dos
direitos e garantias fundamentais, suspenso, sem precisar que a Câmara e
o Senado votem isso em dois turnos com maioria de 60% em emenda
constitucional"
A pandemia tem sido usada para suprimir direitos básicos. Entre eles, o
de propriedade, nivelado com o direito à vida, no caput do artigo 5 da
Constituição (garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade). Agora, o Supremo decide
prorrogar, outra vez, a proibição de reintegração de posse. Da mesma
forma, o locador está proibido de despejar o locatário que não paga
aluguel. Começou em 20 de março do ano passado e ainda vai até 31 de
março próximo, se não for prorrogado o prazo outra vez. Dois anos de
direito de propriedade, previsto no título dos direitos e garantias
fundamentais, suspenso, sem precisar que a Câmara e o Senado votem isso
em dois turnos com maioria de 60% em emenda constitucional. Está o
Brasil sem Constituição? [em miúdos:o Congresso Nacional = Poder Legislativo = formados pelos representantes do Povo - que detém o poder de LEGISLAR para mudar a Constituição precisa de duas votações na Câmara, em cada uma o mínimo de 308 deputados precisa votar favorável mente à emenda constitucional e também em duas votações 48 senadores votem favorável a uma PEC.
Já o Supremo, sem que nenhum dos seus integrantes tenha sido eleito, para emendar a Constituição precisa apenas de seis votos = em uma única votação para aprovar uma emenda constitucional.]
Isso é um estímulo a invasões, ao esbulho possessório e
ao não cumprimento de compromissos contratuais de aluguel.
Meu amigo
corretor de imóveis conta que há casos de clientes que só têm o aluguel
como fonte de renda.
Constrangido e sentindo-se eticamente responsável,
já que é intermediário, meu amigo tem adiantado o pagamento quando
percebe que o locador passa dificuldade por falta da renda com que
contava. Depois, tenta cobrar do locatário.
A mãe de outro amigo, viúva e
idosa, tem como renda o aluguel de apartamentos em São Paulo, alguns
dos quais foram invadidos por movimento social. Ela não pode despejar os
locatários nem pedir reintegração de posse onde estão os invasores.
E
nada recebe por esses imóveis. Enquanto isso, vai pagando o IPTU, que
vai para um estado que não lhe garante o direito constitucional de
propriedade.
Outro amigo, veterano advogado, me conta que costumava
orientar seus estagiários no direito a procurar, primeiro, a
Constituição, depois, leis, decretos e portarias e, por fim, decisões
judiciais. Mas, hoje, ele inverte a ordem: primeiro, verificar o que
decide o Supremo — a Constituição fica por último. Com a pandemia,
direitos básicos ficaram inconstitucionais por decisões do Supremo.
Entre eles, o de propriedade, ao se alegar a função social. Os
invasores, em geral, são integrantes e instrumentos de movimentos
sociais, que, na prática, estão acima da Constituição.
Ironicamente, o
Supremo é o guardião da Constituição(art. 102).
E os direitos e
garantias fundamentais são cláusulas pétreas da Constituição. Aí, estão
os direitos de locomoção, reunião, culto, expressão, trabalho, acesso à
informação, que não podem ser diminuídos nem por emenda Constitucional.
Será que a Constituição foi derrubada pelo coronavírus?
Seria o corona um cavalo de troia a esconder nas suas entranhas o
totalitarismo mundial?
Fica a impressão de que estamos emudecidos pelo
medo e pela mordaça, vagando sobre uma corda bamba.
Porque a
Constituição, que é a garantia dos direitos, ao não garantir direitos
fundamentais, tampouco garante as próprias instituições. Será que se
deram conta disso, os equilibristas que estão relativizando a Lei Maior?
O que é pétreo não se verga, porque quebra.
Alexandre Garcia, colunista - Correio Braziliense