Revista Oeste
O STF não apenas dispensou a si próprio de obedecer à Constituição. Autorizou-se, também, a ignorar o raciocínio lógico, as noções básicas da moral e as posições que os seus próprios ministros já tomaram
Foto oficial dos ministros do STF em 3 de agosto de 2023 | Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
Desde o primeiro minuto de sua prisão, no dia 3 de maio,
por ordem do ministro Alexandre de Moraes, ficou claro que o tenente-coronel
Mauro Cid estava preso por um único motivo: fazer algum tipo de acusação
criminal que pudesse atingir o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Qual seria o
crime? Qualquer um. Enquanto não viesse com uma confissão capaz de satisfazer a
Polícia Federal e o STF, ficaria preso.
Na hora em que falasse seria solto —
com tornozeleira e toda a caixa de ferramentas destinada a reprimir “atos
antidemocráticos”, mas solto.
Foi exatamente o que aconteceu com ele. Cid,
segundo o STF, a polícia e a maior parte da mídia, era suspeito de tudo.
Suspeito de participar de “milícias digitais”.
Suspeito de falsificar
certificados de vacina.
Suspeito de produzir as “minutas do golpe”.
Suspeito de
vender joias nos Estados Unidos.
Alguma coisa teria de sair daí — qualquer
coisa, desde que as autoridades achassem que serviria para ser usada contra
Bolsonaro. Acreditam ter encontrado, e o oficial foi solto depois de quatro
meses e meio na prisão.
O caso todo do tenente-coronel Cid é uma fotografia em alta
resolução do Brasil de hoje. Em nenhum país com um sistema judicial minimamente
sério seria permitido fazer o que fizeram com ele — foi tudo ilegal até agora,
como é ilegal o tratamento dado a mais de mil brasileiros, quase todos
anônimos, que estão na lista negra de inimigos políticos do STF.
(...)
O Supremo não apenas dispensou a si próprio de obedecer à
Constituição e as demais leis em vigor no Brasil. Autorizou-se, também, a
ignorar o raciocínio lógico, as noções básicas da moral e as posições que os
seus próprios ministros já tomaram.
É uma jurisprudência ao contrário: em vez
de valer o que os ministros já decidiram e pensaram no passado, ou mesmo meia
hora atrás, vale o que eles querem no momento em que estão decidindo.
Já
decidiram, por exemplo, que a lei aprovada pelo Congresso tornando voluntário o
pagamento do Imposto Sindical era constitucional.
Acabam de decidir o oposto e
anular a decisão do Parlamento — e por aí se vai.
O caso do tenente-coronel é
exemplar. Ele foi solto depois de ter aceitado uma “delação premiada”, proposta
pela PF e validada pelo STF.
Mas a “delação premiada” não era um horror, quando
provava a corrupção do governo Lula nos tempos da Lava Jato? Era, até outro
dia. “É muito grave para a Justiça esse tipo de vexame… As pessoas só eram
soltas depois de confessarem… Isso é uma vergonha… Coisa de pervertidos…
Claramente se tratava de prática de tortura.”
Quem disse isso, no começo do
último mês de maio, foi o ministro Gilmar Mendes — que, por sinal, já chamou o
governo Lula de “cleptocracia”, ou governo de ladrões, em 2015.
(...)
Esse mesmo Toffoli, já que se chegou a ele, é um dos mais
produtivos especialistas em decisões que vão de um lado hoje e do lado contrário
amanhã. Nos tempos em que Lula e o PT estavam em desgraça, Toffoli era um
severo fiscal da corrupção entre a companheirada — apesar de ter sido nomeado
por Lula para o STF, mesmo depois de reprovado duas vezes no concurso para juiz
de direito e ter subido na vida como advogado do PT. Num certo momento, proibiu
que Lula saísse da cadeia para ir ao velório do irmão, onde queria fazer um
comício ao lado do caixão. Por essa, e por muitas outras, era considerado um
traidor pelo Sistema L — mas hoje, com Lula de novo no governo, voltou ao lugar
onde estava.
(...)
Toffoli, como o resto do STF, nunca achou nada de errado na
prisão de Lula, nas decisões da Lava Jato e nas confissões de culpa dos
corruptos. Agora ele anuncia uma das decisões mais prodigiosas desde a criação
da Justiça do Brasil, em 1549, com a nomeação do ouvidor-geral da Bahia:
declarou “nulas”, por um despacho, todas as provas contra a Odebrecht, a
empreiteira-símbolo da corrupção na primeira era Lula-PT.
Não faz nexo nenhum.
O presidente da empresa e outros executivos confessaram crimes. Fizeram, de
livre e espontânea vontade e com a plena assistência dos seus caríssimos
advogados, delações premiadas.
Devolveram R$ 2,7 bilhões em dinheiro roubado —
como disse o ministro Barroso, não dá para achar que isso é natural.
Também não
dá, menos ainda, para entender como pode ter havido o “maior erro judicial” da
história quando a Odebrecht e sua subsidiária Braskem foram condenadas pela
Justiça dos Estados Unidos a pagar US$ 3,5 bilhões de multa por terem
confessado que subornaram, com quase US$ 800 milhões, funcionários públicos em
12 países diferentes. Assinaram, então, uma confissão de culpa para não pagarem
mais ainda.
Toffoli diz que a condenação de Lula e as provas da Lava
Jato fizeram parte de um “golpe de Estado” etc. etc. etc. armado pela 14ª Vara
da Justiça Federal em Curitiba.
E o que a Justiça norte-americana teria a ver
com isso?
Também fez parte da conspiração descoberta pelo Supremo?
A Odebrecht
foi condenada em 2016 nos Estados Unidos; até hoje não deu um pio para
contestar os US$ 3,5 bilhões da sua multa. Se ela foi culpada lá, por que
Toffoli diz que é inocente aqui?
As provas da Justiça norte-americana também
seriam “imprestáveis”, como sustenta o ministro? E imprestáveis por quê?
Essa
história da anulação, como em geral acontece com as coisas erradas, acaba de
ficar ainda pior do que já era.
Uma das razões objetivas, segundo ele próprio,
para anular as provas, era a falta de um documento legal que permitisse o
acesso aos computadores do departamento onde a Odebrecht registrava a
movimentação das suas propinas. O Ministério da Justiça, consultado por
Toffoli, disse que não tinha encontrado esse documento em seus arquivos — um
acordo formal entre os MPs da Suíça e do Brasil, feito dentro de todas as
exigências da lei, para abrir os sistemas digitais do departamento de suborno
da empresa.
Agora, depois da decisão tomada, diz que achou — fez uma “pesquisa
complementar”, e o documento que não existia passou a existir.
Em português
claro, o Ministério deu uma informação falsa ao STF.
Temos um escândalo, então? Não, não temos — não há escândalos
no STF de hoje. Por que haveria? É o STF que faz, modifica e anula a lei no
Brasil — o que vale não é o que está escrito nos códigos, mas o que querem os
ministros. Nessa desordem criada por Toffoli, ele próprio pode baixar uma
portaria, ou coisa que o valha, decretando que não houve nada de errado — nem
da parte do STF nem da parte do Ministério da Justiça. Os dois disseram coisas
opostas, mas os dois estão certos. Vai encarar? Isso aí é a “legalidade
democrática do Estado de Direito”, e se você está achando ruim — bom, é melhor
tomar cuidado.
O inquérito do ministro Moraes para reprimir “atos golpistas”
continua aberto. A Polícia Federal do ministro Flávio Dino está a serviço da
“causa” de Lula, segundo ele mesmo disse outro dia.
O comandante do Exército
está pronto a pôr os tanques na rua para defender a “legalidade”.
Os ministros
estão cansados de saber disso tudo, há muito tempo.
Não estão interessados em
saber o que a lei diz ou não diz; não estão interessados na qualidade jurídica
das suas decisões, nem em seguir um raciocínio lógico, nem em admitir a
existência de fatos.
(...)
Talvez nada mostre com tanta clareza o estado de coma em
que vive hoje a alta Justiça brasileira quanto a proposta que o Ministério
Público fez para 1.156 indiciados no processo do “golpe de Estado”, com o aval
do STF
É realmente extraordinário que o Supremo, no mesmo momento
em que anula as provas de crimes confessos e documentados, e promove Lula à
função de mártir da democracia, tenha começado a condenar os primeiros réus da
baderna do dia 8 de janeiro em Brasília.
As condenações, é claro, são
indispensáveis.
Afinal, o STF transformou em “golpe de Estado” um quebra-quebra
de segunda categoria, e cada vez mais obscuro, com o objetivo político de
mostrar que manifestação de rua contra o governo pode acabar em cadeia. Tem
mais. A ministra Rosa Weber disse que a bagunça do dia 8 de janeiro, onde
ninguém levou sequer um tombo, foi um novo “Pearl Harbor” — o bombardeio aéreo
japonês que matou 2,4 mil pessoas no Havaí, em 1941, e fez os Estados Unidos
entrarem na Segunda Guerra Mundial.
É óbvio que num “golpe” de Estado, ainda
por cima com um “Pearl Harbor” junto, todos são culpados — se não fossem, como
explicar que ficaram oito meses e meio numa penitenciária?
Uma das lembranças
possíveis desse julgamento dos “atos golpistas” é o que acontecia nos
“Processos de Moscou” durante a ditadura soviética na Rússia. Ninguém, jamais,
era absolvido. Só valia o que o promotor falava. O sujeito era condenado ao
entrar na sala do tribunal. Não adiantava nada dizer que não tinha cometido os
crimes dos quais era acusado; se era inocente, o que estava fazendo no banco
dos réus? É réu? Então é culpado. Perdeu, mané.
Em nenhuma dessas histórias há qualquer ponto de contato
com a lei — ou mesmo com o mínimo de vida inteligente que se espera de um
procedimento judiciário.
Talvez nada mostre com tanta clareza o estado de coma
em que vive hoje a alta Justiça brasileira quanto a proposta que o Ministério
Público fez para 1.156 indiciados no processo do “golpe de Estado”, com o aval
do STF.
O MP reconhece que, após oito meses de investigação, não foi possível
provar nada contra nenhum deles.
Diz até que entre os indiciados há pessoas
presas no dia seguinte ou que estavam longe da Praça dos Três Poderes; segundo
os procuradores, sua responsabilidade é “secundária”.
Como assim, “secundária”?
Eles cometeram ou não cometeram crimes? .............
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Coluna J. R. Guzzo - Revista Oeste