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domingo, 29 de maio de 2022

Até quando? - Ana Paula Henkel

Revista Oeste

O que aconteceu nesta semana em Uvalde, no Texas, e em outras ocasiões semelhantes na história norte-americana vai além do raso debate “mais armas ou menos armas" 

Cruzes com os nomes das vítimas do tiroteio em Uvalde, no Texas, são colocadas do lado de fora da escola Robb Elementary | Foto: Jae C. Hong/AP/Shutterstock
Cruzes com os nomes das vítimas do tiroteio em Uvalde, no Texas, são colocadas do lado de fora da escola Robb Elementary | Foto: Jae C. Hong/AP/Shutterstock

Qualquer tragédia que arrebata vidas humanas é devastadora. Mas uma tragédia que ceifa vidas de crianças inocentes é algo tão avassalador que deixa marcas profundas em todos nós. É difícil sequer imaginar o que os pais e os familiares das 19 crianças mortas nesta semana por um atirador em uma escola no Texas podem estar passando. Como alguém pode cometer uma atrocidade dessa magnitude? E aqui, antes de seguirmos com a nossa conversa semanal, peço, por gentileza, que fechem os olhos por alguns segundos e façam uma prece para essas famílias.

Como sempre fazem, as almas vazias do mundo aproveitaram a tragédia para empurrar suas agendas políticas. Durante uma coletiva de imprensa das autoridades do Texas, com a presença de policiais, do prefeito da cidade de Uvalde e do governador, Gregory Abbott, todos visivelmente abalados pelo terrível evento, o candidato democrata ao governo do Estado, Beto O’Rourke, um dos que participaram das primárias democratas em 2020, resolveu se levantar e ir até a mesa “cobrar” uma resposta do governo sobre o banimento de armas, pauta de seu partido. De maneira desprezível e oportunista, O’Rourke usou a tragédia para impulsionar sua candidatura ao governo do Estado e continuar sob os holofotes.

Enquanto as autoridades do Texas identificavam as vítimas do massacre, avaliavam suas consequências e tentavam, dentro do humanamente possível, cuidar dos familiares das vítimas do massacre, o ex-presidente Barack Obama divulgou uma mensagem no Twitter invocando a morte de George Floyd, assassinado pelo policial Derek Chauvin, em Minneapolis, durante uma prisão, em 25 de maio de 2020. Em um malabarismo insensível e bizarro, Obama conectou o tiroteio da escola em Uvalde ao segundo aniversário do assassinato de Floyd: “Enquanto lamentamos os filhos de Uvalde hoje, devemos ter tempo para reconhecer que dois anos se passaram desde o assassinato de George Floyd sob o joelho de um policial. Sua morte permanece com todos nós até hoje, especialmente aqueles que o amavam”, tuitou o ex-presidente. Narcisismo e psicopatia em estado puro.

Mais armas X menos armas
Longe das abjetas tentativas de usar a inimaginável dor de pais e mães para as agendas políticas, é preciso abordar de maneira honesta e com maior profundidade alguns pontos importantes que podem estar mudando os perfis da sociedade norte-americana, principalmente dos adolescentes. O que aconteceu nesta semana em Uvalde e em outras ocasiões semelhantes na história norte-americana vai além do raso debate “mais armas ou menos armas”. A própria expressão “tiroteio em massa” (mass shooting), usada em eventos como esse, já carrega em si uma ansiedade difícil de ser controlada. Nos Estados Unidos, existem várias definições diferentes, mas comuns, de “tiroteios em massa”.

O Serviço de Pesquisa do Congresso define tiroteios em massa como incidentes múltiplos, com arma de fogo e homicídio envolvendo quatro ou mais vítimas em um ou mais locais próximos uns dos outros. A definição do Federal Bureau of Investigation (FBI) é essencialmente a mesma. Muitas vezes há uma distinção entre tiroteios em massa privados e públicos, como uma escola, um local de culto ou um estabelecimento comercial. Os tiroteios em massa realizados por terroristas estrangeiros não estão incluídos, não importa quantas pessoas morram ou onde o tiroteio ocorra. Essas formulações são certamente viáveis, mas o limite de quatro ou mais mortes é arbitrário. Há também exclusões importantes. Por exemplo, se 20 pessoas são baleadas, mas apenas duas morrem, o incidente não é um tiroteio em massa. Mas nada disso importa quando essas tragédias acontecem. O fato é que, em menos de duas semanas, Salvador Ramos, 18 anos, matou 19 crianças e dois professores em uma escola primária no Texas, e Payton Gendron, também de 18 anos, assassinou dez pessoas em um supermercado em Buffalo, Nova Iorque.

Ambos, Gendron e Ramos, tinham sérios distúrbios mentais. As pessoas ao seu redor sabiam disso. Família, amigos, escolas. Ambos os assassinos disseram a outras pessoas que planejavam cometer um tiroteio em massa e então o fizeram. O atual sistema de alerta em vigor não está funcionando. O que, de fato, está acontecendo com muitos jovens? 
Uma pessoa que tem a intenção de cometer violência é muito difícil de ser parada em qualquer circunstância. 
Um ato do Congresso norte-americano não vai fazer isso, nem o controle de armas, nem a extinção da Segunda Emenda. 
Há mais armas nos Estados Unidos do que pessoas, cerca de 400 milhões. Sempre houve. 
Seja qual for sua opinião sobre esse fato, os norte-americanos nunca se disporão de suas armas. 
A Constituição proíbe isso e uma nova guerra civil provavelmente seria desencadeada se a proposta fosse adiante.
 
Sobre controle de armas, quer você concorde com ele ou não, isso não impedirá o próximo Payton Gendron ou Salvador Ramos de agirem, e toda pessoa racional sabe disso. 
Quem puxa o gatilho, esfaqueia, queima, atropela são pessoas, e a única maneira de parar muitos desses assassinatos é descobrir por que a sociedade norte-americana (assim como a brasileira) está produzindo tantos jovens violentos. 
Há uma razão pela qual eles estão agindo dessa maneira. Qual é esse motivo? 
E não são apenas atiradores em massa na América, esses que aparecem diabolicamente de tempos em tempos na televisão. 
Nos Estados Unidos e também no Brasil, são bandidos armados com armas ilegais, ladrões de carro, de estabelecimentos e residências. 
Por que estão agindo assim? 
Essa deveria ser uma das principais perguntas em todo esse contexto. Obviamente, é um dos pontos que democratas odeiam abordar, porque cavar soluções dentro de problemas complexos acabaria por enterrar as agendas políticas.

Armas, big techs e big pharmas
Poucas horas depois de 19 crianças terem sido assassinadas, o presidente dos Estados Unidos fez um pronunciamento na televisão e o tom não foi de união ou elevação do espírito de uma nação profundamente ferida e em agonia.  
Em vez disso, ele aproveitou a oportunidade para mais uma vez discutir com quem não votou nele, e o fez, como sempre, de maneira vergonhosa. Biden disse: “Como nação, temos de perguntar: ‘Quando, em nome de Deus, vamos enfrentar o lobby das armas? Quando, em nome de Deus, saberemos dentro de nós o que precisa ser feito? Para que, em nome de Deus, você precisa de armas, exceto para matar alguém?’ É simplesmente doente e os fabricantes de armas passaram duas décadas comercializando agressivamente armas, o que os torna maiores e com maior lucro. Pelo amor de Deus, temos de ter a coragem de enfrentar a indústria”.
 
As crianças estão morrendo porque o lobby das armas está lucrando. A desonestidade chega a ser inacreditável. E irracional também. Logo após o terrível tiroteio, o New York Times publicou a mesma ideia sobre o lobby das armas. Só não contaram que a National Rifle Association (NRA) declarou falência no ano passado, enquanto as big techs gastaram mais de US$ 70 milhões fazendo lobby no Congresso. 
As big pharmas gastaram US$ 92 milhões também fazendo lobby em Washington apenas no primeiro trimestre de 2021, enquanto a NRA gastou US$ 2,2 milhões em todo o ano de 2020, ano de eleições presidenciais. Seja qual for o problema, não é o lobby das armas que está matando pessoas inocentes. Este é um assunto muito sério para bobagens como essa, empurrada pela assessoria do Partido Democrata, ou a velha imprensa norte-americana, como preferirem.
 
Segundo uma pesquisa feita pela ABC News, “cerca de 11% dos crimes violentos na cidade de Los Angeles envolveram um sem-teto em 2018, 13% em 2019 e 15% em 2020”
Tenha em mente que os moradores de rua representam cerca de 1% da população total de Los Angeles, mas estão envolvidos em quase um quinto de todos os crimes violentos na cidade. 
Ah, mas não há nada para ver aqui. Circulando, circulando. 
Todos aqui em Los Angeles sabem que isso está acontecendo porque esses números aumentam a cada ano. 
E o que está acontecendo nas ruas também acontece nas escolas.

O que mudou?
O diretor-executivo da Associação Nacional de Oficiais de Recursos Escolares, Mo Canady, disse recentemente em uma entrevista que as escolas estão “vendo mais agressão em termos de brigas e roubos”. Segundo Canady, isso não costumava acontecer, mas está acontecendo agora em grande intensidade. Por quê? Não são armas. Não é sobre o lobby de armas
Mais famílias norte-americanas tinham armas em casa há 50 anos do que agora. De acordo com a Rand Corporation, 45% dos lares norte-americanos tinham uma arma em 1980. Em 2016, isso caiu para 32%. Então o problema não é que estamos mais armados do que estávamos. O problema é que as pessoas mudaram. Os jovens mudaram e estão mais violentos. Por quê?

Essa deveria ser a conversa bipartidária aqui nos Estados Unidos e a que deveria unir políticos de todos os espectros no Brasil. Mas ela vem sendo abafada por lunáticos que buscam atenção e que esperam apenas ganhar a próxima e a próxima e a próxima eleição, sem se preocupar, de fato, com as raízes profundas de problemas que não são simples.

Mais de 107 mil norte-americanos morreram de overdose de drogas em 2021. Esse é o maior número anual de mortes já registrado e um aumento de 15% em relação ao ano anterior

Provavelmente existem muitas causas para essas dificuldades e transtornos em adultos e adolescentes. O uso de antidepressivos nos Estados Unidos — como no Brasil — está aumentando dramaticamente. Entre 1991 e 2018, o consumo total de Selective serotonin reuptake inhibitors (SSRIs), ou inibidores seletivos da recaptação de serotonina, aumentou nos EUA em mais de 3.000%. Esses inibidores deveriam reduzir doenças mentais, mas algo não está indo na direção correta. No Canadá, as prescrições de antidepressivos financiadas pelo Estado para jovens dobraram na última década
Durante os lockdowns da pandemia, as prescrições dos inibidores aumentaram ainda mais. Um grupo de farmácias chamado “Express Scripts” relatou que as prescrições de antidepressivos aumentaram mais de 20% durante a pandemia de covid. De acordo com os números mais recentes, mais de 40 milhões de norte-americanos estão tomando drogas psicoativas. Isso é aproximadamente uma em cada dez pessoas!

Mostrei esses dados a uma amiga médica que está no campo da psiquiatria há quase 30 anos, e ela relatou que está assustada com o movimento dos antidepressivos na América. O objetivo dessas drogas é tornar o indivíduo mentalmente mais saudável, reduzir o suicídio e a violência, mas, ainda assim, as taxas de suicídio e violência estão aumentando. Não sabemos se isso é causalidade, mas precisamos encarar esse assunto com profissionalismo e preocupação. Novos números divulgados nesta semana pelo Centers for Disease Control and Prevention, o hoje famoso CDC, mostram como as overdoses de drogas aumentaram durante a pandemia. Mais de 107 mil norte-americanos morreram de overdose de drogas em 2021. Esse é o maior número anual de mortes já registrado e um aumento de 15% em relação ao ano anterior.

O isolamento humano através das telas digitais
Mas, então, as pessoas estão usando mais drogas, estão mais instáveis, estão se matando com maior frequência e, em outros casos, matando outras pessoas. O problema é tentar encontrar a raiz da mentalidade de quem mata crianças em uma escola primária! A pessoa deve estar tão terrível e profundamente desconectada de outros seres humanos que isso pode parecer normal, como uma regra que se aplicaria a todos nós. O que poderia estar aumentando o sentimento de desconexão que temos um do outro? Pesquisando alguns dados na internet, encontrei que, em 2020, os adultos nos Estados Unidos passavam em média oito horas todos os dias nas mídias e nas plataformas digitais olhando para uma tela. Os lockdowns eternos pioraram, e muito, essa situação. É claro que não estou apontando para uma, duas ou qualquer causa certa para insanos possuídos matarem pessoas, não acredito que haja uma única causa, mas não é difícil ver que esse isolamento humano através das telas digitais pode estar pesando mais do que imaginamos. Em relação a 2019, esse aumento foi de 20%.

Charles Krauthammer, proeminente escritor norte-americano, comentarista político, médico psiquiatra por Harvard e colaborador-chefe do terceiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (falecido em 2018), disse, após um tiroteio em massa no Washington Navy Yard, em setembro de 2013, que há muitos doentes mentais em nossa sociedade e que precisamos parar de ignorá-los, especialmente quando políticos travestem esse isolamento covarde e vil com vestes de falso amor e cuidado. Krauthammer, vencedor do Prêmio Pulitzer em 1987, disse: “Ele (o atirador) precisava de ajuda. Há 30 anos, os policiais o teriam levado para uma sala de emergência psiquiátrica. Ele provavelmente teria recebido antipsicóticos e provavelmente teria sido hospitalizado por algumas semanas. Era assim que se fazia nos anos 1970, quando eu exercia a psiquiatria, mas hoje isso não acontece. Os policiais foram embora e ele foi deixado sozinho. Ele era um homem que não deveria estar sozinho. Ele deveria ter o Estado cuidando dele e acabou matando pessoas. Olha, você quer respeitar as liberdades civis de todos, mas há um ponto em que, se você não assumir o controle de pessoas que estão claramente fora da realidade, você está prejudicando essas pessoas, expondo-as e, claro, expondo tragicamente muitos inocentes ao seu redor”.

No rescaldo de tragédias como a desta semana no Texas, e outras como Columbine, Parkland, Sandy Hook, os norte-americanos ouvem as características compartilhadas dos atiradores: normalmente são jovens do sexo masculino que obtiveram uma arma normalmente de maneira ilegal, usaram drogas ou estão fazendo uso de antidepressivos pesados, abandonaram a escola e cometeram ou planejaram suicídio como o grand finale para seus assassinatos, além de sérios problemas familiares com lares sem pais.

A mente humana é complicada. Fato. Mas paramos de falar de pessoas para dar lugar ao coletivismo macabro que ignora o indivíduo, seus problemas e as consequências muitas vezes diabólicas de seus atos. O que esses assassinos têm em comum? A resposta aos tiroteios em massa nos Estados Unidos ou à criminalidade no Brasil não pode ser a sempre fácil e rasa retórica de confisco universal de armas. A falsa bondade em ignorar doentes mentais ou viciados em drogas, sejam as ilícitas, sejam as com prescrição médica, pode ter um preço alto demais e sem volta. Foi assim que, nesta semana, a pequena cidade de Uvalde, no Texas, mudou para sempre.

Leia também “O ativismo judicial e a barbárie”

Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste


quarta-feira, 16 de março de 2022

A loucura californiana - Revista Oeste

Foto: Shutterstock
Foto: Shutterstock
Estamos no meio de uma guerra com desfecho imprevisível, talvez fruto da loucura de Putin, um megalomaníaco que pretende restaurar a “grandeza do império soviético”, custe o que custar. Mas peço vênia aos leitores para desviar o foco nesta coluna. 
Quero falar sobre a loucura californiana, e não quero dizer, com isso, as políticas energéticas malucas que têm custado tão caro ao Estado. 
Falo da loucura mesmo, da relação da Califórnia com os doentes mentais. É um assunto que me interessa bastante, por motivos pessoais.

Tomo como base aqui o livro San Francisco: Why Progressives Ruin Cities, de Michael Shellenberger, ele mesmo um progressista desiludido. Ele escreveu o livro pois tinha muitas perguntas sem respostas, e, ao fazer suas pesquisas, descobriu que seus pares progressistas estavam equivocados em basicamente tudo sobre cidades, crimes e moradores de rua. Era preciso fazer um alerta, na esperança de mudar o rumo das coisas. Na toada atual, as principais cidades californianas ficarão inabitáveis em algumas décadas.

A maioria no poder em algumas cidades dos Estados Unidos parece acreditar que o único problema real de política pública é como pagar para deixar as pessoas fazerem o que quiserem, desde transformar parques públicos em acampamentos de drogas a céu aberto até usar calçadas como banheiros. Entre 2010 e 2020, o número de ligações feitas em São Francisco reclamando de agulhas hipodérmicas usadas em calçadas, parques e outros lugares subiu de 224 para 6.275. De 2005 a 2020, São Francisco experimentou um aumento surpreendente de 95% nos sem-teto desabrigados, enquanto o número de unidades habitacionais permanentes de apoio oferecidas pela cidade aumentou de 6.487 para 10.051.

Quando os fundos locais, estaduais e federais são contabilizados, São Francisco gasta US$ 31.985 por sem-teto apenas em moradia, sem incluir Assistência Geral, outros programas de bem-estar em dinheiro, como Assistência Temporária para Famílias Necessitadas e outros serviços. Por outro lado, a cidade de Nova Iorque gasta US$ 11.662 e Los Angeles gasta US$ 5.001. A maior razão pela qual muitas pessoas escolhem São Francisco, segundo o autor, são as drogas baratas e abundantes e a lentidão da aplicação da lei.

São Francisco tem a quarta maior taxa de mortalidade por overdose de drogas de qualquer grande cidade dos EUA

As pessoas não estão morrendo de overdose de drogas em São Francisco porque estão sendo presas, como alegam aqueles que pregam uma política carcerária ainda mais frouxa. Eles estão morrendo porque não estão sendo presos. De 2008 a 2020, as mortes por overdose de metanfetamina aumentaram 500% em São Francisco, e metade das visitas psiquiátricas ao Hospital Geral de São Francisco está relacionada à metanfetamina. Em 2019, a metanfetamina foi a droga mais comum nas mortes por overdose na Califórnia.

“Estar chapado de metanfetamina parece uma mania bipolar”, explicou um médico de emergência psiquiátrica. Metade de todos os pacientes que ele atendeu no Hospital Geral de São Francisco tinha doença mental grave e dependência de drogas. “Coisas como estimulantes de metanfetamina e cocaína vão te deixar psicótico, e então parece uma mania bipolar”, disse ele. “Quero dizer, é indistinguível.”

Hoje, São Francisco tem a quarta maior taxa de mortalidade por overdose de drogas de qualquer grande cidade dos Estados Unidos. Em 2020, 713 pessoas morreram de overdose acidental de drogas, um aumento de 61% em relação a 2019. As mortes por overdose em São Francisco aumentaram de 11 por 100.000 pessoas em 1985 para 81 por 100.000 em 2020, um aumento de mais de sete vezes. Hoje, as overdoses de drogas são a principal causa de morte de não idosos de São Francisco, respondendo por 29% das mortes de residentes com menos de 65 anos em 2019.

Nenhum Estado na América tomou medidas mais agressivas para reduzir a exposição do público a produtos químicos e ao fumo passivo do que a Califórnia. A Califórnia proibiu a venda de tabaco aromatizado, porque atrai crianças, e o uso de tabaco sem fumaça nos cinco estádios de beisebol profissionais do Estado. Proibiu o uso de cigarros eletrônicos em locais de trabalho governamentais e privados, restaurantes, bares e cassinos. São Francisco, no final de 2020, proibiu fumar cigarros em apartamentos. No outono de 2020, a Califórnia proibiu empresas de usar em cosméticos, xampus e outros produtos de cuidados pessoais 24 produtos químicos considerados perigosos.

E, no entanto, onde os governos de São Francisco, Califórnia e outras cidades e Estados progressistas enfatizam os perigos remotos de cosméticos, pesticidas e fumo passivo, eles minimizam os perigos imediatos das drogas pesadas, incluindo o fentanil. Os psiquiatras há muito alertam contra dar dinheiro aos sem-teto mentalmente doentes e viciados em drogas, e, no entanto, é isso que São Francisco, Los Angeles e outras cidades progressistas fazem.

Muitas pessoas em recuperação do vício dizem que teriam morrido se não fossem forçadas a aceitar o tratamento. “Eu não recomendo isso como uma maneira de organizar sua vida”, disse uma delas, “mas ser indiciado pelos federais funcionou para mim. Eu não teria feito isso sem eles. Eu não fui ao tratamento para ficar limpo. Fui fazer tratamento para sair da cadeia”. No entanto, a elite progressista insiste em sua política contrária ao tratamento forçado e também à prisão dos viciados e doentes mentais que ficam perambulando pelas ruas e colocando eles próprios e terceiros em risco.

Miami adotou uma política distinta, com muito mais sucesso. A cidade da Flórida reduziu sua população de sem-teto em 57%, de um pico de 8.258 em junho de 2001 para 3.560 em janeiro de 2020, adotando políticas semelhantes às usadas na Holanda. Miami acabou com as cenas de drogas ao ar livre, forneceu atendimento psiquiátrico gratuito e tratamento de drogas para os sem-teto e expandiu abrigos e moradias de apoio. “Se você rejeita completamente a criminalização, acaba com muitas pessoas com vícios morrendo nas ruas”, constatou um especialista.

No cerne desse problema está o movimento antimanicomial, a mentalidade libertária e o relativismo que rejeita o conceito de normalidade. Foi um democrata que deu andamento ao fechamento dos hospitais psiquiátricos. O presidente John F. Kennedy propôs e defendeu com sucesso uma reforma crucial de 1963 que exigia que o governo federal financiasse centros comunitários de saúde mental, mas deixasse para os Estados financiar hospitais psiquiátricos. Os democratas da Califórnia foram ativos nos esforços para fechar os hospitais psiquiátricos.

Enquanto cerca de 52 milhões de pessoas nos Estados Unidos sofrem de alguma doença mental, como ansiedade e depressão, pouco mais de 13 milhões de adultos sofrem de doenças mentais graves. A categoria inclui esquizofrenia, transtorno bipolar grave, transtornos de humor e pensamento. Estima-se conservadoramente que cerca de 121.000 pessoas mentalmente doentes vivam nas ruas americanas.

Pessoas com doenças mentais graves são mais propensas a ficar sem-teto, interagir com traficantes de drogas e ser estupradas, espancadas ou vitimizadas do que o público em geral. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, doenças mentais graves reduzem a expectativa de vida em 10 a 25 anos, principalmente devido a condições crônicas de saúde física, mas também por suicídio. Os doentes mentais têm até dez vezes mais chances de ser encarcerados do que hospitalizados.

Acampamento de sem-teto ao lado da autoestrada no centro de Los Angeles - Foto: Matt Gush/Shutterstock

As coisas muitas vezes terminam mal quando pessoas mentalmente doentes são forçadas a entrar no sistema de Justiça criminal. Um estudo estima que cerca de um quarto das pessoas baleadas e mortas pela polícia em qualquer ano nos EUA tem uma doença mental grave não tratada. Aqueles com uma doença mental grave não tratada têm, portanto, 16 vezes mais chances de ser mortos em um encontro com a polícia do que aqueles sem uma.

Parte do problema é que os pacientes fora das instituições param de tomar seus medicamentos, tornam-se psicóticos e acabam na rua. É semelhante ao processo de desfiliação que ocorre em pessoas que sofrem de dependência de drogas ou álcool. Alguns são mandados de volta para a prisão, que muitas vezes é a única maneira de os doentes mentais graves obterem os cuidados médicos de que precisam.

O argumento libertário, defendido pelo psiquiatra Thomas Szasz, alega que o Estado não tem o direito de intervir se o indivíduo não praticar nenhum ato de agressão contra terceiros. Isso alimentou a visão de entidades como a ACLU, que defendem a “liberdade civil” dos doentes mentais. É como se colocassem sua falsa liberdade acima de sua própria vida! O movimento ganhou força com o livro publicado em 1965 na América por Foucault. Em Madness and Civilization, o filósofo francês atacou como opressão qualquer tentativa de considerar alguém normal ou louco, e como violência qualquer tentativa de tratamento forçado.

Foucault argumentou que o tratamento supostamente humanista do louco como portador de doença mental era, na verdade, uma forma mais insidiosa de controle social. Não restam dúvidas de que havia muito abuso, que famílias enviavam parentes para manicômios para fugir da vergonha de algum comportamento tido como antissocial ou pecaminoso e que nessas instituições rolava muito absurdo nos tratamentos radicais. Mas o abuso não deve tolher o uso. O resultado foi um movimento sem precedentes contra a psiquiatria em geral, e os doentes mentais ficaram largados à própria sorte, incapazes de escolher racionalmente pelo tratamento necessário.

“Esses loucos são tão intratáveis ​​apenas porque foram privados de ar e liberdade”, alegava a visão romântica que passou a glamorizar a loucura. A própria existência da loucura passou a ser questionada. Mas isso é insano. Alguém com demência, com Alzheimer grave, viraria sem-teto se não tivesse algum parente por perto para tratar. Não temos nenhum problema em dizer aos nossos familiares dementes: “Você precisa ir para a assistência domiciliar e tomar este remédio”. E, eventualmente, eles o fazem. Por que isso é diferente de uma doença psiquiátrica? “Comecei a partir de uma perspectiva de libertário civil”, disse um especialista. “Mas, no final das contas, não quero ver as pessoas morrerem com seus direitos. Essa não é a solução.”

Leia também “O caminho aristotélico”

Rodrigo Constantino, colunista - Revista Oeste


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

De saída do TSE, Barroso participa de evento nos EUA sobre como se livrar de um presidente

Revista Oeste

Esta semana, o ministro Edson Fachin assumirá a presidência da Corte Eleitoral

Neste sábado, 19, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso participa de evento promovido por uma organização estudantil da Faculdade de Direito da Universidade do Texas voltada ao estudo de legislação internacional.
O ministro do STF Luís Roberto Barroso | Foto: Carlos Moura/SCO/STF
O ministro do STF Luís Roberto Barroso  Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Chamado Ditching a President (algo como “Livrando-se de um presidente”, em tradução livre), o seminário terá como tema o arranjo constitucional do Poder Executivo na América Latina, segundo informa a Veja.

Além do discurso de abertura de Barroso, também falarão no evento do Texas International Law Journal professores e pesquisadores de universidades de Nova Iorque, Chicago, Califórnia e Texas.

Despedida do TSE
Nesta semana, Barroso fez seu discurso de despedida à frente da presidência do Tribunal Superior Eleitoral. O ministro voltou a criticar a proposta de voto auditável, derrotada na Câmara dos Deputados, e disse que a “democracia e as instituições brasileiras passaram por ameaças” tais como “o desfile de tanques de guerra na Praça dos Três Poderes, com claros propósitos intimidatórios, e a ordem para que caças da Força Aérea Brasileira sobrevoassem a mesma praça, com a finalidade de quebrar as vidraças do STF, em ameaça a seus integrantes.”

Na próxima terça-feira, 22, os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes serão empossados, respectivamente, presidente e vice-presidente da Corte Eleitoral.

Na Edição 100 da Revista Oeste, artigo de Augusto Nunes mostra que os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso comandam no STF “o mais feroz” partido de oposição a Jair Bolsonaro.

Leia um trecho:

“De volta aos barulhos de setembro, Barroso espancou impiedosamente a verdade. As afrontas à democracia, garantiu, incluíram “o desfile de tanques de guerra na Praça dos Três Poderes, com claros propósitos intimidatórios, e a ordem para que caças da Força Aérea Brasileira sobrevoassem a mesma praça, com a finalidade de quebrar as vidraças do STF, em ameaça a seus integrantes.” Se nenhuma vidraça foi sequer arranhada, se ninguém viu caças voando a poucos metros do solo, se nem mesmo o PT ousou encampar o besteirol, em que se baseava o orador para formular uma acusação de tal magnitude? Na história que lhe contara Raul Jungmann, ex-deputado federal e ex-ministro da Defesa. Jungmann tem tanto acesso a informações de tal calibre quanto o caçula dos porteiros do Palácio do Planalto. Mas os limites estabelecidos por lei são invisíveis aos olhos do trio que juntou um dissimulado, um prepotente e um ególatra.”

“O prepotente, o dissimulado e o ególatra”, artigo de Augusto Nunes publicado na Edição 100 da Revista Oeste

 Revista Oeste


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Os repasses milionários de George Soros - Revista Oeste

Gabriel de Arruda Castro
 
Um levantamento exclusivo feito por Oeste mostra que, em 2020, mais de 100 organizações brasileiras (ou estrangeiras com projetos no Brasil) receberam dinheiro da Fundação Open Society

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

O medo do Dr. Fauci - Revista Oeste

Rodrigo Constantino

Se a ameaça nazista se desse hoje, temo pela reação ocidental: não faltariam lideranças recomendando o “apaziguamento” com o inimigo

Doutor Anthony Fauci | Foto: Aaron Clamage/Milken Institute
Doutor Anthony Fauci | Foto: Aaron Clamage/Milken Institute

Condição necessária para isso foi a coragem de enfrentar riscos. Imagina o nosso antepassado apavorado diante de feras terríveis, e enclausurado numa caverna até o perigo passar. Não estaríamos aqui refletindo sobre a vida. Ou seja, parte inexorável de nossas conquistas foi a tolerância ao risco da morte. Não quer dizer comportamento suicida, irresponsável ou imprudente, mas, sim, um ato de volição para desafiar todas as ameaças que a pura existência num planeta hostil traz.

Ocorre que, por diversos motivos, estamos nos tornando mais medrosos. O sucesso planta algumas sementes do fracasso, torna as próximas gerações mais “suaves”, como “flocos de neve”. Se a ameaça nazista se desse hoje, com Hitler liderando sua turba de fanáticos, temo pela reação ocidental: não faltariam lideranças recomendando o “apaziguamento” com o inimigo, entregando nossas liberdades de bandeja. Não se faz mais Churchill como antigamente.

Essa pandemia de covid-19 veio comprovar isso. Países ocidentais resolveram espalhar medo e oferecer soluções “mágicas”, ainda que draconianas e autoritárias. O controle social passou a ser enorme, tudo em nome da saúde, da proteção à vida. Os mais acovardados nem pestanejam na hora de delegar cada decisão aos “especialistas”. Foi assim que o Dr. Fauci virou uma celebridade mundial, a “voz da ciência”, acumulando um poder inimaginável para reis medievais. Dr. Fauci soube explorar muito bem o medo dos outros.

E não é algo novo. Era o mesmo Dr. Fauci o responsável pelo combate ao HIV, vírus da aids. E não faltam críticos de que lá, assim como agora, o médico ajudou a espalhar um medo exagerado que afetou a vida de milhões de pessoas. Ele foi “cobrado” recentemente numa das centenas de entrevistas que tem concedido — haja tempo para tanto holofote! — à CNN, mas o apresentador não foi lá tão duro assim. Ele leu a denúncia do senador republicano Ron Johnson, de que Fauci espalhou pânico desnecessário antes e agora, e logo depois ridicularizou a crítica, levantando a bola e cedendo a palavra ao entrevistado. Fauci, então, disse: “Como responder a algo tão absurdo assim?”

Mencionar isso é “politicamente incorreto”, mas a ciência e o vírus não ligam para seus sentimentos

Bem, talvez… respondendo? Mas Fauci adotou outra estratégia: “Exagerar a aids? Matou mais de 750.000 americanos e 36 milhões de pessoas em todo o mundo. Como você exagera isso? Exagerar a covid? Já matou 780.000 americanos e mais de 5 milhões de pessoas em todo o mundo. Então, eu não tenho nenhuma ideia do que ele está falando”. Excelente resposta, caso a pergunta tivesse sido outra. O senador nunca alegou que morreu pouca gente com aids ou covid, e sim que o Dr. Fauci criou um pânico geral bastante desproporcional, ainda mais sabendo-se que ambos afetavam de maneira bem desigual grupos de risco específicos.

Ann Coulter escreveu uma coluna no Townhall detonando a postura de Fauci, e lembrando que acidentes de carro já mataram mais de 3,6 milhões de americanos e centenas de milhões no mundo todo, e que as propostas do “especialista” seriam análogas a recomendar que todos dirigissem de olhos vendados — ou nunca mais pegassem num volante. Idosos e obesos correm um risco infinitamente maior do que jovens saudáveis com a covid, mas Fauci e sua trupe mentiram, trataram todos basicamente da mesma forma, assim como Fauci mentiu sobre a aids ser um risco equivalente para heterossexuais, muito tempo depois de ficar claro que era quase inteiramente um problema para gays e usuários de drogas intravenosas.

Mencionar isso hoje já é “politicamente incorreto”, mas a ciência e o vírus não ligam para seus sentimentos. “Em vez de dedicar recursos maciços ao fechamento de casas de banho e pontos de drogas para impedir a disseminação da aids, e proteger os americanos mais velhos no caso do covid, Fauci afirmou repetidamente que todos estavam em risco”, acusa Coulter. Ela continua: “Parece que Fauci acredita em ‘ciência’ — exceto quando precisa aterrorizar os heterossexuais para não estigmatizar os gays, ou amedrontar toda a população para não estigmatizar os idosos e obesos”.

A aids apareceu pela primeira vez em 1981, em comunidades gays em Nova Iorque, Los Angeles e São Francisco. Dois anos depois, 72% dos casos envolviam gays e 90% das vítimas não homossexuais da aids eram usuários de drogas intravenosas
A maior parte do restante era de crianças nascidas de mães infectadas com aids ou vítimas de transfusões de sangue contaminadas com aids. 
 Esse não era um grande segredo. De acordo com o CDC, em junho de 1983, de 1.552 vítimas de aids, apenas 37 não eram gays, usuários de drogas ou hemofílicos. Médicos da linha de frente aconselhavam que não havia motivo para tanto pânico, mas Fauci estava lá alarmando o mundo todo. Em 1983, ele disse: “Com o passar dos meses, vemos mais e mais grupos… A aids está saindo de limites epidemiológicos bem definidos”.
 
Em 1985 — quatro anos após o aparecimento da aids —, 73% dos casos eram em homens gays, 17% em usuários de drogas intravenosas, 3% em haitianos, 2,2% naqueles que receberam sangue e 1% em parceiros sexuais de pacientes com aids
Menos de 4% não se enquadravam em nenhuma dessas categorias. 
Com zero casos provados de transmissão heterossexual, em fevereiro de 1985,  Fauci alegou estar preocupado com esse risco. Numa fala de 1987, ele chegou a afirmar que o vírus podia ser transmitido pela saliva num simples beijo.

Hoje, segundo Coulter, Fauci está fazendo exatamente a mesma coisa com a covid, tratando os adolescentes como se eles enfrentassem perigo tanto quanto pessoas na faixa dos 70 anos, apesar de estas terem uma chance 300 vezes maior de morrer de covid do que menores de 20 anos. Para essa faixa etária, as chances de morrer de covid são menores do que o risco de morrer de insolação ao longo de suas vidas inteiras. Mesmo para aqueles na casa dos 30 anos, as chances são quase as mesmas que o risco de morrer engasgado.

Ann Coulter conclui que, se Fauci fosse entrevistado por um jornalista sério, ele bem que poderia explicar por que sua ideia de “ciência” é evitar que certos grupos se sintam estigmatizados, e não salvar vidas ou falar a verdade.

Leia também “Correlação e causalidade”


Rodrigo Constantino, colunista - Revista Oeste


sábado, 23 de outubro de 2021

OS CAÇA-FANTASMAS - Percival Puggina

 O filme Caça-Fantasmas (Ghostbusters) conta a história de três sujeitos que montam em Nova Iorque um pequeno negócio dedicado a localizar assombrações e livrar seus clientes de tais incômodos. Envolvendo fantasia, ficção científica e comédia, tornou-se o grande sucesso de bilheteria no ano de 1984.

Tem sido impossível não lembrar dos ghostbusters quando acompanho, com profundo pesar, o autoritarismo mediante o qual o topo do poder judiciário brasileiro assedia e persegue seus próprios fantasmas de modo tenaz e impiedoso, intervindo na liberdade de expressão de um modo que não se via desde tempos remotos.

Como soa pouco convincente uma defesa da democracia que cerceia liberdades, que censura opiniões, que impõe a comunicadores medidas raramente adotadas e mantidas contra traficantes! Os excelentes atores do filme sabiam que interpretavam um papel ficcional. E eram muito simpáticos.

O Brasil vive um período de instabilidade. Mas se existe algo estável é esse regime autorrotulado como democrático, no qual os poderes de Estadoestáveis como eles só! - se encarregam de promover os trancos e barrancos que fazem tremer o solo sobre o qual nós, cidadãos, queremos andar e levar nossas vidas. No regime, enfermo de nascença, ninguém tasca! As necessárias reformas que o poderiam estabilizar são inconvenientes àqueles a quem caberia votá-las. Tudo é feito em viés oposto, para preservar a ordem institucional que lhes convém e ampliar os próprios privilégios.

Leitura que fiz no site Poder 360º sobre a decisão que colocou Allan dos Santos na lista vermelha da Interpol me pôs diante de um trecho em que o ministro Alexandre de Moraes diz ser a prisão preventiva a “única medida apta a garantir a ordem pública”. Será que estamos, leitor, perante um caso de desordem pública ... imperceptível? Pois é. Do que li, colhi a impressão de haver, no Brasil, um lado que “reforça o discurso de polarização”, “gera animosidade dentro da sociedade brasileira” e “promove o descrédito dos poderes da república” (haveria tanto a dizer, em mais espaço, sobre cada uma dessas frases!).

Assim como considero pífia a inclusão de tais afirmações na lista das acusações contra Allan dos Santos, eu as percebo compatíveis com o atual modo de agir e reagir do STF.

Lembro, por fim, que nenhuma instituição se confunde com “a” democracia e que os três poderes de Estado são poderes “da” democracia. Esta, assim como tem uma dimensão técnica, que envolve seus poderes e sua organização, tem uma não menos significativa dimensão ética, na qual se incluem a adesão, tão consensual quanto possível, a valores em cuja ausência ela se desfigura e, até mesmo, muda de nome. Entre eles a liberdade de opinião.

Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.


quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Os neomaoístas estão decididos a destruir qualquer pessoA - Revista OESTE

Brendan O'Neill, da Spiked

O fascismo cultural fugiu do controle

Os neomaoistas do século 21 estão decididos a destruir qualquer pessoa ou ideia que consideram 'problemáticas'

É o que afirma Brendan O’Neill, em artigo publicado na Edição 82 Revista Oeste
 
Imagine ter o infortúnio de passar não por uma, mas por duas revoluções culturais. Por duas vezes estar em meio a um espasmo autoritário em que jovens intolerantes com os olhos arregalados caçam pensadores “incorretos” para envergonhar e punir. Essa foi a infeliz experiência de Bright Sheng. Ele viveu a Revolução Cultural original na China de Mao Tsé-tung quando era criança, e agora, adulto, entrou na mira dos neomaoistas, que estão tumultuando as universidades americanas. Esses intolerantes da discordância estão loucos para destruir aqueles que consideram “problemáticos”, como se fossem a Guarda Vermelha da China nos anos 1960.
 
Bright Sheng | Foto: Montagem/Shutterstock
Bright Sheng | Foto: Montagem/Shutterstock

Sheng é professor de música na Universidade de Michigan — pianista e compositor de sucesso. Suas obras foram executadas por todos os grandes grupos de música clássica, da Filarmônica de Nova Iorque à Orquestra Nacional Sinfônica da China. Mas essas conquistas estelares não oferecem proteção contra a turba woke. O crime de Sheng, aos olhos deles? Ele mostrou aos alunos o filme Otelo, de Shakespeare (de 1965), em que Laurence Olivier notória — e, agora, repreensivelmente — fez uso do blackface para interpretar o mouro. Humilhem-no! Coloquem uma placa pendurada em seu pescoço! Ele errou e precisa aprender a lição.

A reação ao crime cultural de Sheng foi imediata e implacável. O motivo por que ele mostrou o filme para os alunos de graduação da sua disciplina de composição obviamente não era provocar nem ofender com a imagem de um dos atores mais famosos do século 20 usando maquiagem para fingir ter a pele negra. Não, ele estava ensinando a relação entre a composição musical e as obras de Shakespeare — uma proposta totalmente legítima e, sem dúvida, esclarecedora do ponto de vista educacional. Mas os irascíveis jovens de classe média alta do campus moderno tiveram uma opinião diferente. “Fiquei chocada”, declarou uma aluna ao Michigan Daily. Nossas aulas “deveriam ser um espaço seguro”, disse ela. No entanto, foi Laurence Olivier coberto de graxa de sapato que invadiu suas vidas protegidas e lhes deu pesadelos. O horror.

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Sheng foi atacado tanto por suas desculpas quanto por ter mostrado o filme Otelo. Como a Newsweek afirmou, de forma bastante eufemística, “a maneira como ele formulou [suas] desculpas aumentou mais a polêmica”. O que isso significa é que um bando de neomacartistas, ofendidos com a temeridade que Sheng cometeu ao se defender das insinuações de racismo, escreveu uma carta exigindo que ele fosse retirado do curso de composição. Dezoito alunos do curso de composição, 15 de pós-graduação e nove funcionários da universidade escreveram para o reitor de música exigindo que Sheng fosse removido. Segundo eles, o curso havia sido maculado pelo blackface de Laurence Olivier. Então Sheng se retirou.

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O tratamento que Sheng recebeu traz à mente outro episódio sombrio da história moderna, no qual a Guarda Vermelha, e não a “Guarda Woke“, assumiu a tarefa de punir aqueles que mantinham ideias “obsoletas”. Sheng viveu a Revolução Cultural. Nasceu em Xangai em 1955. A Guarda Vermelha confiscou o piano de sua família por considerá-lo um luxo “burguês”. Esses guerreiros maoistas roubaram do jovem Sheng os meios de tocar música; os neomaoistas da cruzada politicamente correta dos dias de hoje roubaram dele um de seus meios de ensinar música. Em ambas as situações, ele foi punido por filisteus rudes e censuradores que se recusam a tolerar quaisquer práticas ou ideias que considerem antiquadas ou “problemáticas”.

Assustadoramente, um dos alunos da Universidade do Michigan afirmou que a renúncia de Sheng era o “mínimo” que ele podia fazer. 
O que mais eles querem? 
Mandá-lo para a reeducação? 
Raspar sua cabeça e fazê-lo desfilar em praça pública? 
Pendurar uma confissão em seu pescoço, em que ele admite ter pecado contra a nova moral?

Dizem que a cultura do cancelamento não existe. Ela existe, e tem ecos sombrios da Revolução Cultural, que foi uma guerra enlouquecida contra os “Quatro Velhos” — ideias velhas, velhas culturas, velhos costumes e velhos hábitos. Da mesma forma, a “Revolução Woke de hoje deseja acabar com todas as coisas “obsoletas”, sejam estátuas de figuras históricas que tinham ideias diferentes das nossas, programas de comédia que façam piadas de mau gosto e não politicamente corretas, grandes obras da literatura que contenham termos racistas (incluindo obras expressamente antirracistas, como To Kill a Mockingbird, ou O Sol É para Todos) e qualquer um que se apegue à crença aparentemente antiquada de que existe um sexo biológico. Vamos punir e eliminar todos eles. Esse é o maoismo do século 21, e qualquer instituição de ensino ou cultural que abrace isso está assinando a própria sentença de morte. 

Leia também “Estão queimando livros no Canadá”

 Brendan O’Neill é o jornalista-chefe de política da Spiked

Revista Oeste - MATÉRIA COMPLETA 


quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Marco das ferrovias pode gerar R$ 80 bilhões em investimentos, afirma ministro da Infraestrutura

Revista Oeste

Medida Provisória foi aprovada pelo Senado na terça-feira e segue agora para a Câmara dos Deputados


 
Investimentos podem gerar a construção de para a construção de 5,3 mil quilômetros de linhas férreas

 Investimentos podem gerar a construção de para a construção de 5,3 mil quilômetros de linhas férreas | Foto: Divulgação/PPI

O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, afirmou na quarta-feira 6 que a aprovação do marco das ferrovias pode gerar R$ 80 bilhões em investimentos para a construção de 5,3 mil quilômetros de linhas férreas no país. Aprovado pelo Senado na terça-feira 5, a Medida Provisória (MP) segue agora para a Câmara dos Deputados.

“Ontem nós tivemos a aprovação no Senado do marco ferroviário”, disse o ministro. “Isso abre uma nova perspectiva para a infraestrutura brasileira. Já são 14 pedidos de autorização que podem representar até 5.300 km de construção e mais de R$ 80 bilhões em investimento”.

Originalmente, o projeto havia sido lançado em 2018 pelo senador licenciado José Serra (PSDB-SP). Ele dispensa a necessidade de processo concorrencial para que uma empresa possa empreender operação dos trilhos. Atualmente, a administração de ferrovias pelo setor privado precisa passar por uma licitação — modalidade que continuará existindo e a escolha do modelo de negócio.

Como ele ficou parado na Casa, o presidente Jair Bolsonaro lançou a MP com praticamente mesmo conteúdo em agosto. O ato torna o texto válido a partir da data de sua publicação no Diário Oficial e o Congresso tem até 180 dias para analisá-lo. Com isso, a proposta entrou para a pauta dos parlamentares.

Artur Piva -  Revista Oeste

 

terça-feira, 10 de agosto de 2021

MINISTRO BARROSO É UM ALERTA À PRUDÊNCIA - Percival Puggina

Durante duas décadas, várias vezes por semana, em programas de rádio e de TV com grande audiência em Porto Alegre, tive a feliz oportunidade de debater sobre temas políticos, sociais e econômicos com representantes do pensamento de esquerda no Rio Grande do Sul. O esquema dos programas era sempre o mesmo, fosse onde fosse: dois de cada lado da mesa, um assunto em pauta, argumentos e refutações correndo soltos.

Lamento dizer que foram anos nos quais me defrontei com muita desonestidade intelectual, deliberada corrupção da verdade, e muito aprendi sobre o que acontece com a Razão quando o poder está em jogo e a ideologia no comando. Sentaram-se no lado oposto deputados estaduais e federais, senadores, ex-governadores, professores de História e Ciência Política (muitos!) e raros foram os que, na hora de convencer o ouvinte ou o telespectador, se mantiveram fieis à verdade e à Razão.

Essa minuciosa observação e respectiva constatação me causaram, então, justificado receio sobre o que aconteceria com o poder quando confiado a pessoas de determinado perfil. Não deu outra. Os anos seguintes, como ficou sabido, viriam ratificar minhas suspeitas.

Não faço este relato por vanglória, mas com o intuito bem prático de afirmar que o ministro Barroso é uma síntese de todas aquelas maliciosas competências que desfilaram diante de mim e com as quais me antagonizei durante tanto tempo. São os mesmos maus tratos à verdade, a mesma cuidadosa inversão na relação entre causas e consequências, a mesma repulsa à divergência, o mesmo autoritarismo, a mesma capacidade de ocultar sentimentos e a mesma composição de narrativas sobre acontecimentos que as desmontam quando bem conhecidos.

Mesmo assim, duvido que algum daqueles meus antigos oponentes em debates fosse capaz de afirmar que um hacker permaneceu meses dentro dos computadores do TSE, tomando chá, aproveitando a paisagem e curtindo ar condicionado, sem causar dano significativo de qualquer natureza.

Che Guevara, numa entrevista ao London Daily Worker, referindo-se ao episódio dos misseis soviéticos em Cuba (1962), declarou: “Se os foguetes tivessem permanecido em Cuba, os teríamos usado contra o coração mesmo dos EUA, incluindo Nova Iorque. (...) Numa luta mortal entre dois sistemas temos que ganhar a vitória final. Devemos andar na senda da libertação, mesmo que à custa de milhões de vítimas atômicas”.

Essa frieza de alguém reverenciado como inspirador e mestre pela esquerda mundial está presente na atitude do ministro Barroso, que pouco se importa com esticar todas as cordas ao ponto de ruptura, criando uma seriíssima crise institucional, para não ceder posição. E ele não é um solitário no perfil daquela corte.

O perigo que ronda o Brasil não é causado pelos conservadores que têm a manifesta rejeição do ministro, mas pela recusa da esquerda, até bem pouco hegemônica, de conviver com a divergência. Que o exemplo proporcionado pelo ministro chame a nação à prudência. Os ingênuos, repito-me, estão na cadeia alimentar dos mal intencionados.É importante saber a quem se dá a chave.

Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Ativista trans estupra mulher, confessa e continua nos holofotes. Qual o limite? - Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

O respeito à dignidade humana é a linha divisória entre militância e radicalismo autoritário.

Muita gente nos movimentos identitários está surpresa com a crueldade de algumas pessoas que usam a causa para justificar a própria perversidade. Quem já foi alvo dos movimentos não vê a menor surpresa. Todo grupo que se julga moralmente superior tende a criar tiranetes, lideranças cruéis que jamais revêem atitudes ou posicionamentos porque se consideram necessariamente boas. A era da hiperconectividade, a partir de 2010, reforçou esse processo em que falar é mais importante que as atitudes e frutos.

Minha dúvida ainda é qual o limite que um ativista precisa cruzar para que seu grupo o reconheça como radical ou agressivo?
Confessar um estupro com orgulho
 supostamente seria suficiente para alguém deixar de ser linha de frente de movimentos que lutam por paz e igualdade. Não foi. É uma história real, ocorrida de 2016 a 2018 nos Estados Unidos.

Trata-se de um drama humano tratado à luz das teorias identitárias e não da ciência. Uma pessoa que passou por abusos terríveis na infância tenta superar seus traumas negando a própria individualidade. Coloca na identidade de grupo, negra e trans, o motivo e a solução de todos os problemas individuais. Só que esses problemas e suas potenciais consequências continuam latentes e vão fazer uma reviravolta perversa quando a ativista chega ao topo do poder.

Cherno Biko chegou a ser retratada pela revista Time como uma das vozes mais importantes em defesa de mulheres e trans negras vítimas de violência. Ela é co-fundadora do movimento Black Lives Matter, que surgiu em 2014. A história de vida da ativista trans é bem pesada. Ela diz ter sido estuprada por um familiar desde os três anos de idade. A violência persistiu durante mais seis anos. Como muitas vítimas de estupro na infância, ela conta ter tentado sufocar essas memórias. Foi aí que encontrou o ativismo.

Abraçou a causa da violência contra mulheres negras e trans, começou a se destacar e ganhou muito espaço na mídia. O episódio 115 da série Glee, Transitioning, é sobre ela. Esteve em vários documentários importantes, inclusive um que ganhou o Emmy. Desfilou por alguns dos programas de TV mais importantes dos Estados Unidos e acabou fazendo do ativismo uma profissão. Palestrante e consultora, focava principalmente na violência sexual contra mulheres.

Até então, ninguém sabia que a ativista trans Cherno Biko jamais havia tido uma relação sexual consentida, havia sido apenas estuprada. Ela resolveu escrever um texto público com um desabafo em 24 de julho de 2016. Neste mesmo texto, contou que sua primeira experiência sexual consentida foi estuprando um homem trans. Esperava ter filhos negros e não binários. Instalou-se o escândalo, mas não acabou a militância.

No campo progressista, qualquer pergunta sobre transexualidade rende imediatamente o cancelamento por motivo de transfobia. Disforia de gênero existe, é algo que a ciência explica e precisamos acolher essas pessoas na sociedade. Ocorre que isso é muito diferente de, por exemplo, chamar de transfóbicos os homens e mulheres lésbicas que não querem ter relações sexuais com pessoas que tenham órgão sexual masculino. Vira algo místico, dissociado da ciência. Sexualidade humana é desejo e as pessoas têm diversas preferências, não pode se impor uma preferência a alguém.

Estávamos, no caso concreto, diante de uma confissão pública de estupro com o objetivo de fazer bebês negros e não binários, algo extremamente grave. Só que essa pessoa tinha, além da fama e poder, uma carta na manga: quem a contraria é cancelado imediatamente pela militância. No caso falamos de militância trans e da fundadora do Black Lives Matter. Se você acha que, a partir desse momento, passou a haver um caso de polícia, engana-se. A ativista trans continuou brilhando.

Como a pessoa estuprada nasceu mulher, mas dizia se identificar como homem branco e era parte do movimento identitário, não havia dado queixa do estupro por concluir que era culpada. Depois que o caso veio à tona, declarou que adquiriu os privilégios do patriarcado ao se tornar homem, tendo superioridade física e anatômica quando se compara com Cherno Biko. Surgiram outras denúncias de estupro. No meio dessa discussão pública, a ativista foi chamada para discursar na Marcha das Mulheres em Washington.

Várias organizações de defesa das mulheres e organizações conservadoras questionaram duramente a irresponsabilidade de deixar alguém que confessou publicamente estupro e estava sendo acusada por outros à frente de luta contra a violência sexual. Não estivéssemos vivendo uma distopia, seria óbvio. Aqui não se trata nem de apurar os fatos para ver se a pessoa realmente tinha feito isso, ela própria havia confessado. Disse ainda que não via como estupro o estupro que cometeu.

“À medida que comecei a aprender mais sobre consentimento, descobri que, segundo a lei [do Estado de Nova York], é impossível para uma pessoa mentalmente instável dar consentimento. Lutei com essa ideia porque ela não deixa espaço para vários graus de doença mental ou para pessoas que sofrem de doença mental, mas nunca foram diagnosticadas como eu.”, declarou a ativista Cherno Biko. Foi questão de dias para que passasse a vítima do caso, mostrando como o racismo, a transfobia e o capacitismo faziam com que o julgamento fosse mais pesado que de um homem branco cis. O mais impressionante é que colou.

Após a confissão pública de estupro, além de ser convidada para falar na Marcha das Mulheres de Washington, a ativista continuava sendo membro do Conselho Consultivo de Mulheres Jovens da cidade de Nova Iorque. A atuação da militância trans começava a ter um problema real ao distribuir justiça por critério identitário, sem sequer levar em conta as ações das pessoas. Na cidade, uma lei pune com multa de até US$ 250 mil quem se referir de maneira pejorativa a uma pessoa trans.

Essa lei aparentemente bem intencionada acabou inibindo o registro de outros estupros, aqueles que não foram confessados pela ativista trans. Havia a possibilidade de que ela considerasse pejorativa uma referência ao próprio órgão sexual pelo nome, o que seria inevitável para prestar uma queixa dessa natureza. Assim, ela poderia processar a vítima por nomear seu órgão sexual na denúncia de estupro, com possibilidade de receber uma polpuda indenização.

Na época, a ativista trans Cherno Biko era uma das estrelas do debate nacional sobre o uso de banheiros femininos nas escolas, banheiros únicos e a possibilidade de manter trans em presídios femininos. E continuou sendo referência mesmo depois de confessar publicamente um estupro. Se isso não foi suficiente para a militância identitária repensar seus métodos, eu não sei o que seria. Espero que algo traga um despertar.

Diante desse tipo de aberração, muitas pessoas tendem a focar no conteúdo. Por não verem credibilidade em quem age diferente do que prega, muitos invalidam a causa em si. É um erro grotesco dizer que não há pessoas trans ou que o racismo já foi superado quando vemos casos do tipo. Pode ser tentador, mas é incorreto pensar que todas as pessoas envolvidas nessas causas se comportam assim. Há grupos sectários reunidos em torno de diversos temas e o problema não está no tema em si, mas no contexto.

Sempre houve radicais e intolerantes em todo tipo de grupo, a diferença é o efeito que eles causam em uma sociedade hiperconectada como ficou a nossa. A militância que parte de ideias místicas tem grande probabilidade de se converter em um grupo autoritário. Na esquerda há o conceito de Woke, aquele grupo que já passou por um "acordar" para as estruturas injustas. Na direita há o conceito de "Red Pill", aqueles que enxergam tramas porque estão fora da Matrix. É uma forma concreta de negar dignidade a quem não faz parte do grupo.

A linha de corte entre grupos democráticos e autoritários é o respeito à dignidade do outro, principalmente do adversário. Um estupro é o exemplo lapidar de desconsideração da dignidade alheia. Muitos grupos cunham termos próprios para operacionalizar esse processo. Quem fala aqueles termos é ouvido, já que é Woke ou Redpillado. Quem não domina o vocabulário é ouvido só para que se ache um erro a corrigir naquela fala ou postura, ainda que imaginário.

Muito tempo atrás, alguém deu a dica de olhar os frutos. Pouco importa o que a pessoa diz, como aparece, quem fala dela. Olhem os frutos. É o contexto, não o conteúdo. Gostamos de ter razão, criamos afeição para quem diz exatamente o que pensamos. Como hoje há muitos jeitos de falar o tempo todo, multiplicam-se as oportunidades para liderar um grupo em torno de uma causa. Temos colhido diversos tipos de frutos envenenados. Não é possível continuar dando espaço de liderança a pessoas que deixam um rastro de destruição por onde passam. Atualmente, isso é um esporte mundial.

Madeleine Lacsko, colunista - Gazeta do Povo - VOZES